A constitucionalização do direito civil e suas consequências para a liberdade relacionada ao contrato

AutorAlexandre Chini/Diógenes Faria De Carvalho/Eduardo Martins De Camargo
Páginas225-247

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Ver Nota123

Introdução

A constitucionalização do direito civil é um tema que está em pauta desde pouco após a promulgação da Constituição de 1988. O tema se mostrou ainda mais pertinente com o fenômeno da descodificação do direito civil, que segue até os dias atuais. Leis esparsas e microssistemas foram formados e o Código Civil deixou de ocupar um lugar de extrema centralidade no ordenamento jurídico e mais precisamente nas relações privadas. Nessa quadra histórica adveio o novo Código Civil, promulgado em 2002, com inúmeras alterações de caráter técnico e com institutos já permeados pelos valores constitucionais.

Este trabalho se dedica a situar essa constitucionalização do direito civil no ordenamento jurídico brasileiro, procurando apontar e analisar suas consequências para a liberdade relacionada ao contrato. A escolha da expressão ‘liberdade relacionada ao contrato’ no título é proposital para não pairar dúvidas sobre o que se quer falar. A expressão aqui é utilizada para denotar o sentido mais amplo de liberdade na teoria contratual, envolvendo assim tanto a liberdade de contratar e a liberdade contratual, quanto a liberdade nas relações privadas de maneira genérica (como a liberdade associativa, por exemplo).

No primeiro tópico, explanar-se-á sobre a constitucionalização do direito civil propriamente dita, trazendo marcos históricos relacionados ao tema e uma abordagem de direitos fundamentais nas relações privadas. Aqui ganhará destaque a mudança de percepção do individualismo e não intervencionismo estatal nas relações privadas para o dirigismo contratual e a intervenção estatal na seara privada. Além disso, discorrer-se-á sobre as teorias de aplicabilidade horizontal dos direitos fundamentais.

No segundo tópico, far-se-á uma análise evolutiva da liberdade relacionada aos princípios da autonomia da vontade e autonomia privada, ressaltando a discussão teórica feita por juristas sobre a diferenciação dos dois princípios, em que pese a maioria dos autores e da jurisprudência pátria não distingui-los.

No terceiro tópico do trabalho, discorrer-se-á sobre consequências da constitucionalização do direito civil para a liberdade relativa aos

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contratos, procurando demonstrar como os valores constitucionais estão pautando as relações privadas.

Ressalta-se que este artigo não tem a intenção de pormenorizar todos os princípios fundamentais da teoria contratual, bem como não trará todas as consequências da constitucionalização do direito civil. O que se busca é contribuir com o debate no sentido de (re)avivar as robustas discussões relacionadas ao tema.

1. A constitucionalização do direito civil: uma abordagem de direitos fundamentais nas relações privadas

O direito civil é indiscutivelmente o ramo nevrálgico do que se pode chamar de direito privado, nele se encontrando o arcabouço máximo das normas – regras e princípios – disciplinadoras das relações privadas. Essa assertiva está temporal e geograficamente distante das interpretações civilísticas contemporâneas. Atualmente, não há como se falar em relações privadas sem uma devida contextualização constitucional.

De início, é preciso caracterizar o direito civil, que pode ser entendido, em poucas linhas, como aquele que se formulou no Código de Napoleão (1804), em virtude da sistematização operada por Jean Domat – quem primeiro separou as leis civis das leis públicas –, cuja obra serviu para a delimitação do conteúdo inserto naquele Code, e que, em seguida, viria a ser adotado pelas legislações do século 19, influenciando as codificações vindouras.

Aqui, faz-se necessário pontuar que a dicotomia entre direito público e direito privado, comumente estudada como advinda do direito romano não corresponde à materialidade histórica, já que no jus civile, o direito dos cidadãos era essencialmente uma noção de direito público e não privado, conforme leciona Caio Mário da Silva Pereira.

No período medieval, houve uma verdadeira absorção do público pelo privado, decorrente do direito de propriedade dos senhores feudais, os quais possuíam um poder soberano sobre os habitantes de seus feudos, podendo impor regras, arrecadar tributos e até mesmo julgá-los, fazendo com que o direito de propriedade fosse levado ao ápice do sistema (GOEDERT, PINHEIRO, 2012).

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Foi no século 18 que a diversidade entre a esfera econômica e a política e entre o Estado e a sociedade civil passa a se sublinhar, e a dicotomia entre o público e o privado se caracteriza como forma de se distinguir a sociedade política (onde impera a desigualdade) e a econômica (reinado da igualdade). É nesse contexto histórico que se manifesta, de maneira mais intensa, a divisão entre Estado e sociedade, política e economia, direito e moral, desencadeando no mundo jurídico a acentuada diferença entre direito público e direito privado. E é nesse panorama que se vislumbra uma separação quase absoluta entre o direito que regularia os interesses gerais e as relações entre indivíduos e aquele que disciplina a estruturação e funcionamento do Estado, tendo abertura para o Estado liberal (GOEDERT, PINHEIRO, 2012).

O direito civil foi identificado, a partir do Código de Napoleão, com o próprio Código Civil, que regulava as relações entre as pessoas privadas, seu estado, sua capacidade, sua família e, principalmente, sua propriedade, consagrandose como o reino da liberdade individual. Concedia-se a tutela jurídica para que o indivíduo, isoladamente, pudesse desenvolver com plena liberdade a sua atividade econômica. As limitações eram as estritamente necessárias a permitir a convivência social, ou seja, tinha-se o Estado mínimo ou, em outras palavras, o Estado intervinha minimamente nas relações privadas entre os indivíduos (BODIN DE MORAES, 1991).

A figura do Estado mínimo, então, operacionalizava o Estado liberal ou a doutrina do liberalismo, que tinha basicamente como princípios: a defesa da propriedade privada; a liberdade econômica; a mínima participação do Estado nos assuntos econômicos da nação e a igualdade perante a lei – que é um dos pressupostos do estado de direito. Assim, pregava-se um Estado em que os indivíduos tinham plena liberdade para contratar, podendo deliberar e consentir praticamente de maneira ilimitada, tendo a autonomia da vontade lugar de destaque nesse período. Não havia parâmetros ou imposições (limites) na seara contratual, pois esta era concebida como totalmente separada da área de interesses públicos, figurando em demasia os interesses individualistas.

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O que se tem como núcleo do direito civil nessa época é o indivíduo-proprietário e o indivíduo-contratante, e, assim, o Código Civil é reconhecido como a constituição do direito privado, pelo fato de trazer em seu corpo as normas que geriam a vida comum, tendo ainda uma separação latente entre Estado e sociedade civil (COSTA, 2006). As figuras dos códigos – e o brasileiro de 1916 também regia-se assim – eram: o contratante, o marido, o proprietário e o testador. Daí se denotar o caráter patrimonialista e patriarcal dessa codificação.

Os códigos civis tiveram como paradigma o cidadão dotado de patrimônio, vale dizer, o burguês livre do controle e impedimentos públicos. Nesse sentido é que entenderam o homem comum (mediano), deixando a grande maioria fora de seu alcance. Para os iluministas, a plenitude da pessoa dava-se com o domínio sobre as coisas, com o ser proprietário. A liberdade dos modernos, ao contrário dos antigos, é concebida como não impedimento. Livre é quem pode deter, gozar e dispor de sua propriedade, sem impedimentos e sem interferência do Estado, salvo os ditados pela ordem pública e os bons costumes, sendo que estas categorias nem poderiam ser referidas como reais limitadores da liberdade (LÔBO, 1999).

Segundo o professor Paulo Luiz Netto Lôbo (1999), as primeiras constituições não se preocuparam em regular as relações privadas dos indivíduos, e cumpriam sua função básica de delimitação do poderio estatal. Na seara privada consumou-se o darwinismo jurídico, com a hegemonia dos economicamente mais fortes. Assim, a codificação liberal e a ausência de regulação econômica por parte da lei maior serviram de instrumento de exploração dos mais fracos pelos mais fortes, gerando reações e conflitos que redundaram no Estado social.

Em verdade, para Lôbo (1999), existiram duas etapas na evolução do movimento liberal e do Estado liberal: a primeira, a da conquista da liberdade; a segunda, a da exploração da liberdade. Como legado do Estado liberal, a liberdade e a igualdade jurídicas, apesar de formais, incorporaram-se ao catálogo de direitos das pessoas humanas, e não apenas dos sujeitos de relações jurídicas, e nenhuma ordem jurídica democrática se via como tal sem esses dois valores.

Com isso:

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houve a retomada dos flancos deixados ao alvedrio dos indivíduos durante o Estado Liberal e, de forma cogente, o Estado passou a disciplinar as relações político-econômicas e foi aos poucos se reapropriando do espaço conquistado pela sociedade civil burguesa. Com o advento do Estado Social, fruto da composição entre o liberalismo e o socialismo, tem-se um movimento em prol de direitos e, consequentemente, um avanço do princípio democrático. O Estado passa a ocupar uma posição proeminente na sociedade, a de interventor e mediador das relações jurídicas interindividuais, e a atividade legislativa é vista como alternativa de viabilizar a intervenção do Estado no domínio privado, sobretudo o fenômeno do dirigismo contratual (GOEDERT, PINHEIRO, 2012, p. 468).

A indubitável...

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