A consistência na utilização da affectio societatis nos julgados referentes à dissolução parcial e à exclusão de sócio das câmaras reservadas de direito empresarial (TJSP)

AutorHaissa Vivi Zangali - Paula Theme Kaguejama
Páginas208-226

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1. Considerações preliminares Da criação das Câmaras Reservadas de Direito Empresarial

Exatamente em 16 de agosto de 2011 as Câmaras de Direito Empresarial começaram a funcionar no Tribunal de Justiça de São Paulo. Trata-se de um marco no polo empresarial bandeirante que ganha um espaço diferenciado para a discussão de questões jurídicas que envolvem comércios, indústrias e serviços.

Compõe esta turma especializada os Desembargadores Romeu Ricupero (presidente), Manoel de Queiroz Pereira Calças, José Reynaldo Peixoto de Souza, Ricardo José Negrão Nogueira e Enio Santarelli Zuliani.

Em discurso inaugural, o Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças explicou a importância de tal Câmara para o cenário paulista, com todos os benefícios que esta pode gerar não só para quem dele usufruirá, mas para todo o cenário econômico em geral. Assim, segundo o Magistrado, a criação de tais Câmaras é adequada ao momento em que se vive, pois o Direito Comercial "vive um momento singular de intensa revitalização". Assim, completa que as devidas Câmaras só estão retribuindo toda a atenção que o Direito Comercial merece, haja vista que nossa região

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concentra mais de 50% da economia nacional. Assim, o devido funcionamento das Câmaras permitirá que se configure uma maior segurança jurídica decorrente da interpretação das regras de Direito Comercial. Profere-o em seu discurso: "O empresário, quando bate às portas deste tribunal, não pretende apenas obter Justiça. Está buscando, igualmente, a definição precisa do conteúdo das normas incidentes sobre a atividade empresarial. A segurança jurídica é elemento indispensável ao regular funcionamento da economia de qualquer país".

No tocante à economia, segundo ele, os empresários fazem sim seus cálculos de seus custos e projeções de entradas baseados no fato de que as leis serão estritamente cumpridas. Assim, esperam que os contratos sejam cumpridos, se não pelo contratante, pela via judicial, que estará firme e pronta para uma intervenção. E a partir disso que o empresário define preço de mercado dos produtos e serviços. Neste ínterim, afirma que hoje, em nossa economia globalizada, uma falha em qualquer um destes pontos, pode levar a grandes perdas econômicas e, até mesmo a falência. Assim, expõe como reflexo desta postura que "Quando não se instala, na economia, um ambiente de plena segurança jurídica, com a previsibilidade necessária das decisões judiciais, os empresários muitas vezes acabam lançando mão de um recurso econômico, para tentar neutralizar as incertezas. Adotam taxas de riscos maiores na composição dos preços de seus produtos ou serviços. O resultado é inexorável: carestía e inflação".

Termina seu discurso mostrando a importância destas Câmaras não só para o âmbito específico empresarial, mas sim como beneficiadora a toda a sociedade e comunidade econômica do país, pois diante de um cenário de segurança jurídica e previsibilidade de decisões, os preços dos produtos e serviços tendem a ser cada vez mais baixos, beneficiando assim a economia e a sociedade como um todo.

2. Introdução

As correntes temáticas da dissolução parcial (em sentido estrito), do direito de retirada, do direito de recesso e da exclusão de sócio, que encerram a saída de um ou mais sócios de uma sociedade, permeiam os espaços de controvérsias e animosidades presentes dentro de um quadro societário, com vistas à saída de um sócio sem que se incorra em dissolução integral da sociedade. Esses institutos, de notória importância no cenário do Direito Societário, servem a dois propósitos: atuam no sentido de impedir uma vinculação absoluta e eterna dos sócios ao liame societário, a despeito de sua vontade ou da vontade devidamente motivada dos outros sócios, e satisfazem às exigências socioeconómicas de preservação da sociedade, pautadas no interesse da coletividade que já nutre uma expectativa quanto à permanência da mesma no mercado (geração de empregos, pagamento de impostos, disposição de serviços e produtos para a população).

Ganha relevo nessa intensa e corriqueira questão a figura da affectio societatis, que se mantém presente na doutrina e na jurisprudência pátria, como elemento que liga o sócio aos demais sócios e à sociedade, configurando sua vontade e esforço contínuos em prol do resultado comum perseguido pela sociedade, com vistas a compartilhar as perdas e os lucros decorrentes da atividade. Na origem romana, aferida em trechos do jurista Ulpiano, o conceito servia aos propósitos de delinear diferenças entre o contrato de sociedade e a comunhão, sendo exclusiva do primeiro a presença do elemento em tela. As reconstruções posteriores desse conceito, ecoando nos posicionamentos atuais, trazem notáveis divergências quanto à abrangência e aplicação do mesmo nas questões relativas à desvinculação de um sócio dos liames que o prendem à sociedade.

Rubens Requião1 acerca do tema dis-serta "O liame afetivo, a confiança mútua, o

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espírito de colaboração, a 'affectio societatis' enfim entre os socios, se transforma, destarte, num sério vínculo, de acentuado interesse coletivo e importante conveniencia social, que é posto sob a proteção do direito. O cessar da 'affectio societatis' por imprevisto infortunio do sócio ou por desejo unilateral, não justifica a extinção da sociedade comercial inteira, perdurando entre os demais o 'ani-mus societatis'; o desaparecimento do liame societário provocado por um sócio não deve, com efeito, importar na extinção do convívio afetivo e interessado dos demais membros da sociedade".

Proceder-se-á, quando dessa configuração, a exclusão do sócio que teve sua affectio societatis rompida, com a preservação da sociedade, se essa for do interesse dos sócios restantes. Fábio Ulhoa Coelho,2 em sentido semelhante, nos direciona a entender a affectio societatis como pressuposto de existência da sociedade, devendo, necessariamente, constar no contrato social, e como elemento de imprescindível presença permanente, sendo seu desaparecimento causador da dissolução, em sentido amplo, dos vínculos entre os sócios.

Há de se tratar, ainda, em breve exposição, do trabalho desenvolvido por Erasmo Valladão e Marcelo Viera von Adamek,3 acerca do conceito ultrapassado da affectio societatis, e das críticas posteriores realizadas por Haroldo Duclerc Verçosa4 a esse empreendimento. Os dois primeiros autores, no ata de superar a utilização desse conceito como elemento constitutivo e característico do contrato de sociedade, arrolam razões que sustentam sua insuficiência em qualquer tentativa de conceituação. Críticas ao affectio societatis: conceito equívoco, que deturpa sua essência original, e cria um grande dissenso na doutrina (alguns acreditam se tratar de elemento específico e constitutivo do contrato de sociedade, outros de uma espécie de consentimento próprio, e ainda giram entendimentos referentes à extensão dos de-veres dos sócios); confunde consenso com a causa ou objeto do contrato de sociedade; e enseja a falsa idéia que seu desaparecimento provocaria a automática extinção dos laços societários. Sobre esse último ponto, os autores supracitados acusam uma evidente falta de sistematicidade nas decisões judiciais no tocante a utilização da affectio societatis para fundamentar a exclusão de sócios e a retirada voluntária dos mesmos do quadro social. Referente à primeira categoria, defendem os mesmos que a affectio societatis nunca pode ser por si só causa justificadora da exclusão de sócio, sob pena de vincular a minoria aos desígnios da maioria, apenas pode vir como conseqüência da quebra grave nos deveres sociais imputada ao sócio excluído, em consonância com os arts. 1.030 e 1.085/ CC. Segue-se semelhante linha no segundo caso, cabendo ao sócio retirante a exposição de justa causa, não se apresentando como útil subsídio a affectio societatis. Em última análise, propõem os autores o abandono desse equivocado termo e sua substituição pelo conceito de fim comum em sentido lato, que abrange o escopo-meio (objeto - a atividade empresária) e o escopo-fim (objetivo - partilha dos resultados), sendo esse conceito o mais adequado para considerações acerca da constituição e dissolução da sociedade.

Verçosa, após releitura do trabalho anteriormente exposto, traz considerações em sentido oposto ao veiculado por esse, que devem ser apreciadas pela doutrina e pela jurisprudência. O doutrinador aponta a diferenciação da causa próxima do contrato de sociedade, no tocante ao seu elemento volitivo, da causa de outros contratos de tipo fechado, pois naquele as partes se encontram paralelamente umas as outras, e devem direcionar seus esforços, de modo convergente, para incrementar o capital social da sociedade. A análise da affectio societatis se faz necessário quando da apreciação de

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questões relativas à dissolução parcial lato sensu, com as ressalvas de não se considerar esse elemento de forma futura e eventual, mas como é de costume ocorrer, vinculada às faltas no cumprimento de deveres sociais.

A rápida exposição dessas diversas opiniões doutrinárias se justifica pela razão maior perseguida pelo presente trabalho: busca-se perquirir se há consistência nos recentes julgados em matéria de dissolução parcial em sentido lato, lançando-se mão dos acórdãos proferidos pelas novas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial (apresentadas brevemente no ponto um, supra), a despeito da dissonância ecoada pela doutrina, ou se, de outro modo, os Juizes, no corpo de seus votos, seguem entendimentos díspares entre si, quando deparados com questões semelhantes. A questão-problema elencada como base de nossa pesquisa se reveste de grande importância quando considerado o elevado número de ações...

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