Consenso acerca do Gênero Humano e “Revolução Copernicana”

AutorErmanno Vitale
CargoProfessor de análise da linguagem e do pensamento político contemporâneo na Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Sassari, em Cerdenã; Professor de Filosofia Política na Universidade de Turin
Páginas125-142

    Tradução Bruno Costa Teixeira

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1. Um equívoco a ser dissipado

Norberto Bobbio era um filósofo que não amava a “Filosofia com éfe maiúsculo”, quer dizer, a filosofia que ascende à cátedra. E também, não perdia a ocasião apta para sublinhar a esterilidade de todas as filosofias que, assumindo, mais ou menos explicitamente, a constituição de um saber superior e ordenador a respeito de outros campos do conhecimento, consideram-se auto-suficientes e fundamentais. Em outras palavras, capazes de fornecer, a partir de pressupostos axiomáticos auto-evidentes, uma visão coerente e exaustiva do mundo, onde tudo encontra seu lugar, inclusive dispostas a sacrificar uma explicação mais simples das exigências do espírito do sistema.

No que se refere à reflexão sobre os Direitos do Homem, Bobbio – cuja reflexão será constantemente o norte deste trabalho – já aderiu a esta concepção crítica da filosofia. Uma fundamentação filosófica – no sentido definitivo, metafísico – dos direitos é impossível, mas isso não significa que a razão filosófica, no sentido de razão crítica, não possa contribuir de modo realmente útil, com bons argumentos à afirmação dos direitos do homem. Esta posição, como ocorre com freqüênciaPage 126 quando se busca um difícil ponto de equilíbrio entre perspectivas aparentemente inconciliáveis, tem sido mal entendida, quando não instrumentalizada, sobretudo por alguns, para os quais na origem histórica dos direitos – assim como no temor de que os direitos revelem-se, finalmente, antidemocráticos – encontram os melhores argumentos contra os próprios direitos, e especialmente contra a constitucionalização destes. Em suma: uma vez entendido que os direitos são um produto histórico, resta concluir que, assim como apareceram, podem, da mesma forma, desaparecer novamente.

Assim sendo, duas questões devem ser levantadas com o escopo de dissipar o equívoco supramencionado. A primeira concerne justamente a um equívoco – talvez artificialmente criado, e faço referência aqui a antiga arte da descontextualização – a respeito de uma breve passagem do primeiro ensaio escrito em L’età dei diritti, com o título Sul fondamento dei diritti dell’uomo (1964): “O problema relativo aos direitos do homem não é, hoje, tanto no sentido de justificá-los, quanto no de protegê-los. Não é, portanto, problema de cunho filosófico, mas político”1. Certamente, se extrapolada a concepção racional da parte final do texto, o leitor mais ingênuo poderia deduzir desta passagem que as filosofias política e do direito não têm, contemporaneamente, nada a dizer, se é que por acaso tiveram um dia algo a dizer, sobre Direitos Humanos. Porque qualquer justificação parece impossível, ou ao contrário, porque pouco importa, em conseqüência, uma justificação tão consolidada e compartilhada que já tenha adquirido a autoridade de algo auto-evidente.

Importa dizer – seria dito – que a questão em tela deve ser tratada por homens práticos, não por filósofos. Não é fácil proteger os direitos do homem se não sabemos com precisão sobre quais razões estes se fundam, nem sabemos, com rigor, que coisa são ou quais são as pretensões que a justo título devemos considerar correspondentes a um direito inerente aos seres humanos como tais. Em outros termos, que coisa exatamente devemos proteger se não sabemos com razoável certeza de que coisa estamos a falar, especialmente quando tratamos dos direitos do homem?

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A segunda questão, estreitamente vinculada à primeira, condiz com o questionamento seguinte: qual seria a visão do mundo proposta por (e implícita em) uma doutrina coerente dos direitos? Da resposta para esta pergunta deriva, ademais, a indicação acerca de qual modelo de convivência civil é plenamente compatível com tal fundamentação e justificação – ou com tal visão de mundo –, e com qual visão de mundo é, por outro lado, absolutamente incompatível; e quais, podem ser, se é que podem ser, as soluções e, quais podem ser as soluções intermediárias, quais, por fim, os compromissos razoáveis e não enganosos que podemos aceitar no mundo da prática.

Convém destacar, desde logo, qual é, a partir do meu ponto de vista, a razão que está por trás do “equívoco” gerado pela afirmação de Bobbio sobre a necessidade de proteger os direitos antes mesmo de justificá-los. Quando Bobbio fala da necessidade de proteger direitos, parece fazer referência a um elenco de direitos positivados, ainda que de uma maneira débil, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948; elenco este que tem sido confirmado, em suas linhas essenciais, por Cartas e tratados internacionais e supranacionais posteriores.

Quando, por outro lado, Bobbio fala de justificação dos ditos direitos, parece fazer referência aos argumentos filosóficos – ao quadro conceitual completo – mediante o qual é possível sustentar razoavelmente que os seres humanos são titulares de direitos subjetivos fundamentais. Em outras palavras, Bobbio, evoca o consenso das pessoas para proteger aquele elenco de direitos positivados historicamente na Declaração de 1948; contudo, o quadro conceitual ou a visão do mundo individualista aparece como a justificação da promulgação dos direitos subjetivos fundamentais dos seres humanos. As duas questões não estão em conflito, registre se, porque se justificam em planos distintos da reflexão, ou ainda, porque pretendem responder a duas exigências distintas (a proteção política de um determinado elenco de direitos e a resposta à pergunta filosófica sobre a existência dos direitos fundamentais). Ao menos, “parece” que é em razão da obviedade dessa diferença que Bobbio não propõe uma distinção de planos específicos para a discussão. Esta distinção, todavia, é indispensável para dissipar o equívoco da aparentePage 128 justaposição das argumentações contraditórias, se considerarmos, ambas, respostas a uma mesma pergunta sobre o fundamento dos direitos.

2. O argumento do consenso dos povos

Partamos da primeira questão supramencionada, quer dizer, do ensaio que abre L’età dei diritti. Como Bobbio chegou à consideração, que parece prematuramente e filosoficamente um pouco incômoda, de que os direitos humanos devem ser protegidos em vez de justificados? O próprio Bobbio ilustra isso esquematicamente, em seu breve ensaio, senão vejamos:

Neste ensaio me proponho a discutir três argumentos, quais sejam: a) qual é o sentido do problema em torno do qual plantamos o fundamento absoluto dos direitos do homem; b) se um fundamento absoluto é possível; c) se, ao supor que é possível, é também desejável (ED, p.5).2

Percebe-se então, que há desde o germinar do problema, uma correção importante: o que está em discussão não é a possibilidade de um fundamento ou de uma justificação dos direitos humanos, mas de um fundamento absoluto destes. Correção importante – porque permite aniquilar de imediato a falsa equação entre fundamentos e argumentos: quer dizer, é possível formular argumentos a favor dos direitos humanos, ainda que não sejam em absoluto fundamentais – mas sem caráter decisivo, porque se poderia de imediato dizer que um fundamento relativo, ou relativista, não é, em primeiro lugar, sequer um verdadeiro e autêntico fundamento – tendo em vista o entendimento kantiano de fundamentação; e, em segundo lugar, que uma justificação como essa não serve para coisa alguma em relação ao propósito de difundir universalmente a consciência e a tutela dos direitos humanos. Certamente, o adjetivo “absoluto” leva consigo uma aura metafísica, um valor jusnaturalista que sob os olhos de qualquer juspositivista – inclusive sob um

Consciente de que este é o cerne da questão, Bobbio tenta afrontá-lo a partir de uma perspectiva diversa: a verdade incômoda – afirma – é que grande parte dos defensores dos direitos humanos os presumem, em nível pré-racional, enquanto desejáveis e enquanto meta de enorme valor moral a alcançar o quanto antes. Por conseguinte, pensam que encontrar um argumento irresistível, um fundamento absoluto, significaria dar finalmente o “cheque-mate” em seus adversários intelectuais: “frente ao fundamento absoluto se submete necessariamente a mente, assim como frente ao poder irresistível se submete necessariamente a vontade” (ED, p.6). Sem embargo, observa Bobbio, a busca deste movimento triunfador, deste “cheque-mate”, se revela ilusória, tão ilusória que resulta num boomerang, uma arma em mãos dos detratores dos direitos humanos. Basta recorrer ao elenco dos chamados direitos naturais que juristas e filósofos haviam exaltado em séculos passados para entender que discordam amplamente entre si, e que seus argumentos são tudo, menos irresistíveis. Para que se tenha um sólido fundamento acerca da natureza das coisas e do homem, é necessário haver, em torno das questões teóricas centrais, um consenso, uma unanimidade. Contudo, bem sabemos – basta pensar nas opostas concepções acerca do homem presentes em Hobbes e Rousseau – que isso não é tão fácil e que, assim, jamais o será. Aliás, Bobbio pôde concluir, especialmente em relação ao primeiro ponto, que “toda busca por fundamento absoluto é, em si, sem fundamento” (ED, p.7) e que, portanto, é preferível nos libertarmos desta perniciosa ilusão.

Em segundo...

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