Constitucionalidade / inconstitucionalidade: uma questão política?

AutorProf . Inocêncio Mártires Coelho
CargoProfessor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília. Presidente do Instituto Brasiliense de Direito Público. Advogado e Consultor Jurídico. Ex-Procurador-Geral de República.
Páginas1-24

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I Colocação do tema

Para esclarecer, desde logo, o porquê da pergunta que serve de mote para esta exposição, relembremos a conhecida frase de Charles Hughes - então Governador do Estado de Nova York e, mais tarde, membro da Suprema Corte dos Estados Unidos -, a proclamar que os americanos viviam sob uma constituição, mas que essa carta política era aquilo que os seus juizes achavam que ela era, uma sentença evidentemente polêmica, mas que nem por isso é desprovida de fundamento.1

Assumido esse ponto de partida, cumpre registrar que a frase de Hughes não compromete o princípio da separação dos poderes, porque tanto nos Estados Unidos, quanto nas demais nações democráticas - ressalvadas pequenas diferenças de concepção, que não lhe comprometem a essência -, jamais se contestou a validade desse princípio, de resto uma exigência de natureza histórica e ideológica, cuja observância, de par com o respeito aos direitos e garantias individuais, pelo menos desde a Revolução Francesa é Page 2 reputada indispensável para que se reconheça a dignidade de Estado constitucional a toda comunidade política.

O de que se trata, portanto, é de situar as palavras de Charles Hughes no contexto da jurisdição constitucional norte-americana, que lhe inspirou a formulação, uma realidade essencialmente idêntica à de todos os países cujas leis fundamentais - especialmente na sua parte dogmática - ao se estruturarem como sistemas abertos de regras e princípios2, só por isso se tornam "vulneráveis" a múltiplas e cambiantes interpretações.

No caso emblemático dos Estados Unidos, essas mutações constitucionais3 mostram-se tão intensas quanto necessárias, seja pelo supersticioso respeito que os americanos devotam ao texto dos Pais Fundadores - não por acaso, em mais de 200 anos, a Constituição de 1787 só recebeu 27 Emendas, a última das quais em 19924 -, seja pelo crescente ativismo da Suprema Corte, um órgão eminentemente judicial nos primórdios do seu funcionamento, como registrou o próprio Hughes5, mas que no correr dos anos, em larga medida com o apoio da opinião pública, veio a se converter numa Superlegislatura ou numa simples variante do poder legislativo.6

Noutras palavras, quando se afirma que o sentido dessas constituições, conquanto se deva presumir objetivo, em verdade é aquele fixado pelos seus intérpretes mais autorizados - no caso, pelas cortes que exercem a jurisdição constitucional - o que se está a dizer é que nesses sistemas jurídicos, porque (a) trabalham com fórmulas lapidares ou enunciados abertos e indeterminados, quais os que definem os direitos fundamentais nas constituições modernas; (b) estão situados fora e acima da tradicional tripartição dos poderes estatais7; e Page 3 (c) desfrutam de singular autoridade, esses intérpretes finais da constituição acabam positivando a sua concepção de justiça - rigorosamente a sua ideologia - que outra não é senão aquela da classe social, hegemônica, que eles integram e representam.8

Sobre essa supremacia institucional e o poder de que efetivamente dispõem as cortes constitucionais para recriar as constituições por via interpretativa, são particularmente expressivas estas palavras de Francisco Campos, proferidas na solenidade de abertura dos trabalhos do Supremo Tribunal Federal, em 2 de fevereiro de 1941:

"Juiz das atribuições dos demais Poderes, sois o próprio juiz das vossas. O domínio da vossa competência é a Constituição, isto é, o instrumento em que se define e se especifica o Governo. No poder de interpretá-la está o de traduzi-la nos vossos próprios conceitos. Se a interpretação, e particularmente a interpretação de um texto que se distingue pela generalidade, a amplitude e a compreensão dos conceitos, não é operação puramente dedutiva, mas atividade de natureza plástica, construtiva e criadora, no poder de interpretar há de incluir-se, necessariamente, por mais limitado que seja, o poder de formular. O poder de especificar implica margem de opção tanto mais larga quanto mais lata, genérica, abstrata, amorfa ou indefinida a matéria de cuja condensação há de resultar a espécie".9

Sob essa perspectiva, evidencia-se que a dicotomia constitucionalidade/inconstitucionalidade está estreitamente ligada ao problema da interpretação constitucional como hermenêutica de princípios, vale dizer, como atividade interpretativa que opera com parâmetros tão amplos e com métodos e critérios tão flexíveis, que o resultado desse trabalho assume nítida feição constituinte mas poucos se animam a discutir-lhe a consistência e legitimidade.10 Page 4

Muito pelo contrário, não são poucos os constitucionalistas de renome que defendem essa legislação judicial, como Alexander Pekelis, por exemplo, para quem o ideal de uma jurisprudência estimativa não é de modo algum incompatível com o ideal do Estado de direito, assim como o conceito de governo das leis não pressupõe nem exige que a criação do direito seja monopólio dos órgãos legislativos, até porque - anota o arguto jurista - se em determinado ambiente político e histórico essa monopolização algum dia se fez necessária, tal circunstância não a justifica em termos absolutos. Em conclusão - arremata Pekelis - tal monopólio não é suficiente nem necessário para preservar o ideal do Estado de direito; de um lado, porque as leis, e até mesmo as constituições, podem conter e às vezes contêm disposições ad personam que se contrapõem a esse ideal; de outro, porque esse ideal freqüentemente tem alcançado a sua mais alta expressão em normas universais de origem puramente judicial.11

Em suma, como intérpretes finais da Constituição e juizes últimos de sua própria autoridade, esses tribunais acabaram se transformando em "terceira câmara dos parlamentos", uma realidade que, nos Estados Unidos, o mesmo Pekelis associou à peculiar estrutura normativo-material aberta da Constituição de 1787, mas que se pode observar em qualquer país que tenha uma constituição semelhante à norte-americana:

"Devemos recordar que em certo sentido os Estados Unidos não têm uma constituição escrita. As grandes cláusulas da Constituição americana, assim como as disposições mais importantes das nossas leis fundamentais, não contêm senão um apelo à honestidade e à prudência daqueles a quem é confiada a responsabilidade da sua aplicação. Dizer que a compensação deve ser justa; que a proteção da lei deve ser igual; que as penas não devem ser nem cruéis nem inusitadas; que as cauções e as multas não devem ser excessivas; que as investigações ou as detenções hão de ser motivadas; e que a privação da vida, da liberdade ou da propriedade não se pode determinar sem o devido processo legal, tudo isso outra coisa não é senão autorizar a criação judicial do direito, e da própria Constituição, pois a tanto eqüivale deixar que os juizes definam o que seja cruel, razoável, excessivo, devido ou talvez igual.12 Page 5

Dado o possível déficit de legitimidade democrática inerente a essa concepção estritamente judiciarista do bem comum - uma carência congênita que, evidentemente, não se compensa nem mesmo com o apelo às melhores criações judiciais do direito - diante disso ganham relevo esforços como o de Peter Häberle por uma visão republicana e democrática da interpretação das leis fundamentais, por uma fórmula jurídico-política centrada na tese de que uma sociedade aberta exige uma interpretação igualmente aberta da sua carta política, até porque "no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição".13

Com efeito, observa Peter Häberle que a teoria da interpretação constitucional, durante muito tempo, esteve vinculada a um modelo de interpretação de uma sociedade fechada, concentrando-se primariamente na interpretação constitucional dos juizes e nos procedimentos formalizados, do que resultou empobrecido o seu âmbito de investigação. Por isso, é chegada a hora de uma viragem hermenêutica radical para que a interpretação constitucional - que a todos interessa e a todos diz respeito - seja levada a cabo pela e para a sociedade aberta e não apenas pelos operadores oficiais da Constituição, muito embora institucionalmente a última palavra deva caber aos órgãos da jurisdição constitucional.

Em suma, se vivemos num Estado de direito, que se pretende liberal, democrático e social, torna-se imperioso que a leitura da sua Constituição se faça em voz alta e à luz do dia, no âmbito de um processo verdadeiramente público e republicano, de que participem os diversos atores sociais - agentes políticos ou não - porque, afinal, todos os membros da sociedade política "fundamentam na constituição, de forma directa e imediata, os seus direitos e deveres".14

Em estreita ligação com o tema, registra Enrique Alonso García15 que é crescente o reconhecimento de que a interpretação da Constituição tornou-se o problema central do judicial review e que nas discussões sobre a sua legitimidade, as controvérsias em torno da origem desse poder cederam lugar Page 6 aos debates sobre o método - é jurídico ou político ? - de que se utiliza a jurisdição constitucional para dar a última palavra sobre o sentido da Constituição, o que se justifica se considerarmos que a escolha do método e o seu manejo, de resto guiados pela pré-compreensão dos juizes, acabam determinando o conteúdo das suas decisões.16

Por outro lado, não havendo clima para contestações à própria Lei Fundamental - cuja legitimidade, de resto, ninguém põe em dúvida - parece que os...

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