Constitution and independency of the Central Bank/Constituicao e independencia do Banco Central.

AutorCasalino, Vinicius
  1. Introducao *

    0 debate sobre a "independencia" do Banco Central (BC) tem ocupado lugar de destaque nao apenas no meio academico, mas tambem na midia, sobretudo escrita. O motivo de tanto interesse nao chega a ser misterio: o Brasil ostenta uma das maiores taxas basicas de juros de todo o globo terrestre. (1) Por que essa situacao se arrasta ha tanto tempo? Que razoes explicam, ou justificam, esse fenomeno? Economistas de varios matizes, ortodoxos e heterodoxos, enfrentam a questao e oferecem seus diagnosticos.

    Uma vez que o Banco Central cumpre o papel de autoridade monetaria, cabendo-lhe a prerrogativa de fixar a taxa basica de juros da economia (taxa Selic), a discussao a respeito de sua "independencia" ou subordinacao aos poderes politicos estabelecidos e uma consequencia logica e necessaria. Os defensores daquela que seria sua funcao precipua--o "controle da inflacao"--socorrem-se, como regra, de argumentos "tecnicos" segundo os quais a autoridade monetaria precisa ser independente para que tenha a capacidade de adotar a decisao mais adequada ao controle dos precos (estando assim, leia-se, numa posicao menos vulneravel a argumentos de outra ordem). Os criticos desta autonomia, por outro lado, assinalam que o aspecto tecnico nao pode ser separado das razoes politicas, motivo pelo qual a autoridade monetaria deve vincular-se, obrigatoriamente, ao conjunto das decisoes governamentais que perfazem a gestao politica da macroeconomia. (2)

    O debate pode ser iluminado de diversas formas e multiplos aspectos podem ser suscitados. Assim, pesquisas recentes revelam que as elevadas taxas de juros praticadas pelo BC teriam relacao, por exemplo, com a credibilidade da politica monetaria e fiscal adotada pelo governo, de modo que, quanto maior esta, tanto menor aquela (MONTES et al, 2014). Leituras mais tradicionais apontam tambem para uma forma de risco nao comumente lembrada, que seria a incerteza no que concerne ao cumprimento de contratos quando submetidos a jurisdicao brasileira. A inexistencia de um mercado domestico para a liquidacao de contratos de longo prazo no Brasil explicaria a manutencao da taxa basica de juros em patamares elevados (ARIDA et al, 2005). (3) Ha tambem aqueles que relacionam o nivel da taxa Selic a inercia da inflacao ou ao montante da divida publica federal. No primeiro caso, sustenta-se que o BC estaria, por assim dizer, "ancorado" nos indices de inflacao, de modo que, uma vez que estes se mantenham elevados, a taxa de juros deve seguir a mesma tendencia, sob pena de instabilidade (BARBOSA, 2004). (4) No segundo, destaca-se que a elevada proporcao da divida publica com relacao ao produto interno bruto traria, como consequencia, uma percepcao de risco tambem elevada, o que teria impacto no "preco" do dinheiro a ser emprestado e, como decorrencia, na taxa de juros praticada (FAVERO et al, 2002). (5) Nao obstante a pletora de teorias situadas no campo da ortodoxia, parece que razao assiste a Chernavsky (2007) (6) que, passando em revista muitas delas, concluiu pela inaptidao geral em explicar de modo consistente as razoes de fundo pelas quais o BC seria "obrigado" a sustentar elevadas taxas de juros por periodo tao longo de tempo.

    Para alem de questoes teoricas mais substanciais ou pesquisas empiricas estritamente economicas, que sem duvida sao importantes para a analise do tema, dois problemas que geralmente escapam aos estudiosos especializados nos movem neste artigo:

    1. Nao obstante as hipoteses economicas explicativas das elevadas taxas de juros praticadas pelo BC, seria possivel, do ponto de vista juridico, isto e, tendo como pano de fundo a Constituicao de 1988, atribuir a autarquia "independencia" para fixar a taxa Selic em patamares que julga os mais adequados, ainda que sob o pretexto "tecnico" de controle da inflacao? Nao seria necessario questionar a possibilidade juridico-constitucional desta "independencia" antes mesmo de se encaminharem questoes economicas mais aprofundadas?

    2. Ainda que esta prerrogativa fosse admitida, seria possivel sustentar, a luz do art. 170, caput e inc. VIII, da CF/88, que estabelece a busca do pleno emprego como principio geral da atividade economica, a validade juridica de taxas fixadas em niveis que contrariem esse principio? O proprio conteudo da funcao monetaria ja nao estaria vinculado a Constituicao?

    Tais indagacoes colocam em evidencia certo "vacuo teorico" no que concerne a uma necessaria e inescusavel interdisciplinaridade, que envolva nao apenas o dialogo, mas sobretudo o entrelacamento de duas importantes esferas de conhecimento, a ciencia economica e a ciencia do direito. Nesse sentido, nao se concebe que hipoteses supostamente justificadoras desse comportamento no plano da economia sejam construidas com abstracao total das questoes juridicas que envolvem a atuacao da autarquia, especialmente quando se sabe que o texto constitucional brasileiro situa-se no contexto das chamadas constituicoes dirigentes, cujo conteudo e formado por normas que nao apenas admitem, como determinam uma atuacao estatal conformadora das relacoes economicas, com vistas a determinados objetivos previamente estabelecidos, tais como a construcao de uma sociedade livre, justa e solidaria (CF/1988, art. 3).

    Sob a perspectiva juridica a situacao e ainda menos alentadora. Do ponto de vista teorico aqui adotado, o desconhecimento dos aspectos relacionados a economia e sensivelmente mais grave, uma vez que, como se sabe, as condicoes economicas conformam a infraestrutura social a partir da qual se elevam as esferas politica, juridica, cultural, ideologica etc., que, apreendidas dialeticamente, sao, em maior ou menor medida, determinadas por aquela. (7) Assim, qualquer teorizacao juridica que nao leve em conta as determinacoes economicas, isto e, as formas economico-sociais por meio das quais o capital se poe em movimento e as respectivas categorias que expressam seu devir, esta fadada a assumir carater essencialmente ideologico. Esse e, no entanto, o "estado da arte" que se encontra no meio juridico academico. Alheio a substancia economica que, em ultima analise, confere sentido as formas juridicas, ganha corpo um constructo teorico que advoga uma plena "independencia" do BC na conducao da politica monetaria, sob o pretexto da assim denominada "accountability", isto e, uma "modalidade (dentre outras possiveis) de supervisao, avaliacao e responsabilizacao da autoridade monetaria na pratica de sua politica--uma moldura juridica para o exercicio do poder monetario" (DURAN, 2013: 30).

    Pois bem, a hipotese que nos move a iniciar os esforcos no sentido de suprir esse "vacuo teorico" desdobra-se em duas vertentes e pode ser assim enunciada: (1) a luz da forca normativa da Constituicao e no que concerne ao principio da separacao de poderes, afigura-se equivoco cogitar de qualquer especie de "independencia" para o BC no que concerne a tarefa de fixar a taxa basica de juros da economia. A nocao de independencia aponta para uma autonomia haurida imediatamente da Constituicao e nao entremeada por lei ou ato normativo inferior; (2) ademais, o texto constitucional determina tambem a vinculacao de conteudo da propria funcao regulatoria da autoridade monetaria, de modo que as decisoes eventualmente adotadas pelo BC no que toca a fixacao da taxa Selic estao antecipadamente vinculadas aos mandamentos constitucionais, sobretudo ao principio da busca do pleno emprego. Assim, o artigo tem como objetivo demonstrar que as taxas de juros devem, no sentido juridico do termo, gravitar em torno de patamares que incentivem a atividade economica produtiva, verdadeira responsavel pela criacao de postos de trabalho.

    Finalmente, sob o aspecto metodologico, registre-se que a perspectiva materialista aqui adotada nao trata a hipotese apresentada como simples abstracao lancada como dado inicial--necessaria, por motivos logicos, ao desenrolar dedutivo mas como parte de um contexto teorico mais amplo e previo, cujo momento inicial situa-se na critica da economia politica elaborada por Karl Marx em O Capital. Assim, as categorias a serem utilizadas no desenvolvimento do artigo nao representam apenas "abstracoes teoricas", mas se constituem como momentos conceituais que tem suas raizes nos fundamentos da estrutura produtiva da sociedade atual, cuja efetividade possui a "textura do conceito": (8) sao as abstracoes reais, encarnadas no trabalho em geral--substancia do valor urdida no dia-a-dia das trocas, e na riqueza abstrata (monetaria) que, em ultima instancia, movem o sistema.

    Consequentemente, certas concepcoes sao reformuladas, de maneira que o direito nao e concebido como usualmente faz a teoria tradicional--simples conjunto de normas postas por uma autoridade competente--, mas como expressao superestrutural do movimento de producao, reproducao e acumulacao do capital. Desse modo, se as formas juridicas, cujos fundamentos repousam na relacao mercantil, projetam, por um lado, a aparencia de um ordenamento normativo que se baseia na igualdade de posicoes, por outro, nao fazem senao assegurar, em sua essencia, a perpetuacao de um sistema fundado na desigualdade material e que se move pela incessante extracao de mais-valor a classe trabalhadora (PACHUKANIS, 1988). Caminhamos, pois, com Ruy Fausto: "O Estado guarda apenas o momento da igualdade dos contratantes, negando a desigualdade das classes, para que, contraditoriamente, a igualdade dos contratantes seja negada e a desigualdade das classes posta" (FAUSTO, 1987: 299-300). Assim, a passagem do direito (que rege a relacao juridica entre os agentes que contratam no interior da sociedade civil, sendo, portanto, anterior ao Estado) ao Direito, isto e, a relacao juridica legalizada pelo Estado, impoe-se como necessidade, para que a desigualdade material que funda o sistema possa operar.

  2. A forca normativa da Constituicao

    A nocao de forca normativa da Constituicao veio a lume com o famoso opusculo de Konrad Hesse, fruto de sua aula inaugural na...

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