O papel da comunidade na consolidação de políticas socioeducativas e no fortalecimento da cidadania de adolescentes autores de ato infracional

AutorMarli M. M. da Costa; Rosane T.C. Porto
CargoPós-Doutora em Direito pela Universidade de Burgos/Espanha; Mestre em Direito, área de concentração
Páginas85-100

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Introdução

No Brasil, não se pode afirmar socialmente que existe um período delimitado e único para o "adolescer", muito embora a Organização Mundial da Saúde delimite o período entre 12 e 19 anos. Isso se explica porque o país é demarcado pelas desigualdades sociais, o que interfere sistematicamente na fase de maturação e transformação de seus infantes.12 Estudos da UNICEF revelam assustadoramente que centenas de crianças e adolescentes estão fora das escolas, vivem com as suas famílias em situação de miserabilidade, estão à mercê de todo tipo de violência e abandono.3

Note-se que a Constituição da República Federativa de 1988, ao reconhecer a criança e o adolescente como sujeitos em formação e desenvolvimento psíquico e intelectual, dispondo de um estatuto próprio (O Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei n. 8.069/90), também primou pela implementação de políticas públicas de atendimento que visassem assegurar e garantir seus direitos Page 86 fundamentais que estão entrelaçados com o princípio da dignidade da pessoa humana.

No entanto, pela realidade brasileira, percebe-se o descaso e a ausência estatal em implementar e efetivar as políticas públicas de proteção à infância e à juventude. É inconcebível aceitar o abandono que o Estado ou a sociedade demonstram com relação às suas crianças e aos seus adolescentes; por isso, faz-se necessário uma retomada do sentido de comunidade, bem como o fortalecimento das relações sociais tão bem pontuadas pelo sociólogo Zygmunt Bauman. Ademais, compreendendo esses dois pontos, é possível reafirmar a importância de reconhecimento da cidadania dos adolescentes autores de ato infracional que também são vítimas da exclusão social como processo de reinserção social no espaço local pela garantia de políticas públicas sociais4.

1 A exclusão social em debate

A pobreza, a exclusão e as desigualdades entre os indivíduos são fenômenos sociais que operam de forma alastrante e aniquiladora, pois, a par dos mesmos, está o controle social criado pelo Estado, com o objetivo de reduzir-lhes a condição desumana e de vulnerabilidade. Como explica Bauman:

Considerada la natureza del juego actual, la miséria de los excluídos - que em outro tiempo fue considerada una desgracia provocada colectivamente y que, por lo tanto, debía ser solucionada por medios colectivos - sólo puede ser redefinida como un delito individual. Las "clases peligrosas" son consideradas clases criminales, y las cárceles pasan a desempeñar las funciones que antes les cabía a las ya casi desaparecidas instituciones del Estado benefactor. Y, a medida que se reducen las prestaciones de asistencia social, lo más probable es que las cárceles tengan que seguir desempeñando ese papel, cada vez con mayor intensidad.5

Nesse sentido, as pessoas que vivem à margem da sociedade são controladas pelo Estado para não resistirem e aceitarem a condição de vida a que estão submetidas. Seria como uma espécie de poder disciplinador imposto ao seu modo de convivência que, por sua vez, "protegeria" as classes sociais com poder Page 87 econômico elevado de serem "atacadas" por esses indivíduos marginalizados. Do mesmo modo, complementa Bauman sobre a pobreza e sua relação com o delito:

La pobreza, entonces, deja de ser tema de política social para convertirse en asunto de justicia penal e criminal. Los pobres ya no son los marginados de la sociedad de consumo, derrotados en la competencia feroz; son los enemigos declarados de la sociedad. Sólo una delgadísima línea, muy fácil de cruzar, separa los beneficiarios de los planes de asistencia de los traficantes de drogas, ladrones y asesinos. Quienes viven de los beneficios sociales son el campo de reclutamiento de las bandas criminales: finaciarlos es ampliar reservas que alimentarán el delito.6

No entanto, esse controle não é efetivo e eficaz, pois muitos indivíduos, em especial os adolescentes, buscam resistir a essa imposição e condição de assujeitamento, empregando a violência para externar a sua voz silenciada, de maneira que possa ser escutado e reconhecido pelo outro, diga-se aqui percebido pela sociedade como cidadão. Portanto, a violência infanto-juvenil, além de representar uma das muitas faces da violência propriamente dita, é reconhecida pela imposição de uma vontade do adolescente em conflito com a lei sobre outro sujeito, o que desencadeia um processo de vitimização para ambos.

Todavia, é preciso ser bem claro: a pobreza, a exclusão e as desigualdades sociais não são justificativas fundamentadoras para a violência infanto-juvenil, porém podem contribuir para a disseminação de violência quando não enfrentadas com políticas públicas inclusivas.

Ademais, Sposati afirma que "a exclusão é a negação da cidadania"7, pois, além de representar uma afronta aos direitos sociais, contribui para o rotulamento do sujeito em tal condição.

Ao encontro dessa assertiva, alguns autores, como Dupas, consideram a exclusão social como fator multidimensional pela diversidade de fatores que estão imbricados entre si, destacando a falta de acesso a bens e serviços, à segurança, à justiça e à cidadania como a impossibilidade de garantir um mínimo existencial para o ser humano.8

Para Castel, a exclusão social é o extremo do processo de "marginalização" do sujeito quando da ruptura com o mercado de trabalho. 9 Page 88

Uma parte considerável da população vive em situação de vulnerabilidade, ou seja, de pobreza e que, por isso, torna-se excluída ou pode-se denominar desenraizada social.10 A globalização fragiliza as relações sociais, pois o seu sistema também produz "lixo humano" ou pessoas rejeitadas pela sociedade. Nos dizeres de Bauman:

O "lixo humano" tem sido despejado desde o início em todos os lugares nos quais essa economia foi praticada. Enquanto essas terras estavam confinadas a uma parte do globo, entretanto, uma "indústria de remoção do lixo" efetivamente global, no forma do imperialismo político e militar, conseguia neutralizar o potencial mais explosivo da acumulação de lixo humano. Problemas localmente produzidos exigiam, e encontravam, uma solução global. Tais soluções não estão mais disponíveis: a expansão da economia capitalista finalmente se emparelhou com a amplitude global da dominação política e militar do Ocidente, e assim a produção de "pessoas rejeitadas" se tornou um fenômeno mundial. No presente estágio planetário, o "problema do capitalismo", a disfunção mais gritante e potencialmente explosiva da economia capitalista, está mudando da exploração para exclusão. É essa exclusão, mais do que a exploração apontada por Marx um século e meio atrás, que hoje está na base dos casos mais evidentes e de aumento do volume de pobreza, miséria e humilhação.11

Dito de maneira diversa, a globalização no Ocidente, com a força capitalista, gera lixo humano quando as pessoas não têm condições de consumir e de se manter no mercado.

Por conseguinte, nesse cenário em que a pobreza é considerada rótulo para identificar os prováveis rejeitados e excluídos pelo sistema capitalista está o adolescente que também, pela reprodução cultural, tem sua cidadania negada.12

A cidadania ativa está vinculada a uma sociedade específica e que também deve gerar nos seus membros um sentimento de pertencimento e reconhecimento das necessidades humanas e básicas suas e do outro. Contudo, na prática, tal premissa não é tão simples, pois há de se ter certas reservas e cautelas com os discursos disseminados na sociedade contemporânea, assim como compreender o quão distantes estão as pessoas de se identificarem pertencentes a uma comunidade, sem considerar os seus semelhantes como "mero estranhos".13 Page 89

Dentro da atual conjuntura, observa-se que a globalização tem contribuído sistematicamente para romper com as fronteiras estatais por um lado; já de outro, tem criado mecanismos de distanciamento e aumento significativo das desigualdades sociais entre as sociedades contemporâneas, pois o ritmo vivido nesse contexto fragiliza as estruturas e instituições sociais de cada sociedade.14

2 O adolescente e o ato infracional

Embora os atos violentos não sejam tolerados coletivamente e para proteger a coletividade sejam necessárias a prevenção e a adoção da responsabilização com medidas como a de privação de liberdade15, há de se considerar que ainda muito se tem a investigar sobre os fatores potencializadores e de risco que influenciam os atos violentos e aqui, nesse caso, o ato infracional. Ademais, mesmo que o adolescente incorra em erro, necessita ter assegurada a sua condição de pessoa em desenvolvimento por ser sujeito de direitos.

Um dos grandes desafios é o enfrentamento do que se define por adolescência, pois, como explica Calligaris, a adolescência também é idealizada e, dentro de uma determinada sociedade, sua construção se dá pela cultura.16

Nesse caminho, a adolescência pode ser compreendida como a época de experimentações e crítica do desenvolvimento do sujeito por pautar-se pela vulnerabilidade emocional e exposição a situações de risco.17 Além disso, o conceito de adolescência sofreu influências das transformações de ordem psicológicas, educacionais e socioculturais que se deram a partir do século XIX, pois até então não era reconhecida como período do desenvolvimento e nem como categoria social.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o período da adolescência está situado entre 10 e 19 anos; já o Estatuto da Criança e do Adolescente o reconhece a partir dos 12 até os 18 anos.18

Embora o Estatuto considere adolescente a pessoa com idade entre 12 e 18 anos incompletos, pelas distintas realidades sociais que se apresentam no Brasil também não há que se descartar que existam várias adolescências.19 Tal assertiva é oriunda da perda de rituais pelo sujeito e da...

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