A constitucionalização do direito processual eleitoral português sob um prisma principiológico

AutorDaniel Castro Gomes da Costa - Ruy Celso Barbosa Florence
CargoAdvogado. Diretor da Escola Judiciária Eleitoral do Tribunal Regional Eleitoral de Mato Grosso do Sul (EJE-MS). Ex-Conselheiro do Tribunal Administrativo Tributário do Estado de Mato Grosso do Sul (2011/2014). Mestre e Doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa. Leciona na Faculdade de Direito da Universidade Federal do E
Páginas27-51

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Daniel Castro Gomes da Costa42

Ruy Celso Barbosa Florence43

Introdução

O presente ensaio tem propõe uma análise crítica do sistema eleitoral português, com enfoque no direito processual, apontando e avaliando a estrutura do contencioso eleitoral e sua estreita relação com a Constituição da República Portuguesa. Nesse norte, anota-se que, mesmo o direito processual eleitoral tendo seus baluartes oriundos majoritariamente da Carta Magna, a legislação infraconstitucional assume uma grande importância no regimento das eleições.

Nesse espírito, cumpre apontar como os princípios processuais ganham força e efetividade ao perceberem status constitucional, relacionandoos, por conseguinte, com a própria legislação infraconstitucional. Ao mesmo tempo, importa refletir como se compõe a Administração Eleitoral e qual seu papel nesse sistema.

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Com efeito, a evolução do sistema eleitoral de qualquer Estado Democrático de Direito está intimamente conectada com o seu posicionamento constitucional. Destarte, para uma melhor compreensão do tema faz-se necessária uma breve digressão histórica do sistema eleitoral português, realizando-se, para isso, um paralelo das três fases do constitucionalismo português (liberal, autoritária e democrática) - e de cada constituição individualmente - com o sistema eleitoral.

Contudo, antes de adentrar no exame dos princípios, traça-se um esboço do objeto do contencioso eleitoral: o processo dos escrutínios propriamente dito. Para entender seu funcionamento é fundamental esclarecer que essa metodologia não se resume à eleição em si, possuindo também, os momentos pré e pós-eleitoral, os quais são conduzidos pelo mesmo Direito Processual Eleitoral. Dada essa pluralidade de fazes, é importante identificar as competências dos órgãos eleitorais, dissertando-se acerca de suas funções em cada um dos períodos da eleição.

Posteriormente, adentra-se no tema principal deste trabalho: os princípios do Direito Processual Eleitoral. Nesse ponto, salienta-se como a Constituição influencia de maneira indubitável nessa seara, haja vista que todo o direito processual possui raízes na Carta Magna ou, mais especificamente, no princípio do due process of law. Em primeiro plano, mostra-se como os princípios gerais do processo se aplicam ao contencioso eleitoral, como, por exemplo, o princípio do contraditório e da celeridade. Após, trata-se dos princípios específicos da matéria, como o princípio da aquisição progressiva dos atos eleitorais e do controle jurisdicional dos atos eleitorais.

Em outro ponto, ocupa-se dos recursos e de suas especificidades na seara eleitoral. Inicia-se com uma análise da definição de recurso, a passar, adiante, pela sua finalidade. Em seguida, mostra-se como a legislação rege a legitimidade para interposição de recursos eleitorais. Saber as particularidades dos recursos eleitorais é essencial para compreender o sistema eleitoral como um todo.

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Por fim, a Administração Eleitoral merece destaque dentro do ordenamento jurídico eleitoral português. Em tal sistema, nem todo o processo eleitoral tem regência jurisdicional, cabendo à Administração Eleitoral um papel fundamental no bom funcionamento das eleições lusitanas. Com isso, cumpre tratar dos mais diversos órgãos que compõe a esfera administrativa, com ênfase na Comissão Nacional de Eleições (“CNE”).

Do contencioso eleitoral português
2.1. Breve evolução histórica

A evolução do direito eleitoral português, como haveria de ser, está intimamente ligada à do constitucionalismo lusitano, que pode ser dividido em três fases: (i) fase liberal, entre 1820 e 1926, composta por quatro constituições, quais sejam: as de 1822, 1826, 1838 e 1911; (ii) fase autoritária, entre 1926 e 1974, que contou com a chamada famigerada constituição de 1933; e (iii) fase democrática, que teve início com a Revolução de 25 de abril de 1974, mas somente foi efetivada com a eleição à Assembleia Constituinte e com a promulgação da Constituição vigente, exatamente dois anos após, em 25 de abril de 197644.

Na fase liberal, o direito ao voto era bastante restrito, com o predomínio dos sistemas majoritário e de representação de minorias na eleição do Parlamento e a eleição para os órgãos municipais. Validamente, a Constituição de 1822 foi a mais aberta em relação ao sufrágio, trazendo em seu bojo o art. 33.º, de cunho educativo, que previa o seguinte:

“Na eleição dos Deputados têm voto os Portugueses, que estiverem no exercício dos direitos de cidadãos (art. 21, 22, 23 e 24), tendo domicílio, ou pelo menos residência de um ano, em o conselho onde se fizer a eleição. O domicílio dos Militares de primeira linha e dos da armada se entende ser no conselho, onde têm quartel permanente os corpos a que pertencem.

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Da presente disposição se exceptuam:

  1. Os menores de vinte e cinco anos; entre os quais contudo se não compreendem os casados que tiverem vinte anos; os oficiais militares de mesma idade; os bacharéis formados; e os clérigos de ordens sacras;

  2. Os filhos-famílias, que estiverem no poder e companhia de seus pais, salvo se servirem ofícios públicos;

  3. Os criados de servir, não se entendendo nesta dominação os feitores e abegões, que viverem em casa separada dos lavradores seus amos;

  4. Os vadios, isto é, os que não têm emprego, ofício, ou modo de vida conhecido;

  5. Os Regulares, entre os quais se não compreendem os das Ordens militares, nem os secularizados;

  6. Os que para o futuro, em chegando à idade de vinte e cinco anos completos, não souberem ler e escrever, se tiverem menos de dezessete quando se publicar esta Constituição”.

Na Carta Constitucional portuguesa de 1826, é clara a restrição ao direito ao voto. À época, a Câmara dos Deputados era eleita por votos indiretos, a que tinham direito somente aqueles com renda líquida anual superior a cem mil réis. Com o advento da Constituição de 1838, tanto a Câmara dos Deputados quanto a dos Pares se compunham mediante eleições. Ainda com o voto censitário, para ter direito era necessária uma renda de oitenta mil réis, como previa o art. 72.º; para se candidatar a deputado, uma renda de quatrocentos mil réis, nos termos do art. 74.º; para se candidatar ao Senado, de caráter eminentemente elitista, era necessário encaixar-se em uma das hipóteses do art. 77.º, como, por exemplo, ser proprietário com renda anual de dois contos de réis ou ainda, comerciante e fabricantes, cujos lucros anuais fossem avaliados em quatro contos de réis.

A Constituição de 1911, por sua vez, deixou de tratar de capacidade eleitoral. Fato marcante, todavia, foi a exclusão expressa do voto feminino,

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em 1913, por lei infraconstitucional. Com o Decreto n.º 3.997, o então presidente Sidónio Pais estabeleceu o sufrágio de todos os cidadãos do sexo masculino maiores de vinte e um anos, além de uma forma de representação territorial e proporcional no Senado.

Durante a fase autoritária, a Constituição de 1933 estabeleceu o voto direto para as eleições presidenciais e da Assembleia Nacional, sem, contudo, manter o caráter restritivo censitário e capacitário. Tratar da evolução do direito eleitoral durante o período autoritário é, todavia, sem sentido, já que, nas palavras de MIRANDA, “na prática, nenhumas eleições eram em sentido material. Não se tratava de escolher os governantes, mas de realizar outros fins (para o regime (...), propaganda; (…) e para a Oposição, oportunidade de presença (...)”45 .

A transição para a fase democrática iniciou-se ainda antes da Constituição de 1976, já na convocação para a eleição da Assembleia Constituinte, em 1974. Validamente, somente nesse período que foi assegurado o sufrágio universal a ambos os sexos, a partir de dezoito anos e independentemente da capacidade de ler e escrever.

Sob o aspecto formal, há alguns pontos em cada uma das fases que merecem destaque: na fase liberal, o direito eleitoral tornou-se norma constitucional formal; na fase autoritária, retrocedeu-se à legislação ordinária; a partir da Constituição de 1976, por sua vez, o direito ao voto foi incluído no rol de direitos, liberdades e garantias.

Paralelamente ao desenvolvimento do Estado de Direito, os países europeus seguiram uma tendência estrutural evolutiva, instituindo Tribunais Constitucionais e traçando contornos institucionais de uma justiça eleitoral. No âmbito da apreciação da validade e da regularidade das eleições, o surgimento de uma justiça especializada sobrepõe-se ao modelo de controle administrativo e de verificação de poderes pelos Parlamentos.

Nesse espírito, observam-se atualmente três modelos jurisdicionais

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eleitorais, quais sejam: (i) controle difuso, atribuindo-se essa competência aos tribunais comuns; (ii) controle concentrado pelo Tribunal Constitucional ou por órgão jurisdicionado homólogo (modelo predominante); e (iii) criação de tribunais especializados (v.g., modelo brasileiro)46.

No sistema português, a ala contenciosa do recenseamento eleitoral cabia aos tribunais judiciais; a das candidaturas e o da votação nas assembleias de voto, aos tribunais administrativos. Entre 21 de maio de 1884 e 5 abril de 1991, houve um tribunal de verificação dos poderes, capitaneado pelo presidente do Supremo Tribunal de Justiça e composto por juízes dessa mesma Corte e dos Tribunais de Relação. Nesse curto lapso temporal, encontra-se o modelo mais próximo daquele adotado pelo Brasil, ou seja, a criação de tribunal especializado. À parte disso, a verificação dos poderes parlamentares sempre se dava pelas próprias Câmaras.

Em 15 de novembro de 1974, foi aprovado o Decreto-Lei n.º 621-C/74, contendo os artigos 35.º, 38.º e 120.º. A Constituição de 1976, por sua vez, atribuiu aos tribunais o julgamento...

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