Constitutionalism and "tupiniquim" reasoning: an interdisciplinary overview of the problems for a Brazilian Constitutional Theory/ Constitucionalismo e razao tupiniquim: uma leitura interdisciplinar dos problemas para uma teoria constitucional brasileira.

AutorLaranja, Anselmo Laghi

Consideracoes inicias

Tupi, or not tupi, that is the question

Oswald de Andrade

"A Republica Federativa do Brasil, formada pela uniao indissoluvel dos Estados e Municipios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democratico de Direito [...]" (BRASIL, 1988). Foi dessa forma que a Assembleia Constituinte de 1987 decidiu iniciar a parte normativa do texto que, em 1988, viria ser a atual Constituicao Federal brasileira.

Uma retrospectiva a partir das constituicoes anteriores, com excecao da Constituicao do Imperio--de 1824--, permite observar que, desde 1891, a Republica Federativa e reafirmada como forma de governo e Estado, respectivamente.

Isso nao se repete com a expressao "Estado Democratico de Direito", qualificacao atribuida a 'Republica Federativa' apenas em 1988. Alem disso, varios sao os aspectos que diferenciam o processo constituinte de 1987 dos anteriores, como a ampliacao dos direitos e garantias fundamentais.

Nesse contexto, encontrar significado para essa expressao e tentar explicar como ela afeta o constitucionalismo brasileiro vigente tem se tornado esforco comum em diversos manuais e outras doutrinas de direito constitucional1 (2).

Para explica-la, parte dos constitucionalistas brasileiros encontram a resposta a partir da analise historica do desenvolvimento do Estado Moderno (3). Assim, nao e incomum que a expressao presente no primeiro artigo da Constituicao de 1988 seja explicada tendo como ponto de partida a exposicao historica dos modelos de Estado Absolutista, Liberal e Social, como sintetizado na passagem a seguir:

A partir disso, e possivel dizer que Estado Social de Direito e o Estado Democratico de Direito sao fases sucessivas no processo de transformacao do Estado Contemporaneo, o primeiro respondendo aos esquemas de superacao da crise do liberalismo e o segundo buscando insercao naquilo que se pode denominar de socialismo democratico. Esta tese, com a qual concordo, e defendida por Elias Diaz [...] (STRECK, 2013, p. 125).

Nada obstante, quando o Constituinte Antonio Mariz, na 'Comissao de Sistematizacao da Assembleia Constituinte', defendeu a insercao do termo no texto constitucional, a expressao possuia um carater menos "pretensioso" (4). Para usar suas palavras, ao se pronunciar na Subcomissao, disse:

Creio util e fundamental que os Constituintes, ao votarem a nova lei fundamental do Pais, apos um longo periodo de regime autoritario, enfatizem esse fato de que estamos implantando uma Republica Federativa construida em Estado democratico de direito (BRASIL, 1987, p. 90).

Desse contraste entre a razao "despretensiosa" e a outra de carater mais solene, surge o questionamento acerca do motivo pelo qual nossa literatura constitucional despendia mais tempo sustentando que a expressao "Estado Democratico de Direito" e a sintese historica do desenvolvimento do Estado Moderno ocidental, desdobramento (quase logico) das primeiras rebelioes dos baroes ingleses frente ao Rei Joao Sem-terra, seguido pela formacao do Estado Nacional portugues, das reinvindicacoes trabalhistas ingleses, do neoliberalismo globalizante (etc).

Da mesma forma, para alem das tambem comuns discussoes acerca da denominacao da geracao/dimensao de direitos (5), caberia pensar por que a critica a ideia de substituicao que o termo 'geracoes' supostamente denota ecoa de forma tao contundente, quando deveria ser o problema da importacao da visao europeia de progressao historica dos direitos fundamentais o real ponto de discussao. Afinal, ao contrario do que dispoe essa visao inspirada nas historias europeia e norte-americana, o processo de afirmacao de direitos no Brasil teve uma sua logica invertida.

Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em periodo de supressao dos direitos politicos e de reducao dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos politicos, de maneira tambem bizarra. A maior expansao do direito do voto deu-se em outro periodo ditatorial, em que os orgaos de representacao politica foram transformados em peca decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequencia de Marshall, continuam inacessiveis a maioria da populacao (CARVALHO, 2005, p. 219-220).

Amparado por questionamentos semelhantes aqueles aqui apresentados, o escritor brasileiro Roberto Gomes, no ano de 1977, publicou aquilo que viria a ser sua principal obra: Critica da Razao Tupiniquim (GOMES, 1994). Na obra, o brasileiro, nascido na cidade de Blumenau, buscou analisar a existencia de uma 'filosofia brasileira' e expos sua critica a forma com que o estudo dela se da no Brasil, representado pelo pensamento por ele intitulado de 'Razao Tupiniquim', que seria uma forma de pensar brasileira baseada no eruditismo e na colonizacao simbolica ainda subsistente do pensamento brasileiro frente ao continente europeu.

A partir dessa obra, o ensaio a seguir visa analisar o constitucionalismo brasileiro com base nos aspectos apresentados por Roberto Gomes, relacionando possiveis influencias dessa 'Razao Tupiniquim' no constitucionalismo brasileiro. Propoe-se, nesse sentido, a examinar dois conceitos especificos vinculados pela obra de Roberto Gomes: (i) a razao ecletica; e (ii) a razao ornamental.

A partir do metodo juridico-compreensivo, compreendido por Gustin e Dias (2006, p. 29) como aquele apto para decompor um problema a partir das relacoes e niveis, busca-se responder como esses dois conceitos lancam luz a fenomenos do constitucionalismo inaugurado com o texto constitucional de 1988 e sao capazes de explicar duas de suas caracteristicas: a forte presenca de termos anfibiologicos no texto constitucional de 1998 e o protagonismo da jurisdicao constitucional na "resolucao" de conflitos sociais de relevancia publica.

A escolha desses dois objetos deve-se, primordialmente, a importancia que possuem para o Direito contemporaneo, principalmente em decorrencia do processo de enfatizacao do Direito Constitucional para a compreensao do fenomeno juridico, processo esse, por vezes, denominado neoconstitucionalismo.

  1. O Constitucionalismo ecletico

    O primeiro aspecto do comportamento intelectual tupiniquim que sera tratado e aquele chamado por Roberto Gomes como 'Razao Ecletica'. Segundo o autor, o ecletismo e um dos tracos estruturais da intelectualidade brasileira que se mantem no tempo, sendo fruto da indiferenciacao intelectual do Brasil (GOMES, 1994, p. 34).

    Para uma descricao mais nitida dessa 'Razao Ecletica', pode-se buscar, nas ideias juridico-filosoficas do periodo pos-independencia do Brasil, o exemplo privilegiado da influencia desse primeiro conceito discutido por Roberto Gomes na formacao das instituicoes brasileiras.

    Sobre esse contexto, Boris Fausto (1995, p. 147) aponta que "os anos entre 1822 e 1840 seriam marcados por uma enorme flutuacao politica, por uma serie de rebelioes e por tentativas constantes de organizar o poder". Paralelamente, no ambito filosofico, novas ideias advindas com a modernidade tornaram-se incompativeis com as antigas estruturas brasileiras: as ideias do liberalismo economico conflitavam com a estrutura escravocrata; as do liberalismo politico contrastavam com a necessidade de assegurar a unidade do Imperio; e a valorizacao da experimentacao como metodo cientifico nao encontrava o ambiente para sua estruturacao (PAIM, 2007, p. 73).

    Como explica Antonio Paim:

    Assim, havia de conciliar o liberalismo que se desejava incorporar, dando seguimento as reformas pombalinas, com os institutos da tradicao: direito natural concebido nos moldes escolasticos, Ordenacoes Vicentinas, vinculos da Igreja com o Estado, etc. Existia, sem duvida, uma percepcao nitida da ligacao entre modernidade e ciencia experimental. Mas a tarefa urgente consistia em dar estrutura juridico-administrativa ao pais que recem conquistara a Independencia. E assim por diante (PAIM, 2007, p. 74).

    Ainda nesse contexto, Paim (2007, p. 74) aponta que esses desafios institucionais serviram de terreno fertil para a disseminacao das ideias apresentadas pelo ecletismo de Vitor Cousin, a fim de permitir que estruturas pertencentes aos dois paradigmas antagonicos (feudal e moderno) pudessem conviver em harmonia.

    Ao caracterizar a 'Razao Ecletica', Roberto Gomes (1994, p. 34) apresenta tres caracteristicas principais: (i) a rejeicao aos sistemas de pensamento, que sao entendidos como limitadores do espirito; (ii) a crenca na verdade como a depuracao dos melhores elementos de cada escola de pensamento; (iii) a fe atribuida a esse tipo de pensamento como tolerante, critico e aberto.

    A partir dessas premissas, o processo de estruturacao da unidade imperial tomou uma postura evidentemente conciliatoria e pretensiosamente imparcial. Essa imparcialidade ecletica brasileira surgiu, portanto, a partir da ideia de que se podia "imparcialmente, usufruir beneficios das mais diversas reflexoes estrangeiras, delas retirando o 'melhor'. Desde sempre visamos extrair do pensado por outros aquilo que podera nos ser util" (GOMES, 1994, p. 37).

    Por outro lado, esse processo de importacao de ideias ignorava um aspecto necessario para assimilacao dessas teorias, que e a existencia de criterios de seletividade previamente postos a critica, o que demanda, necessariamente, a observacao da posicao do sujeito (GOMES, 1994, p. 37).

    Se apenas a partir da posicao do sujeito cognoscente e possivel identificar o que e o "melhor", o ecletismo surge como forma de, nas palavras de Gomes, uma "filosofia enlouquecida", ja que nao reflete sobre seus criterios, sobre si mesma, o que "gerou um monstrengo em termos de atitude filosofica: evitar oposicoes e dissolve-las, ao inves de enfrenta-las e resolvelas" (GOMES, 1994, p. 38).

    A insercao do pensamento ecletico pode ser observada, politicamente, com o processo constituinte que culminou no texto constitucional de 1824 e com criacao do Gabinete da Conciliacao por D. Pedro II, no ano de 1853, e, academicamente, Antonio Paim (2007, p. 81-82) cita diversas personalidades que...

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