Considerações jurídico-psicológicas sobre a relatividade dos modelos de guarda

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas203-230

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Introdução

Entre os operadores do Direito e da Psicologia, convencionou-se ser a guarda compartilhada a mais indicada a pais separados em razão da democratização dos deveres de assistência, criação e educação dos filhos menores e do maior contato presencial entre as crianças e ambos os genitores. Inobstante, não é raro constatarem-se abalizadas opiniões no meio acadêmico propugnando pela primazia da

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guarda unilateral, ao menor indício de insuficiência de um dos pais no desempenho do poder familiar.

Há casos em que o juiz concede a guarda compartilhada ao argumento de que é melhor para a criança que ambos os genitores façam-se presentes em todas as fases da construção da personalidade do filho, ainda que um dos genitores ou ambos não estejam ou não sejam psicologicamente e socialmente aptos a tanto; ou a guarda unilateral, nomeando guardião justamente o genitor que não reúne condições psicológicas de sê-lo e, no entanto, passa a ser tão-somente por possuir melhor condição aparente que o não-guardião.

Generalizar sempre e em todas as situações é um ato temeroso: nem sempre os pais conseguem superar suas rixas pessoais a ponto de se preocuparem primordialmente com o bem estar dos filhos menores. Observam-se extremos em que um dos pais encontra-se numa situação de desequilíbrio emocional e instabili-dade psicológica, a ponto de valer-se da guarda e consequentemente da criança para atingir o outro genitor; lado outro, há situações em que os pais superam suas desavenças recíprocas e comungam esforços no sentido de se fazerem presentes na vida dos filhos menores, no tocante à educação, sustento e assistência, muito embora a aparência social de ambos lhes seja desfavorável.

Haveria então um modelo de guarda absoluto, de forma a ser o ideal para toda e qualquer situação?

Nesse sentido, o presente estudo visa a abordar perfunctoriamente a relatividade dos modelos de guarda. Adotou-se a pesquisa bibliográfica, consubstanciada na literatura jurídica e psicológica acerca do conceito e características dos modelos existentes de guarda e as implicações de seu uso ou não na relação entre pais e filhos. Bem assim, procedeu-se à pesquisa documental por meio de consulta à jurisprudência de vários tribunais pátrios, avaliando-se a aparente predominância da adoção da guarda compartilhada e a contraposição da guarda unilateral, sob os respectivos motivos à luz do Direito e da Psicologia.

Ainda, adotaram-se os métodos dedutivo e dialético. O primeiro, por se partir da generalidade em que se consiste a questão da proteção aos menores, chegando-se à discussão acerca da adequabilidade da guarda compartilhada enquanto referencial e a relevância da guarda unilateral nesse contexto; o segundo, ao se contraporem entre si os modelos ora aludidos, evidenciando-se vantagens e desvantagens.

Ato contínuo, o presente trabalho tenciona discutir sobre a relativização dos modelos de guarda no tocante à assistência, criação e educação dos filhos meno-

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res por pais separados. Iniciando-se por uma reflexão sobre a evolução histórico-jurídica da família e se passando por breves esclarecimentos sobre os tipos de guarda, concluir-se-á ao final se há ou não modalidade que em qualquer hipótese presta-se eficazmente a garantir o afeto entre pais e filhos e a dignidade humana destes.

1 Evolução histórico-jurídica da família: prolegômenos

Desde os tempos imemoriais, o ser humano vive em grupos: os instintos herdados do reino animal fizeram com que o Homem se reunisse com seus iguais, primordialmente para o fim de reprodução e perpetuação da espécie. De tais grupos surgiu a família, submetida à ideia do patriarcado, em que o homem era o chefe e, portanto, dispunha do pátrio poder sobre os demais familiares. Conforme Coulanges, num sentido genérico “[...] o pater poder se referia todo homem que não dependia de outro que tivesse autoridade sobre uma família e sobre um domínio”3.

Leite observa que, no início da civilização e no meio familiar, a mulher come-çou a trabalhar na agricultura e o homem, dotado de força, começou a trabalhar com rebanhos, os quais eram tangidos para acompanhá-los para outro lugar não muito frio e, assim, este poder de força e coragem ensejou o patriarcado4.

Na Grécia e Roma Antiga, berços da concepção de família para as culturas ocidentais, à ideia de família ligou-se a religião, constituída de crenças particulares e ancestrais: para honrar os antepassados e velar pelo descanso eterno, os vivos precisavam não só dar aos mortos um enterro digno e com funerais apropriados, mas também recitar determinadas fórmulas e rituais; do contrário, a alma do falecido partiria para a erraticidade ao invés de repousar no túmulo. Vê-se, então, que a união dos membros familiares passou a ter por sustentáculo, além dos laços consanguíneos e da reprodução, a necessidade de se perpetuar o culto aos antepassados – no que Nogueira bem alude a respeito:

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Esse culto não era público, todas as cerimônias eram celebradas apenas entre os familiares e possuía um caráter obrigatório além de secreto. Ninguém que não fosse da família podia presenciar tais ritos, nem tampouco avistar o fogo sagrado. [...] A religião doméstica – baseada no culto aos mortos –, ao determinar a existência, em cada casa, de um lar com o fogo sagrado sempre aceso, e a reunião diária da família em torno dele para a adoração aos seus deuses, demonstra que o que caracteriza a família é a possibilidade de cultuar e adorar os mesmos deuses, sob o princípio da autoridade paterna. [...] O critério predominante na deter-minação do parentesco não era, portanto, a consanguinidade, mas a sujeição ao mesmo culto, a adoração aos mesmos deuses-lares, a submissão ao mesmo pater familias. Dessa feita, a família ou gens era um grupo mais ou menos numeroso subordinado a um chefe único: o pater familias, cujo poder ilimitado era concedido pela religião.5Na Idade Média, a concepção de família sofreu forte influência da Igreja Católica e das classes mais abastadas e então no poder: a entidade familiar só seria assim considerada se proveniente de um casamento celebrado por autoridade eclesiástica regularmente investida de poderes pela Igreja, e consubstanciado no consenso entre as partes precedido da autorização das respectivas famílias dada a repercussão econômica que o matrimônio acarretava.

Este modelo perdurou até meados do século XX. No Brasil, por exemplo, o Código Civil de 1916 fora formulado sob a égide do liberalismo, patrimonialismo e patriarcalismo, adotando tais paradigmas para entre outros regrar o Direto de Família: ao homem, concedia-se o pátrio (pater) poder, prerrogativa que lhe outorgava o comando da família e bem assim a prática de atos conforme sua única vontade e à revelia da esposa e filhos – tais quais a eleição de bem de família (art. 70), a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher (art. 233, II), entre outros.

De forma diametralmente oposta, poucos direitos eram conferidos de forma autônoma à mulher, relegando-a a mera coadjuvante do marido e deste dependente de autorização para uma série de direitos – dentre eles, por exemplo, exercer profissão (art. 242, VII).

Ainda, a família à qual o Estado protegia era apenas a formada pelo casamento: os demais grupos compostos por parentes – p. ex., mãe solteira e filhos

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– ficavam à mercê da sorte, sem amparo legal. Sem o reconhecimento legal, as famílias que se constituíam fora do âmbito do casamento eram discriminadas social e legalmente.

Posto de outra forma, nos dizeres de Colcerniani:

A família, patriarcal e hierarquizada, exibia um homem como chefe da família e a mulher e filhos ocupando posições inferiores na comunidade familiar. Era matrimonializada, ou seja, a única forma de se constituir família era através do casamento e se os membros desta família quisessem pôr fim ao vínculo matrimonial, só poderia ser feito por meio de desquite, que punha fim à comunhão de vida sem atingir o vínculo jurídico. Família era vista não como um núcleo de amor e sim como um núcleo de produção econômica.6Enquanto paradigma do Código Civil de 1916, a família matrimonial influenciava a guarda: a obrigatoriedade da manutenção do matrimônio impunha a culpa ao cônjuge considerado culpado por um eventual desquite – a separação-sanção –, estabelecendo penalidades, tal qual a prevista no caput do art. 326, segundo o qual, “sendo desquite judicial, ficarão os filhos menores com o cônjuge inocente”; ou, se ambos fossem culpados, a mãe teria direito de conservar em sua companhia as filhas, enquanto menores, e os filhos até a idade de seis anos (§ 1º), ao passo que os filhos maiores de seis anos seriam entregues à guarda do pai (§ 2º). Observa-se, então, a total desconsideração do interesse dos menores, na medida em que se objetivava punir o cônjuge considerado culpado mesmo se este fosse o mais indicado para o exercício da guarda.

Com o advento do Estado Social, o intervencionismo estatal influenciou diretamente o sistema jurídico: o Direito Privado passou a ser permeado por elementos de Direito Público e os preceitos constitucionais passaram a regrar e influenciar as relações jurídicas privadas, posto o laissez-faire não mais ser o referencial numa sociedade que passou a exigir a proteção estatal de seus direitos. Somem-se a isso as trágicas experiências advindas dos horrores das duas Grandes Guerras e em especial da Segunda Guerra Mundial, as quais fizeram com que a humanidade despertasse efetivamente para a necessidade de tutela do ser humano quanto aos seus valores e individualidade.

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Erigiu-se então a pessoa humana ao centro do sistema...

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