Conselho monetário nacional, banco central do Brasil e comissão de valores mobiliários. Considerações acerca de sua natureza jurídica, em face das chamadas 'Agências Administrativas

AutorEgon Bockmann Moreira
Páginas136-150

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O Sistema Financeiro Nacional é integrado pelo Conselho Monetário Nacional e Banco Central do Brasil, ambos criados pela Lei 4.595, de 31.12.1964 (e alterações), e cujas competências relativas ao mercado de capitais estão previstas na Lei 4.728, de 14.7.1965. A Comissão de Valores Mobiliários foi criada pela Lei 6.385, de 7.12.1976.

Tendo em vista as recentes modificações experimentadas no Direito Administrativo pátrio, é de se cogitar se tais entidades podem ser classificadas como "agências independentes", bem como sua eventual diversidade em face das recém-criadas "agências executivas" e "agências reguladoras". Ademais, cabe investigar seu "poder normativo" e os limites derivados dos estândares estabelecidos pela legislação que criou tais organizações. Ao final, analisaremos se o art. 192 da Constituição Federal de 1988 estabeleceu alguma reserva de lei que não esteja atendida nos diplomas supracitados.

I - Premissas hermenêuticas
  1. A análise das questões acima arroladas pressupõe a fixação de premissas de interpretação claras e, mais do que isso, exige que seja fixado um conceito básico para a realidade normativa "agências", bem como sua razão, conteúdo e limites.

  1. Partimos de três regras de hermenêutica jurídica.

Primeira, a de que a interpretação não pode abstrair das finalidades normativas visadas, justamente em face da situação concreta. A lei não pode ser interpretada puramente em abstrato, tal como não possuísse vínculos e desdobramentos na vida real ou não se dirigisse a determinado objetivo. A relação entre ratio legis e situação de fato é essencial às conclusões hermenêuticas. Ainda mais quando estão em análise normas de ordem pública, as quais, no Brasil, devem reger um Estado Democrático de Direito.

Segunda, a interpretação jurídica há de ser sistemática, não analisando somente aqueles preceitos específicos colocados à disposição do intérprete, como se pudessem existir normas avulsas, mas a unidade do sistema. "Em outras palavras, uma consciente interpretação do Direito Administrativo j a-

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mais poderá ser isolada ou destituída da necessária conexão com a inteireza do sistema, na sua vocação teleológica para a abertura e para a unidade. Com efeito, toda interpretação juspublicista, mesmo diante das questões mais singelas, há de ser sistemática, principiológica e hierarquizadora (...)".1

A terceira regra é a de que a interpretação jurídica não pode orientar-se por aquilo que Luís Roberto Barroso denominou de "uma das patologias crónicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo". Ao definir a "hermenêutica retrospectiva", o autor reporta-se à lição de Barbosa Moreira: "Põe-se ênfase das semelhanças, corre-se um véu sobre as diferenças e conclui-se que, à luz daquelas, e a despeito destas, a disciplina da matéria, afinal de contas, mudou pouco, se é que na verdade mudou".2

Estas são, basicamente, as premissas de hermenêutica que orientarão o presente texto.

II - As Agências Administrativas e o Direito brasileiro
  1. O direito positivo brasileiro, especialmente o constitucional e administrativo, vem passando por radical série de mudanças.3 O legislador visou a instalar uma Administração Pública qualificada de flexível e ágil, destinada a corresponder às necessidades pelas quais passa um mundo pós-globalização. Dentre tais alterações, está a instalação das chamadas "Agências Administrativas".

    3.1 Como é notório, as Agências Administrativas têm origem no direito estadunidense, cujo Direito Administrativo se estruturou em torno de tais entidades.45 Note-se que a primeira agência foi criada ainda no século XIX (Interstate Commerce Co-mission, de 1887).

    Naquele país, existe lei própria, definidora da estrutura normativa das agências (Federal Administrative Procedure Act, de 1946), bem como de seus genéricos poderes e deveres. Trata-se de lei geral, que fundamenta a criação de agências específicas, no âmbito federal.

    Há duas espécies de agências, as "reguladoras" e as "executivas". Estas vinculam-se à pura execução de serviços de ordem social (pensões, previdência social, seguros etc), enquanto que aquelas atuam disciplinando determinada área de atuação estatal (incluindo-se aí direitos e deveres dos particulares).

    Tais Agências Administrativas reguladoras caracterizam-se por ter independência em face do Poder Executivo e não estar submetidas a controle hierárquico. De forma autónoma, emanam normas que regulamentam a matéria de sua competência e decidem litígios, exercitando os denominados poderes quasi-judicial e quasi-legis-lative. Na ampla maioria delas, seus dirigentes possuem mandato fixo, há supervisão das comissões do Congresso, possibi-

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    lidade de controle judicial e "relações políticas" com o Poder Executivo.

    3.2 No Brasil, inexiste qualquer lei semelhante à norte-americana. Não há nenhuma disposição normativa que defina as condições genéricas de existência de uma agência administrativa - seja ela "reguladora", seja "executiva". Mais do que isso, não há qualquer preceito legal que diga o que é uma "agência". Ao contrário, reina a confusão.

    De há muito, o direito positivo brasileiro utiliza-se à larga do termo, ora em sentido vulgar (agência telegráfica, agência do correio, agências das capitanias dos portos),6 ora em sentido específico (Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL, Agência Nacional de Energia Elétrica - ANEEL, Agência Nacional do Petróleo - ANP e Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVS),7 ora em sentido técnico indefinido (Agência Espacial Brasileira e Agências de Água).89

    O texto constitucional contém apenas a expressão "agências financeiras oficiais de fomento" (art. 165, § 29) e o inc. I do art. 52 do ADCT refere-se a "agências de instituições financeiras". Mesmo depois das Emendas 8/9510 e 9/95,11 a Constituição Federal contempla a locução "órgão regulador", não "agência administrativa".

    Já a Lei 9.649/98, que "dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios", adota o termo "órgão regulador", para ANP e ANEEL,12 e cria o qualificativo "agência executiva",13 a ser outorgado a autarquias ou fundações que tenham cumprido determinados requisitos (plano estratégico e contrato de gestão).

    Por fim, os Decretos 2.487/98 e 2.488/ 98 estabelecem a qualificação das "agências executivas", não declinando o que vêm a ser tais entidades, mas meramente dispondo sobre o procedimento e requisitos necessários a tal atributo - o que levou Cel-

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    so António Bandeira de Mello à percuciente conclusão de que "o decreto, curiosamente, não indica quaisquer consequências extraíveis do qualificativo agência executiva', de sorte que ele apresenta o sabor de uma 'comenda'".14

    3.3 Além de não haver previsões gerais definidoras do que efetivamente vem a ser uma "agência" no direito brasileiro, os textos legais em vigor produzem séria confusão dos conceitos. Não há qualquer coerência semântica, que, de imediato, autorize e (ou) facilite a uniformidade na interpretação de tais normas.

    Há leis que estabelecem o que vem a ser o "regime especial" ao qual estão submetidas as "Agências Administrativas", nunca de forma igual às demais, e outras que somente lançam tal locução quando "qualificam" a agência, tal como se houvesse incontrovérsia quanto ao uso do termo e de sua "especialidade". A definição mais precisa está na legislação da ANATEL, que confere exaustiva precisão à palavra utilizada. Resta saber qual o impacto que tal incerteza pode gerar para eventual fixação do verdadeiro sentido do termo "agência", para o direito brasileiro (se é que isso é possível).

  2. Destaque-se que, neste momento histórico, a definição de um ente público como "agência" não envolve pura questão de nomenclatura, mas definição do tipo jurídico e (ou) título competencial detido pelo órgão administrativo. Não se trata de dúvida limitada ao nomen júris da entidade, mas à possibilidade da qualificação de sua ação, limites e conteúdo.15

    Ou seja, o problema enfrentado abrange o verso e o reverso da questão. Não apenas é significativa a especificação normativa do entes (são ou não são agências), mas também o prévio conteúdo da qualificação atribuída a tais entes (o que é - ou pode ser - uma agência, no direito brasileiro). Tal como leciona Daniele Coutinho Talamini, "Poder-se-ia pensar, desde logo, que a questão reduz-se à mera terminologia. Todavia, como já advertiu André Gonçalves Pereira, um problema terminológico não é somente um problema terminológico. A terminologia desempenha uma função, que é a de designar coisas idênticas com o mesmo nome e coisas diferentes com nomes diferentes. E para a Ciência do Direito, cada termo utilizado deve designar um conceito, o qual, por sua vez, é obtido através da análise jurídica feita a partir da observação do ordenamento jurídico".16

  3. É certo que a mutação imposta ao regime de Direito Administrativo brasileiro, especialmente no que tange às agências, tem lastro histórico na experiência norte-americana e europeia (esta mais imediata ao direito positivo pátrio).17 Pretende-se criar novas figuras de direito público, que transbordem os marcos das tradicionais autarquias e, quando menos, adquiram plena autonomia e independência, especialmente em relação ao Poder Executivo. Há essencialmente uma "mutação" do regime jurídico de "pessoas de direito público" para "figuras de direito público e de direito privado".18 Busca-se atribuir maior rapidez na execução das propostas...

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