A constituição horizontal

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas257-290
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– XI –
A CONSTITUIÇÃO HORIZONTAL
Luiz Fernando Coelho
Sumário: 1. Parábolas introdutórias. 2. A hermenêutica
constitucional. 3. Os direitos fundamentais. 4. A legitimação
constitucional. 5. As antinomias constitucionais. 6. Principiologismo
e dirigismo. 7. Pluralismo e autopoiese. 8. A constituição horizontal.
1. Parábolas introdutórias
A narrativa de quatro pequenas histórias motivou algumas
reflexões sobre os problemas atuais da interpretação constitucional, as
quais são a seguir expostas, a título de uma introdução à hermenêutica
constitucional.
A primeira dessas histórias é uma das aventuras do Barão de
Münchhausen, o maior mentiroso do mundo, personagem que não é
fictício, como muitos pensam, mas da vida real, cujas inverossímeis
aventuras incorporaram-se ao anedotário germânico. Dentre as façanhas
de que se gabava, consta que teria saído de um lamaçal, onde se atolara
com seu cavalo, puxando os próprios cabelos.
A segunda envolve um sábio da Grécia antiga, Tales de Mileto,
cuja aventura, ou desventura, consta no Teeteto, de Platão. Um dos
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personagens do diálogo, Sócrates, narra que o filósofo passeava olhando
as estrelas e teria caído num poço, o que provocou o riso de uma escrava
da Trácia, de espírito brincalhão e trocista.
A terceira parábola refere-se ao Minotauro, o monstro com corpo
de homem e cabeça de touro, encerrado no labirinto da ilha de Creta,
construído por Dédalo por ordem do rei Minos, e que aterrorizava os
atenienses. Conta-se que ele foi morto por Teseu, que logrou escapar do
labirinto guiado por um fio que lhe fora fornecido por Ariadne, filha de
Minos, que se apaixonara pelo herói.
Há ainda uma quarta história, ligada ao imaginário brasileiro. É a
respeito de Diogo Álvares Correia, cujas aventuras foram narradas por
Santa Rita Durão em seu poema épico intitulado “Caramuru”. Tendo
vivido entre os índios, teria durante uma caçada abatido uma ave com
sua espingarda, o que provocou enorme pavor entre os selvagens, que
se prostraram aos pés do herói gritando: Caramuru! Caramuru! o que
quer dizer filho do trovão.
O que estas quatro histórias têm a ver com a interpretação
constitucional?
A extravagante narrativa de Münchhausen lembra-nos a situação
teórica da hermenêutica constitucional contemporânea, preocupada com
a questão dos fundamentos, os seus próprios, os dos direitos
fundamentais e os da legitimidade do poder constituinte, enquanto os
donos do poder manipulam a constituição ao sabor de seus interesses,
dando pouca ou nenhuma importância para a sofisticada teoria e inúteis
pareceres.
Com o riso da mulher trácia evoca-se a inutilidade dessa busca,
quando verificamos que o direito constitucional ainda se satisfaz com a
mera contemplação das estrelas do dogmatismo metodológico, enquanto
o mundo se precipita no buraco da arrogância e da insensatez da política
mundial.
Interpretar a constituição igualmente nos evoca o fio de Ariadne.
Como compreender o papel da Carta Magna no labirinto das relações
sociais de extrema complexidade no mundo de hoje, impregnadas pela
não menos complexa rede de valores, princípios e normas, muitas vezes
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incompatíveis entre si, que devem orientar decisões envolvendo a
interpretação, integração e aplicação das normas constitucionais?
E finalmente, a história do Caramuru nos faz lembrar o verdadeiro
fascínio que a indústria acadêmica estrangeira exerce sobre nossa ciência
jurídica nacional. Os grandes mestres europeus e norte-americanos dão
um tiro para o ar e nossos tupiniquins logo passam a venerá-los como
filhos do trovão. É o nosso complexo de caramuru, que nos leva a preferir
copiar o que autores estrangeiros escrevem, ainda que nada de novo
apresentem, em detrimento de nossa própria criatividade. Além disso,
gera uma irresistível tendência a complicar as coisas, de forma a torná-
las inacessíveis ao comum dos mortais. O lema da hermenêutica
constitucional, hoje, é: “se é possível complicar, por que simplificar?”
As reflexões a seguir constituem uma tentativa de evitar as
armadilhas ideológicas que, como estrelas no céu, dissimulam os
problemas reais do mundo, da sociedade e do país.
2. A hermenêutica constitucional
A visão münchhauseana inicial da hermenêutica constitucional
desenvolve-se ao sabor da filosofia hermenêutica.
Até o advento das teorias que pregavam a intervenção do Estado
na economia como panaceia que remediaria os problemas da fome e da
miséria, a hermenêutica constitucional não apresentava peculiaridades
que a distanciassem da hermenêutica jurídica geral, cujos procedimentos
eram empregados na interpretação, integração e aplicação dos estatutos
constitucionais.
Entretanto, a hermenêutica geral do direito viu-se envolvida por
um complicador teórico, sua compreensão como doutrina filosófica, na
esteira da chamada filosofia hermenêutica. Esta pressupunha que toda
interpretação envolve o universo da compreensão da linguagem que a
expressa. Compreender alguma coisa, ou seja, assimilar o conhecimento,
a verdade de uma coisa, importa decifrar a interpretação dos signos que
a expressam, os quais se integram na coisa interpretada.

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