A constitucionalidade das uniões homoafetivas: o reconhecimento como entidade familiar no ordenamento jurídico brasileiro

AutorSimone Braga e Raissa Carvalho
CargoGraduandas em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
1 Introdução

Em decorrência do papel atribuído ao Direito como norteador das relações humanas, esta área do conhecimento necessita estar sempre acompanhando as transformações incididas na sociedade, legislando, ou ainda, adaptando as normas existentes, de forma a satisfazer os anseios do corpo social. A sociedade, por conseguinte, não pode ser vista como um instituto imutável, mas como um organismo que a todo o tempo está suscetível a modificações. Nesse contexto, a caracterização do conceito de família sofreu profundas mudanças no decorrer do tempo, não estando mais atrelada unicamente ao vínculo do casamento, e nem a ligações, primordialmente, consangüíneas. Nesta seara, surge, em meio a essas mudanças, a questão das uniões homoafetivas e sua relação com o contexto familiar. É crescente no senso comum que tais uniões representam, na hodiernidade, um núcleo familiar. Entretanto, o ordenamento jurídico brasileiro vigente obstaculariza a sua consagração como entidade familiar, haja vista não abarcar as uniões homoafetivas no rol do direito de família, colocando, com essa atitude, todas as transformações ocorridas frente à realidade que ora se apresenta em um segundo plano.

Diante do exposto, este artigo tem como escopo demonstrar a constitucionalidade das uniões homoafetivas, destacando a possibilidade do reconhecimento destas como entidade familiar. A relevância do tema se encontra no fato da união homoafetiva ainda não se configurar como união estável dentro do Direito brasileiro, sendo-lhe privado o caráter familiar perante a esfera jurídica, desrespeitando, assim, os princípios fundamentais de dignidade, igualdade e liberdade. Na atual conjuntura, tal relação caracteriza-se como uma simples sociedade de fato. Todavia, é notório admitir a existência da convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas do mesmo sexo, características basilares para a constituição de família. Assim, faz-se imperioso reconhecer a existência de outro gênero de união estável, a qual corresponda a mais de uma natureza, a saber, a união estável entre um homem e uma mulher e a união estável homoafetiva.

Destarte, a metodologia empregada consiste em um estudo de cunho bibliográfico, compreendendo a doutrina, a legislação, e ainda a jurisprudência, tendo assim o intuito de categorizar e proceder às explicações pertinentes ao objeto de estudo investigado.

Desta feita, necessário se faz abordar em um primeiro momento e de forma breve a transformação do conceito de família dentro da sociedade e o reconhecimento, por parte do Direito, das uniões estáveis como entidade familiar. Posteriormente, faz-se forçoso destacar o contexto social em que se encontram as relações homoafetivas para, em seguida, descer as minúcias do conteúdo jurídico que norteia tais uniões. Por fim, serão tecidas as considerações finais acerca do tema ora proposto.

2 O conceito de família e o reconhecimento das uniões estáveis como entidade familiar

O Direito como instrumento regulador das relações sociais, deve representar uma imagem aproximada da sociedade na qual está inserido, evoluindo conforme as modificações desta. Esta ciência caracteriza-se não por ser um fim propriamente dito, mas sim uma direção que proporciona a convivência humana e o progresso da sociedade. Assim sendo, as instituições jurídicas sofrem transformações ao decurso do tempo. O Direito não é outra coisa que processo de adaptação1. Para garantir a ordem, a paz, a justiça, a segurança, é mister ao Direito desenvolver procedimentos sempre novos, uma vez que, se este caduca, deixa de corresponder a um processo adaptativo, não atendendo ao objetivo para qual foi instituído. Essa situação pode ser exemplificada no Direito Civil quando estudamos a transformação do conceito de família e suas inúmeras implicações para a vida jurídica.

Nesta linha de raciocínio, há tempos a composição da família esteve atrelada essencialmente ao pai, à mãe e aos filhos, tendo a figura paterna como chefe familiar e detentor do pátrio poder. Nesse âmbito, o conceito de família ligava-se ao conjunto de pessoas que descendiam de um mesmo tronco ancestral 2 e o laço do casamento constituiu, por muito tempo, uma condição sine qua non para a definição de família. Nesta seara, durante um longo período da nossa sociedade, uniões não acolhidas pelo instituto do matrimônio não puderam ser consideradas, sob uma óptica jurídica, como entidade familiar, ficando restritas as chamadas sociedades de fato.

Atualmente, passou-se a aceitar e a atender ao modelo de união no qual a reprodução não é mais o fito primeiro e único para a realização e concretização da definição de família e a mulher termina por equiparar-se ao homem no que tange a liderança da estrutura familiar. A nossa atual Constituição Federal, em seu artigo 226, parágrafo terceiro, abarcou o problema das uniões estáveis, reconhecendo-as como entidade familiar. Anteriormente ao nosso novo Código Civil, que traz dispositivos referentes às uniões estáveis, o ordenamento jurídico brasileiro já lançava um olhar para o problema apresentado através da lei nº 9.278/96 que procurava reconhecer as uniões supramencionadas como famílias. Desse modo, na atualidade, chega-se na possibilidade de formação de uma entidade familiar sem a necessidade exclusiva do matrimônio, ou ainda da presença do pai ou da mãe, existindo assim as famílias denominadas monoparentais, como estabelece a Constituição através do artigo 226, § 4º. Em matéria de jurisprudência, ainda são conhecidas as famílias anaparentais – formadas pela convivência entre parentes sem a presença dos pais - e eudemonistas – composta pela convivência entre pessoas unidas pelo laço do afeto e da solidariedade.3 Por todo exposto, pode-se aferir que, como organismo natural, a família, em toda a sua complexidade, não se esgota, enquanto como organismo jurídico, se estabelece sua nova organização.4

Dessa forma, ao admitir a existência da união estável, passando as sociedades de fato para um novo patamar, o ordenamento jurídico brasileiro concedeu distinta e inovadora proteção à família, uma vez que esta se tornou independente do ato do casamento. Nesse âmbito, para que a união possa ser considerada uma entidade familiar deve-se atender as exigências mínimas estabelecidas no art.1.723, caput, do novo Código Civil, a saber, a convivência pública, contínua e duradoura. As relações, por conseqüência, devem estar pautadas sob os deveres de respeito, lealdade e assistência, além da guarda, sustento e educação dos filhos se assim existirem. Urge colocar que um dos primeiros requisitos para o reconhecimento familiar se encontra no laço afetivo. As uniões, antes de estabelecerem entre si vínculos de qualquer outra natureza, estão amarradas pelo sentimento do amor. Conquanto, pode-se concluir que o liame primeiro para a constituição de uma família passou do vínculo consangüíneo para o laço do amor e do afeto. Dessa maneira, nada impede que a convivência entre pessoas, seja de sexos opostos, seja do mesmo sexo, unidas primordialmente pelo afeto, possa ser vista como entidade familiar.5 Assim sendo, cabe agora destacar o contexto social em que se encontram as relações homoafetivas, assim como a possibilidade de seu enquadramento como união estável.

3 A união homoafetiva como entidade familiar

As uniões homoafetivas, paulatinamente, vêm angariando a aceitação da sociedade. Isso pode ser explicado principalmente pelo empenho constante e cada vez maior da comunidade homossexual em prol do reconhecimento dos seus direitos. Um exemplo disso é a aprovação crescente de legislações que buscam proteger os interesses das relações homoafetivas, a exemplo da África do Sul em sua Constituição de 1996 e diversos países europeus como Suécia, Noruega, Dinamarca, França, Finlândia e Islândia que já possibilitam a parceria civil registrada, permitindo a reivindicação de grande parte das prerrogativas do casamento6.

Assim sendo, dentro da seara nacional, apesar de, no plano jurídico, a relação homoafetiva encontrar dificuldades no que concerne ao seu...

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