Jurisdição constitucional e princípio da proporcionalidade no Brasil

AutorGustavo Ferreira Santos
Páginas76-84

Page 76

Introdução

A Constituição de 1988 traz um amplo e complexo catálogo de direitos fundamentais. 1A aplicação da Constituição faz surgirem diversos conflitos entre direitos, exigindo do intérprete/aplicador um esforço de maximização desses direitos, o que levou à recepção no país do chamado princípio da proporcionalidade, de uso há mais longo tempo em outros países.

Com o princípio da proporcionalidade, a atividade de ponderação de direitos e interesses constitucionalmente consagrados aparentemente fica mais controlável, à medida que se submete a um procedimento de justificação. Mas, também, o uso genérico da ideia de proporcionalidade, sem uma justificação mais detalhada, que, por exemplo, analise a ocorrência dos seus subprincípios, pode levar à adoção de decisões com alto grau de subjetivismo, o que pode acrescer questionamentos quanto à legitimidade da jurisdição constitucional.

Neste trabalho, lançamos um olhar sobre o princípio da proporcionalidade, dando ênfase à necessidade de transformá-lo em instrumento de justificação de decisões em casos de colisões de direitos fundamentais. Construir uma prática de controle jurisdicional da atividade legislativa que não aprofunde a tensão entre democracia e Constituição deve ser um desafio de todos os que se dedicam ao estudo da jurisdição constitucional.

Antes, portanto, colocamo-nos a tarefa de refletir sobre a tensão entre Constituição e democracia, especialmente enfocando o papel que a Jurisdição Constitucional exerce no Estado Constitucional. Com isso, fundamentamos a nossa visão, que exige um maior rigor na demonstração da operação prática de solução de colisões de direitos fundamentais e exige uma postura de autocontenção do tribunal responsável pelo controle.

1 Jurisdição constitucional e legitimidade democrática

A jurisdição constitucional está no centro da tensão entre democracia e Constituição, na medida em que representa um controle do legislador democrático por órgãos não eletivos. A discussão sobre a legitimidade da supremacia da Constituição, que remonta, ainda, os debates constitucionais da nascente federação norte-americana, hoje precisam ser recolocados, sob novo enfoque, uma vez que se potencializou a restrição à decisão majoritária, com as constituições garantidas da atualidade.

A segunda metade do Século XX viu um vertiginoso crescimento da jurisdição constitucional no mundo, embalada, especialmente, por uma justificável preocupação com possíveis totalitarismos, que uma versão formal de democracia havia provado não ser capaz de obstar. O trauma do nacional-socialismo não impulsionou apenas a Alemanha no sentido do estabelecimento de um forte controle, concretizador de direitos fundamentais, mas estendeu ao mundo essa apreensão.

O controle da constitucionalidade de atos do legislador deve ser visto como uma função excepcional do Poder Judiciário. O Judiciário precisa exercer sua função de forma controlada, para evitar que a posição à qual ele foi alçado com a revisão judicial da legislação transforme-se em empecilho para a vida política de um país, ou até mesmo que ele seja submetido a pressões incompatíveis com suas funções. 2

Hoje, mesmo de forma não declarada ou até mesmo inconsciente, no debate sobre funções de "representante" e de "juiz", há quem defenda a segunda função exclusivamente com base em uma enumeração de defeitos da primeira função. Isso pode até desgastar a legitimidade do papel do representante, mas não sustenta por si só a expansão da jurisdição constitucional. Os dois, representante e juiz, inovam no direito, cada um à sua forma, mas aparentemente a decisão legislativa é mais arbitrária, imagem que decorre do fato de que o legislador deixa clara a natureza de sua função, dizendo "esqueçam o que a lei foi o tempo todo. É assim que ela vai ser agora", quando o juiz age como se estivesse "descobrindo" um Direito desde sempre existente. 3

Não somos adeptos, porém, da identificação pura e simples de um espaço de não-jurisdição, como ocorre com a técnica das politicai questions. Todo ato normativo, em nosso sistema, é passível de revisão judicial. Aliás, esse deve ser um ponto de partida para o intérprete. Não será meramente a Page 77 natureza política do ato atacado que afastará o controle pelo Poder Judiciário. Porém, deverá ser tomada em conta a dificuldade de controlar o conteúdo de certas decisões e, muitas vezes, a legitimidade do processo que levou à sua adoção influenciará a tomada de posição pelo Judiciário.

O juiz que recebe da Constituição o poder de aferir a constitucionalidade de leis não pode ser entendido como um elemento neutro. Questões políticas lhe são apresentadas por estarem envolvidas na aplicação do Direito e a elas ele deve dar respostas. Seria absurdo esperar que o juiz, diante de uma questão que envolvesse claramente elementos políticos, suspendesse o julgamento para aguardar uma definição dos representantes do povo ou, o que seria pior, deixasse de dar resposta adequada à demanda levada ao Judiciário.

Ao ser explicitada na Constituição a função de guarda da constitucionalidade, o Judiciário recebe uma atribuição política inegável. Esse elemento político da Jurisdição Constitucional não pode ser esquecido. É preciso que o juiz constitucional tenha sempre isso claro na hora de decidir. O exercício dessa função deve ser observado e controlado pela sociedade, com consciência dimensão política das questões constitucionais. Isso é da essência de sistemas que permitem ao Juiz revisar a legislação. Nunca é demais lembrar que Tocqueville identificava um poder político no juiz norte-americano e o justificava no fato de que, diferentemente da realidade de outros países, esse juiz fundava suas decisões na Constituição e não nas leis. 4

O que se espera é que ele esteja consciente dessa dimensão política da sua decisão, quando o conflito que lhe é apresentado envolve questões de inconstitucionalidade. Nesse julgamento, muitas vezes se fará necessária a autocontenção. Deve voltar-se o juiz a garantir o próprio espaço de decisão democrática. Peter Haberle, ao propor uma visão ampliada quanto aos sujeitos da interpretação constitucional, acaba por indicar que o Juiz constitucional tem que considerar o grau de participação no debate político que resultou no ato normativo atacado por inconstitucional. Ao seu ver, "um minus de participação deve levar a um plus de controle constitucional". 5 Esse olhar democrático a ser exigido da Jurisdição Constitucional pode reconciliar, em alguma medida, democracia e revisão judicial.

Com Robert Alexy, podemos afirmar que "um princípio formal essencial é a competência decisória do legislador democraticamente legitimado" 6. Essa afirmação é feita no contexto de uma resposta ao que ele chama de objeção competencial ao chamado modelo de regras/princípios. Tal objeção teme que ocorra um deslocamento da competência dos Parlamentos para os tribunais, sob o pretexto de serem aplicados aos casos sob decisão princípios constitucionais.

A interpretação constitucional deve evitar fixar um único caminho possível para a decisão democrática. Um legislador totalmente vinculado significaria também uma sociedade atada. Quando razoavelmente justificáveis mais de uma posição para a adoção de uma norma infraconstitucional, o intérprete precisa evitar a interpretação da Constituição que indica a única providência material disponível ao Estado diante da Constituição.

Esse risco de obstrução da democracia, com a fixação pelo Poder Judiciário do "caminho correto" a ser percorrido pelo legislador e pelo administrador, decorre daquilo que Paulo Otero, ao criticar a Constituição Portuguesa de 1976, chamou de hipervoluntarismo, que consistiria em comportar as normas constitucionais "um verdadeiro programa de ação governativa e legislativa com a pretensão de tudo mudar" 7. A tentação de preencher os genéricos preceitos constitucionais com uma interpretação que dê respostas eficazes aos problemas que lhe são apresentados potencializa essa expansão dos poderes do Judiciário e pode produzir uma redução da capacidade da sociedade de dar novas respostas a novos problemas, por meio das disputas políticas cotidianas, que resultariam na adoção de medidas.

Evidentemente, deve conter a decisão certo grau de objetividade, com a demonstração de que, ao decidir, o intérprete/aplicador seguiu um caminho argumentativo justificável dentro da lógica do sistema. Conceitos morais vagos não podem ser tomados como fundamentos exclusivos para a declaração de inconstitucionalidade. Ancorar a decisão na Constituição obriga o intérprete/ aplicador do Direito a recorrer a técnicas interpretativas que explicitem claramente o percurso entre o problema e a caracterização da inconstitucionalidade.

As cláusulas gerais contidas na Constituição servem, muitas vezes, como álibis para a imposição pelo Judiciário de uma visão particular sobre um determinado problema moral. Ingeborg Maus afirma que "quando a Justiça - em todas as suas instâncias - decide questões morais polêmicas por meio de pontos de vista morais, pratica assim a 'desqualificação' da base social" 8. Page 78

A experiência norte-americana mostra um país com um Judiciário que tem dado a última palavra em um conjunto amplo de temas morais. Hoje, com a mudança na composição da Suprema Corte, cada vez mais conservadora, especialmente com a nomeação de John Roberts para a presidência e a substituição da juíza Sandra O'Connor, teme-se por uma espécie de ativismo conservador, intervindo a Corte contrariamente à liberdade em matérias como eutanásia, aborto e direitos de homossexuais.

John Hart Ely buscou conciliar...

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