A globalização e suas conseqüências sociais: Uma análise a partir da obra de Zymunt Baumann

AutorGilmar Antonio Bedin
CargoDoutor em Direito do Estado. Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas1-10

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1. O Projeto Político da Modernidade

A modernidade123, quando analisada do ponto de vista mais especificamente político, tem início com as três grandes revoluções dos séculos XVII (Revolução Inglesa) e XVIII (Revolução Americana e Revolução Francesa) e se caracteriza pela centralização política4, pela soberania popular e pelaPage 2 idéia de cidadania civil (direitos individuais). A convergência destes três fatores deu origem, no final do século XVIII, à primeira grande fase do Estado Constitucional.5

No decorrer das primeiras décadas do século XX6, o Estado Constitucional incorporou novos pressupostos, em especial os decorrentes das idéias socialistas ou social-democráticas. Esta incorporação transformou o Estado Constitucional em Estado de Bem-Estar Social ou de Estado Providência7.

Esta forma de Estado teve grandes avanços no período do segundo pós-guerra8. Entre suas principais conquistas podem ser destacadas a ampliação do acesso à educação, a universalização do direito à saúde, a ampliação do acesso a moradias decentes e a luta contra as desigualdades. Estes avanços representaram o deslocamento da concepção de cidadania individual (civil e política), típica do Estado Constitucional Liberal, para uma concepção de cidadania econômica e social, que deu origem às conhecidas políticas de pleno emprego e de renda mínima.

A institucionalização do Estado de Bem-Estar foi fundamental para o surgimento de políticas sociais compensatórias, a para a criação de uma sólida rede de proteção social e para a superação de incertezas sociais. Daí ser possível dizer que este tipo de Estado oferece a todos os cidadãos

uma política de seguro, endossada e financiada coletivamente, contra os danos individuais e de grupos enviáveis numa economia capitalista, e um Estado que avaliava a qualidade da sociedade como um todo pela qualidade de vida de seus cidadãos mais fracos e gravemente feridos (Bauman, 2006, p. 76).

Este quadro de conquistas produziu, por um lado, uma grande legitimidade da estrutura estatal e, por outro, uma acentuada desmercadorização das diversas esferas da sociedade. Com isto, foram criadas as condições necessárias para a construção de um pacto político que permitiu um longo período de crescimento econômico com distribuição de riqueza. Este pacto político foi fundamental, tendo dele participado, consciente ou inconscientemente, as principais lideranças empresariais e sindicais, a maioria dos trabalhadores organizados e os mais influentes líderes políticos da segunda metade do século XX9.

Neste contexto, a participação do Estado na gestão econômica tornou-se mais significativa e foi alicerçada nas idéias intervencionistas de John Maynard Keynes10. As idéias intervencionistas deste autor proporcionaram o desenvolvimento do planejamento estatal e a geração de um longoPage 3 ciclo de crescimento econômico (Stoffaës, 1991; Nunes, 1991; Hobsbawm, 1995). De fato, Keynes foi o primeiro grande pensador a compreender a importância

do Estado como agente econômico nas sociedades capitalistas do seu tempo, partindo daí para justificar a existência de um setor estatal no seio da economia capitalista e para enquadrar teoricamente e tornar respeitável perante teóricos e os homens de negócios a intervenção do Estado na vida econômica... (Nunes, 1991, p. 13-4).

Além disso, foi John Maynard Keynes um dos primeiros teóricos a defender a introdução da política fiscal como um instrumento “fundamental para controlar as flutuações da economia e para perseguir os objetivos do pleno emprego, da estabilidade dos preços e do equilíbrio da balança de pagamento” (Nunes, 1991:12). Com isto, o Estado passou a desempenhar um papel central na elaboração das políticas públicas e na formulação dos projetos de desenvolvimento. Isto deu origem a fase do capitalismo organizado, que se caracterizou como uma época de ouro de seu desenvolvimento e de grande geração e distribuição de riqueza (1945 a 1970)11.

Isto, no entanto, não é tudo. O Estado se tornou também, na segunda metade do Século XX, um grande e respeitado empresário ou agente econômico (García-Pelayo, 1982), que passou a comandar e gerenciar incontáveis empresas estatais com atuação destacada nos mais diversos e complexos setores da economia capitalista do período. Essas empresas estatais passaram a responder, em seu conjunto, por significativos índices de participação no produto interno bruto de cada país. Em conseqüência, o Estado se tornou um megaestado, um Estado gigante (Drucker, 1996).

Neste sentido, o peso do Estado na economia nos principais países europeu representava, no início do século XIX, medido em termos da parcela dos orçamentos públicos no PIB, por exemplo, “apenas 5 a 10%. Esse peso aumentou apenas ligeiramente até 1914, mas deu um salto no período entre as duas guerras, elevando-se a cerca de 20%. Após 1945, efetua-se um novo salto: o peso dos orçamentos públicos atinge de 25 a 30% de participação no PIB (Stoffaës, 1991, p. 128).

A forte presença do Estado na gestão da economia permitiu a formação e consolidação do Estado de Bem-Estar e o reconhecimento da cidadania econômica e social. Estes avanços produziram uma profunda mudança no funcionamento do sistema capitalista e colocou em evidência a importância do Estado na concretização da justiça social, na socialização da riqueza produzida, naPage 4 proteção dos grupos sociais mais vulneráveis e no fomento de práticas inclusivas12. Este quadro político é designado por Zymunt Bauman de modernidade sólida (2001).

2. A Passagem da Modernidade Sólida para a Modernidade Líquida

O quadro político13 acima – Estado de Bem-estar ou modernidade sólida – começou a ser rompido a partir dos primeiros anos da década de setenta do século XX. Esta transformação foi o resultado, entre outros fatores, da profunda estagnação econômica das sociedades capitalistas daquele período, da elevação dos índices de inflação e da primeira grande crise do petróleo. De fato, ao longo dos anos 70, a economia mundial passou da era da expansão

à era da estagflação, isto é, uma situação marcada pela coexistência da inflação e de um marasmo acompanhado de desemprego. O processo foi progressivo e não brutal: contrariamente aos krachs e às depressões do século XIX e de antes da guerra, não houve um afundamento brutal. A crise contemporânea é um processo de lenta deterioração, um cancro subtil e não um acesso de febre. Se bem que não se possa encontrar, a título de ilustração, uma data-símbolo análoga à que foi a ‘quinta-feira negra’ de outubro de 1929, o lento progresso da crise pode, apesar de tudo, ser batizado por datas-chaves, que a história certamente fixará, mesmo se aqueles que as viveram não lhes apreenderam de imediato o alcance. Agosto de 1971, com a declaração de inconvertibilidade em ouro do dólar; Outubro de 1973, com o primeiro choque petrolífero; Outubro de 1979, com a aplicação de uma política monetária radical pela Reserva Federal dos Estados Unidos; Fevereiro de 1981, com o anúncio do programa Reagan; Agosto de 1982, com as medidas de emergência tomadas para evitar a bancarrota do México: eis, com um pouco de distanciamento, alguns marcos da crise contemporânea (Stoffaës, 1991, p. 64-5).

Esta crise produziu grandes conseqüências. Entre estas, duas se destacam. A primeira foi a geração de um novo padrão tecnológico - baseada no desenvolvimento da tecno-informática - e um novo modelo de produção: o denominado modelo toyotista14. A segunda foi a produção de uma notável virada histórica: a crise levou, por um lado, a uma crescente relativização das idéias de cidadania e de inclusão social, a uma forte crítica da participação do Estado na economia e à refutação das principais teses desenvolvidas por John Maynard Keynes e, por outro, à hegemonia do neoliberalismo, à defesa da tese do Estado mínimo e à supremacia das idéias monetaristas15.

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A geração destas duas grandes conseqüências diferencia a crise dos anos 70 do século XX de tanto outros momentos de dificuldades da sociedade capitalista e inauguram, segundo Zymunt Bauman, uma nova etapa da modernidade16: a modernidade líquida (Bauman, 2001)17. Esta nova etapa é designada pelo autor referido também de pós-modernidade, globalização ou de época da economia política da incerteza ou medo18. Mas, o que distingue esta etapa da modernidade da anterior, denominada de modernidade sólida? Para Zygmunt Bauman (2001) são duas características:

  1. o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão...

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