Consolidando a Tortura mementos da barbárie

AutorAlexandre Pontieri
CargoAdvogado

Um dos casos mais famosos, que foi notícia tanto no Brasil como no exterior, foi o Caso da Favela Naval, quando, nos dias 6 e 7 de março de 1997, na cidade de Diadema (SP), policiais militares espancaram, torturaram e mataram o conferente Mário José Josino. Tudo devidamente registrado pelas câmeras de um cinegrafista, que seriam posteriormente transmitidas pela TV Globo em seu Jornal Nacional(1).

A barbárie chamada tortura continua existindo e alcançando seus objetivos. De acordo com dados do Human Rights Watch, existe, “segundo grupos brasileiros de direitos humanos, um número significativo de delegacias policiais no Brasil e talvez até mesmo a maioria delas possua uma cela de tortura. Essa cela é normalmente chamada de sala do pau, em referência à técnica de tortura mais utilizada pela polícia brasileira, o pau-de-arara. Este consiste de uma barra, na qual a vítima é suspensa por trás dos joelhos com as mãos amarradas aos tornozelos. Uma vez no pau-de-arara, a vítima, normalmente despida, sofre espancamentos, choques elétricos e afogamentos. Afogamento, por sua vez, é uma técnica de tortura pela qual a cabeça da vítima é imersa em um tanque de água, ou água é jogada na boca e narinas da vítima causando a sensação de afogamento. Segundo aqueles que passaram por tal forma de tortura, a experiência produz uma sensação terrível de morte iminente”.

E continua, “durante a pesquisa, a Human Rights Watch entrevistou dezenas de presos que, de forma convincente, descreveram a tortura em delegacias nos primeiros momentos de suas detenções. Um preso em Manaus, condenado por tráfico de drogas, descreveu como fora torturado em uma delegacia, pendurado de cabeça para baixo por mais de três horas e espancado com paus até a fratura de suas costelas. Em São Paulo, presos da carceragem do Depatri descreveram que foram levados à sala de torturas num andar superior onde retalhos de pano foram postos em suas bocas enquanto sofriam choques elétricos nas orelhas, pescoços e debaixo dos braços. Mas foi no estado de Minas Gerais onde ouvimos as mais consistentes e convincentes denúncias de tortura. Com freqüência, os presos entrevistadospermaneciam nas mesmas delegacias onde sofreram os abusos, expostos ao contínuo contato com seus torturadores.”(2)

O difícil é saber: por quê se recorre tanto ao uso da tortura, apesar de todos os avanços humanísticos(3)?

Sempre atuais as lições de Michel Foucault ao descrever que “o suplício tem então uma função jurídicopolítica. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo o seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada, submissão dos súditos revoltados): por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe aos olhos de todos uma forma invencível. Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dessimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força. Se a reparação do dano privado ocasionado pelo delito deve ser bem proporcionada, se a sentença deve ser justa, a execução da pena é feita para dar não o espetáculo da medida, mas do desequilíbrio e do excesso; deve haver, nessa liturgia da pena, uma afirmação enfática do poder e de sua superioridade intrínseca. E esta superioridade não é simplesmente a do direito, mas a da força física do soberano que se abate sobre o corpo de seu adversário e o domina. Atacando a lei, o infrator lesa a própria pessoa do príncipe: ela – ou pelo menos aqueles a quem ele delegou sua força – se apodera do corpo do condenado para mostrá-lo marcado, vencido, quebrado”.(4)

E o mesmo Foucault nos traz um relato de um caso de tortura ocorrido na França antiga:

“Damiens fora condenado (a 2 de março de 1757) a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris (aonde devia ser) levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; (em seguida), na dita carroça, na praça de Grève, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento”.(5)

A tortura no Brasil, como obtenção de meio de provas por intermédio da confissão e como forma de castigo a prisioneiros, existe desde os tempos de seu descobrimento pelos portugueses, no ano de 1500, tendo os índios que aqui habitavam, sofrido com os novos tratamentos trazidos do velho continente.

Nos dois períodos ditatoriais republicanos, de 1937 a 1945 (o chamado Estado Novo) e entre 1964 e 1985 (a ditadura militar ), a prática da tortura não só passou a alcançar opositores políticos de esquerda, como sofisticou- se nas técnicas adotadas. No final dos anos 60 e início dos anos 70, as ditaduras militares do Brasil e de outros países da região criaram a chamada Operação Condor, para perseguir, torturar e eliminar opositores(6). Receberam o suporte de especialistas militares norteamericanos, ligados à CIA, que ensinaram novas técnicas de tortura para obtenção de informações. A Escola das Américas, instalada nos EUA, foi identificada por historiadores e testemunhas como um dos centros de difusão de técnicas associadas à prática da tortura e maustratos(7).

Em seu livro de memórias, o ex-presidente Ernesto Geisel afirmava:

“(...)que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter informações. (...) no tempo do governo Juscelino alguns oficiais, (...) foram mandados à Inglaterra para conhecer as técnicas do serviço de informação inglês. Entre o que aprenderam havia vários procedimentos sobre tortura. O inglês, no seu serviço secreto, realiza com discrição. E nosso pessoal, inexperiente e extrovertido, faz abertamente. Não justifico a tortura, mas reconheço que há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas confissões e, assim, evitar um mal maior”(8).

Conforme citado no trabalho elaborado por Cecília Maria Bouças Coimbra(9), em 1971, foi elaborado pelo Gabinete do Ministro do Exército e pelo seu Centro de Informações (CIEx) um manual sobre como proceder durante os interrogatórios feitos a presos políticos(10). Alguns trechos apontavam que:

“(...) O interrogatório é uma arte e não uma ciência (...). O interrogatório é um confronto de personalidades. (...). O fator que decide o resultado de um interrogatório é a habilidade com que o interrogador domina o indivíduo, estabelecendo tal advertência para que ele se torne um cooperador submisso (...). Uma agência de contra-informação não é um tribunal da justiça. Ela existe para obter informações sobre as possibilidades, métodos e intenções de grupos hostis ou subversivos, a fim de proteger o Estado contra seus ataques. Disso se conclui que o objetivo de um interrogatório de subversivos não é fornecer dados para a justiça criminal processá-los; seu...

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