Considerações sobre a jurisprudencialização do Direito

AutorCaio Leal
Páginas3-42

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I Introdução

A jurisprudência1 não surge meramente como conseqüência da prestação jurisdicional oferecida pelo Estado-juiz. Dada a imprevisibilidade e as falhas da lei, esta precisa ser trabalhada, lapidada e recriada. Não é forçoso deduzir que ao longo desse trabalho será constantemente reiterado que, diante da imperfeição da lei, surge a necessária construção jurisprudencial para revelar o direito, no qual o juiz intervém como uma espécie de legislador supletivo, e o faz por assim dizer à força, pois lhe é impossível não intervir conforme o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

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A jurisprudencialização do direito, diante disso, é uma constatação trivial dada a insuficiência da lei original de abarcar todas as situações das relações sociais futuras. E nem é este seu objetivo. Uma lei deve ser geral e de conteúdo aberto para incluir a maior parte das relações jurídicas advindas das hipóteses nela elencadas. A construção feita pela jurisprudência é ato criativo do direito, haja vista que o processo judicial é um processo de produção jurídica pelo qual é criada a norma individual, uma situação concreta, deduzida de uma norma geral.

Indubitavelmente, o tempo tem um efeito perverso sobre a legislação: enferruja algumas engrenagens que não mais se encaixam para a solução eficaz de inúmeras demandas judiciais produzidas pela incompatibilidade entre evolução social e estagnação dos comandos legais. Noutros casos, o ímpeto legiferante pode esbarrar no ideal de justiça, quando, por exemplo, leis criminais são discutidas fora do plano da razão, mas no plano das emoções, o que será devidamente discutido na análise de caso quanto à aprovação da nova Lei n° 12015/09, deixando no ar uma incerteza angustiante que há de ser resolvida pela jurisprudência. O certo é que jurisprudência evolui com o tempo e lapida a lei, ou melhor, como diria Antônio Carlos da Fonseca:

“A jurisprudência, pelas sucessivas interpretações, opera numa contínua valoração da norma, fazendo-a respeitada enquanto conquista confiança e respeito para si própria, por parte de todos que seguem a sua orientação. A dimensão da esfera criadora da jurisprudência determina-se não só pela falta de clareza ou da previsão da norma, mas também por compatibilizá-la com a ordem fundamental de direitos (...) a função da jurisprudência é ajustar as normas e harmonizar inclinações, para imprimir-lhes a feição de sistema, no âmbito positivo”.2

Em tempo, cabe apenas entregar a distinção entre norma, enunciado normativo e lei, antes de avançar neste artigo e para não me alongar em demasia nesse intróito.

Grosso modo, a norma pode ser produto do Judiciário, resultante da interpretação e aplicação dos enunciados normativos no exame do caso concreto, que são veiculados pelos diplomas legais, e, portanto, são os enunciados produtos do Legislativo. Enquanto os enunciados normativos prescrevem o direito, normas descrevem o direito.Page 5 Dentro de uma lei pode haver inúmeros enunciados normativos, aliás, dentro de um único artigo podem existir diversos enunciados normativos.

Nada obstante, a lei tende a criar o direito, e o juiz, por sua vez, tem a incumbência de recriá-la, conferindo-lhe, sobretudo, vida. Sendo certo que é uma ilusão do legislador pretender dar todo o direito através de leis, da mesma forma que é uma ilusão do juiz querer extrair do ordenamento jurídico todo o direito.

Eis a importância crescente que a jurisprudência vem adquirindo academicamente, passando de uma fonte secundária do direito a um papel central. Primeiramente, em um cenário em que não raro a lei depende das construções jurisprudenciais para se tornar efetiva, o que será doravante corroborado em algumas considerações acerca da jurisprudencialização do direito, suas causas e conseqüências, neste singelo texto. No mais, far-se-á um exame da superação do jusnaturalismo e do juspositivismo para se constatar que eles abriram caminho para a ascensão dos princípios ao centro do ordenamento, e que estes, “com sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça do caso concreto”3, emergindo outra importância da jurisprudência.

II Panorama Histórico

Relegada a função judicial a um mero processo mecanicista de interpretação, o direito resumia-se na lei positivada, submetido a uma lógica formal que olvidava a realidade humana, conquanto o sentimento de justiça era repetidamente vilipendiado pelo excessivo apego ao dogmatismo. Os primeiros tratadistas medievais já discutiam amplamente sobre a natureza da jurisprudência4. A discussão girava em torno das indagações se a jurisprudência era ciência ou arte. Ela era considerada por aquele aspecto em sentido teórico, e sobre este por sua função prática. Depois do século XVII, para os jusnaturalistas, a jurisprudência havia de ser fundada numa base científica, ou ainda, que se adequasse o método à concepção racionalista que o saber cartesiano difundia.

No início século XX, porém, inicia-se uma grande discussão metodológica de duas notáveis escolas jurídicas: a normativista – cuja maior referência foi Hans Kelsen – e a sociológica – cujo maior expoente residia no realismo norte-americano.Page 6 Contemporaneamente, entram no debate os seguidores da filosofia da linguagem e da análise do discurso, dando azo à discussão que transcendeu séculos novos rumos. Isso porque, tendo em vista o fato de que a jurisprudência trata do sentido normativo a que as expressões lingüísticas correspondem, faz-se a ilação de que não há nada mais razoável que conceder novo status metodológico aos processos analíticos e interpretativos da linguagem5.

A tendência de mecanização da atividade jurisprudencial foi acentuada pelo trabalho de codificação levado a cabo pelos positivistas jurídicos, “cujo modelo principal – o Código de Napoleão – converteu-se na súmula indiscutível da sabedoria jurídica, a ponto de Bugnet – ícone da ciência jurídica francesa do século XIX – afirmar, categoricamente, numa tradução fiel do espírito da Escola da Exegese: ‘Eu não conheço o direito civil, só ensino o Código de Napoleão’. O intérprete ficava preso ao texto da lei, que era tida como a única autoridade dentro deste contexto de positivismo legal extremado e avalorativo. A Ciência do Direito não ia além de um processo mecânico de aplicação. A jurisprudência engessada era o seu resultado mais esperado.

O clima em que as idéias jurídicas foram elaboradas tornara-se propício ao isolamento do jurista. O racionalismo dominara a feitura dos Códigos com seu perfeccionismo, pela sua prioridade à construção lógica impecável, quase que geométrica. Ora, nenhuma das manifestações do Direito poderia apresentar em tão elevado grau essas “virtudes” como a lei, especialmente se codificada. Então, essa busca pela forma perfeita herdada do racionalismo típico do Século das Luzes levou os juristas franceses do século XIX a uma idolatria do Código Napoleônico, como era de se esperar. O individualismo jurídico era o valor em que se assentavam os seus postulados doutrinários... O terreno em que pisava o jurista não apresentava saliências. Era a rota batida das soluções apriorísticas. A lei era o modelo ideal para definir esse equilíbrio nascido da natureza e da razão.6

Para uma maior jurisprudencialização do direito, Kelsen colaborou no sentido de valorizar o conteúdo da decisão judicial, pois a lei e a sentença integrariam o conceito de “norma”, simbolizando momentos diferentes de um mesmo processo. SePage 7 recebermos a proposição de Kelsen, no sentido de que a sentença é uma norma individual criadora de direito, mesmo que com limites de eficácia bem mais restritos que a norma geral, não há que se hesitar do poder de criação do juízes e da jurisprudência.

A ponte que une a sentença e a lei coloca-se em graus diferentes – a lei caracterizada pela generalidade e sentença pela individualidade casuística ou reproduzida a um número limitado de situações. Tendo em mente as três dimensões básicas da teoria normativista kelseniana, quais sejam: a estrutura escalonada da ordem jurídica, o caráter positivista do direito e a sua concreção, é que a jurisprudencialização do direito toma certa clareza e importância, vinculada a um sistema de hierarquização de normas em que a decisão judicial é o estágio intermediário do processo inerente a esse mesmo sistema, em que o problema da concreção do direito vislumbra o caráter constitutivo da decisão judicial. O ordenamento é um sistema de normas gerais e individuais que se inter-relacionam num processo de concreção, que vai da norma fundamental hipotética à execução da sentença. A sentença vista sob a ótica normativista é o resultado desse processo de concreção do direito, onde o juiz tem o dever de individualizar a norma geral ante a necessidade de responder à quaetio juris.

Para Kelsen7, e a partir dele, pelo fato de a Constituição ocupar o topo da pirâmide jurídica, dada a característica aberta de seus comandos normativos – recheados de cláusulas gerais – foi possível incluir a jurisprudência numa categoria de fonte formal estatal. Ali foi lançada a semente do binômio interpretação/aplicação, máxima da jurisprudencialização do direito, ou seja, a partir do entendimento de que a Constituição com suas cláusulas abertas detém a supremacia do ordenamento jurídico foi possível aos tribunais e aos intérpretes corporificar o direito.

“No campo da jurisprudência, a problematização é possível, justamente porque os textos jurídicos são redigidos em linguagem corrente ou, então, numa linguagem especializada que apresenta razoável margem de variabilidade de significação. Hart se refere a isso como ‘textura aberta’ do direito”8.

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Feita essa digressão histórica nos limites do...

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