A constitucionalização do direito

AutorPaulo Hermano Soares Ribeiro - Edson Pires da Fonseca
Ocupação do AutorProfessor de Direito Civil das Faculdades Pitágoras de Montes Claros, MG e da FADISA - MG. Tabelião de Notas. Advogado licenciado. - Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito na FADISA e na FAVAG - MG
Páginas149-173

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Com o final da Segunda Guerra Mundial o anseio positivista de construção de um direito asséptico, rigidamente separado da moral e dotado de objetividade matemática, caiu por terra. As ignomínias perpetradas principalmente pelo nazismo chamaram a atenção da comunidade jurídica para os perigos que o modelo jurídico dominante à época, o juspositivismo, representava.

De imediato, houve um regresso ao jusnaturalismo. Contudo, não se atingiu a finalidade esperada. Embora o jusnaturalismo reaproximasse

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direito e moral, direito e justiça, não atendia aos reclamos de objetividade e certeza exigidos em um estado democrático.

Com efeito, ficou evidente o esgotamento da dicotomia juspositivismo versus jusnaturalismo, que dominou o cenário jurídico durante séculos. Descortinou-se, então, uma terceira via para a teoria do direito, denominada, na falta de melhor nomenclatura, de pós-positivismo.

O pós-positivismo reaproximou direito e moral, mas sem a necessi-dade de apelar para o subjetivismo que margeia o jusnaturalismo. No contexto pós-positivista coube aos princípios constitucionais servirem de porta de entrada da moralidade no direito.

Mas não foi só. De meros coadjuvantes no ordenamento jurídico, terceira opção apresentada pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro5para a colmatação de lacunas (art. 4º da LINDB), os princípios foram alçados à condição de verdadeiras normas jurídicas, dotados, tais quais as demais normas, de imperatividade.

O enorme desrespeito ao ser humano patrocinado pelos regimes de exceção da primeira metade do século XX chamou a atenção para a necessidade de reconhecimento do caráter normativo da constituição e dos princípios nela inscritos.

Converge majoritariamente a doutrina para o reconhecimento de que o processo de constitucionalização do direito ora tratado tem a sua gênese no direito alemão, construído principalmente sob os auspícios da Lei Fundamental de Boon, de 1949. Também integram o mesmo contexto a Constituição da Itália (1947), da Grécia (1975), de Portugal (1976) e da Espanha (1978)6.

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Martins assevera que a constitucionalização do direito é um fenômeno típico do controle de constitucionalidade concentrado alemão. Com base nele, a fronteira entre o direito constitucional e os demais ramos do direito, em especial o direito privado, desaparece gradualmente7.

De acordo com Barroso, deve-se entender por constitucionalização do direito o "efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico". O sentido e a validade de todas as normas do direito infra-constitucional passam a ser condicionados pelos valores, finalidades públicas e comportamentos previstos nos princípios e regras da Constituição8.

Por sua vez, Canotilho entende por constitucionalização "a incorporação de direitos subjectivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário (Stourzh)". De acordo com o mestre lusitano, a mais notória consequência da constitucionalização é a proteção dos direitos fundamentais por meio do controle jurisdicional de constitucionalidade. "Por isso e para isso, os direitos fundamentais devem ser compreendidos, interpretados e aplicados como normas jurídicas vinculativas e não como trechos ostentatórios ao jeito das grandes ‘declarações de direitos’"9.

A constitucionalização do direito tem como causas próximas o desenvolvimento da dogmática dos direitos fundamentais no pós-guerra e a ampliação de sua proteção por meio da decisiva atuação do Tribunal Constitucional Federal. De acordo com Martins, a constitucionalização do direito produziu reflexos imediatos nas relações jurídicas privadas; princípios como autonomia da vontade e pacta sunt servanda saíram bastante enfraquecidos10.

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O mais célebre precedente do Tribunal Constitucional acerca da constitucionalização do direito é o caso Lüth, julgado em 15 de janeiro de 1958, ao qual retornaremos no tópico concernente à horizontalidade dos direitos fundamentais.

Embora pareça trivial ao jurista contemporâneo a submissão dos demais ramos do direito às diretrizes constitucionais, "nem sempre foi assim, especialmente por causa da milenar tradição do direito privado como área reservada à autonomia privada, não submetida às previsões do direito público"11.

No Brasil, coube à Constituição Federal de 1988 a nobre tarefa de reconduzir o país à democracia, suplantada por mais de duas décadas de ditadura militar. Contudo, é óbvio, não bastou o mero advento do novo texto constitucional para que as mudanças ocorressem e para que o direito constitucional e a sua principiologia irradiassem por todo o ordenamento jurídico.

Mais difícil do que modificar textos normativos é alterar a mentalidade de quem está incumbido de lhes dar vida e concretude. Durante mais de uma década a nova Constituição foi interpretada à luz de ferramentais hermenêuticos inadequados para a sua compreensão. Mirou-se o novo com olhos velhos. É certo, porém, que, por mais que se obstaculize a sua chegada, "o novo sempre vem".

Com efeito, foram necessários vários anos para que a Constituição Federal de 1988 fosse interpretada à luz de ferramentas hermenêuticas consentâneas com a sua estrutura normativa. Optou-se, durante anos, por ferramentas inadequadas para assegurar a concretização de um modelo constitucional como o vigente no Brasil.

Criaram-se efetivos procedimentos interpretativos de bloqueio12, que impediram os princípios plasmados no novo texto constitucional de irradiarem plenamente pelo ordenamento jurídico.

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Em diversos momentos a legislação infraconstitucional sobressaiu-se em relação à Constituição. Embora seja inegável que houve avanços nessa seara, há ainda um longo e íngreme percurso para se trilhar; muitos são os profissionais do direito que insistem em privilegiar os códigos em detrimento da Constituição.

Paulatinamente, ao longo dos anos de mil novecentos e noventa, nova cultura constitucional começou a ser gestada. Em pouco tempo construiu-se sólida e diversificada doutrina constitucional, que não se restringiu a importar acriticamente teorias estrangeiras; ocupou-se das peculiaridades do Brasil, chamado por Barroso, juntamente com Portugal e Espanha, de Estado de democratização mais tardia13.

Embora a incumbência seja de monta, com tropeços e avanços, pode-se concluir que a Constituição vem desempenhando razoavelmente o seu papel.

Em que pese o Brasil ainda não seja nem sombra daquilo que foi idealizado pelo constituinte de 1988, também não é mais o país que era. Apesar dos inúmeros atropelos as instituições republicanas estão em pleno funcionamento, possibilitando que graves crises institucionais fossem superadas dentro da própria ambiência constitucional, sem que se recorresse às traumáticas rupturas e golpes do passado.

Certo é que não basta a edição de um novo texto constitucional para que, como em um passe de mágica, tudo mude. A força normativa da constituição não advém exclusivamente de seu texto; é caudatária, como bem salientou Hesse, da vontade de constituição, ou seja, da vontade de todos aqueles que vivem sob a sua égide de concretizá-la14.

À parte os inúmeros obstáculos enfrentados, pode-se afirmar que a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada na tarde de 05 de outubro de 1988, começou a ocupar o lugar que lhe é de direito, qual seja, o cume do ordenamento jurídico.

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A Constituição de 1988, diferentemente da estadunidense, é uma constituição detalhista, minuciosa; seu texto traz os anseios dos diferentes grupos sociais que vivem no Brasil. Embora muitos privilégios também tenham sido constitucionalizados, não há como negar que se trata da Constituição de um estado plural.

As muitas contradições trazidas pelo texto constitucional vigente marcam, ao fim e ao cabo, as próprias contradições presentes no país15.

Cada grupo social organizado quis incluir na Constituição as suas reivindicações, represadas por décadas de silêncio impostas pelo regime de exceção que assolou o Brasil.

Diante disso, por exemplo, o mesmo texto constitucional que assegura a propriedade privada, condiciona a sua proteção ao cumprimento da função social; ademais, alguns dos principais pressupostos do capitalismo liberal caminham lado a lado com os direitos sociais, típicos do socialismo.

Cada grupo social quer efetivar a parte do texto constitucional que lhe cabe, deixando ao léu os demais. Nesse cenário de antagonismo, a tensão é inevitável, exigindo do intérprete o manuseio de sofisticadas ferramentas hermenêuticas para harmonizar a Constituição, conferindo-lhe máxima efetividade.

Ressalva-se que não se desconhece que os detentores do poder econômico e político colecionam maior número de vitórias quando buscam efetivar os seus direitos. Não foi sem razão que Clève afirmou que o maior desafio do constitucionalismo brasileiro contemporâneo será concretizar integralmente a Constituição e não apenas a parte em que assegura os privilégios das elites16.

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Com a retomada, no período pós-ditadura militar, das discussões constitucionais no Brasil, aliada às mudanças realizadas nos últimos anos na composição do STF, enfim parece que sopram alvissareiros ventos sobre a Constituição de 1988. Como disse Bonavides, "[...] já não são os Códigos nem os codificadores, senão as Constituições e os constituintes, que imprimem a verdadeira fisionomia a um ordenamento jurídico na evolução do Estado contemporâneo"17.

Ainda que tardiamente, parece que finalmente o direito brasileiro entrou na chamada era das constituições. Está em plena marcha no Brasil um processo denominado constitucionalização do direito. Embora...

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