Conhecimento, verdade e direito tributário

AutorFabiana del Padre Tomé
CargoMestre e Doutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora no Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu da PUC/SP
Páginas101-114

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1. Nada existe onde faltam palavras

O estudo1 lingüístico, nos tempos atuais, reveste-se de extraordinária importância, principalmente no que diz respeito ao conhecimento científico. Somente por meio da linguagem é possível o conhecimento. Nesse sentido, recorde-se a proposição 5.6 do Tractatus Logico-Philosophicus, segundo a qual "os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo".2

Isso não significa que inexistam quaisquer objetos físicos onde não haja linguagem. A proposição de Wittgenstein quer mostrar que é pela linguagem e somente por ela que a realidade social é construída. A linguagem não cria o mundo-em-si, como objeto fenomênico, mas sim a sua compreensão, realidade objetiva do ser cognoscente.

Partindo dessas premissas e considerando que a realidade do ser cognoscente pressupõe o conhecimento, depreende-se que a própria realidade objetiva demanda a existência de linguagem.

A título de exemplificação, recorde-mo-nos das teorias relativas à "descoberta"3 dos átomos. Até o instante em que se deu essa teoria, os átomos inexistiam, quer dizer, não faziam parte da realidade objetiva. E mais ainda, quando criados os átomos, estes eram indivisíveis. Posteriormente, porém, houve a criação de prótons, nêu-trons e elétrons, partículas que passaram a ser componentes dos átomos. Igualmente à situação já exposta, antes de surgir a teoria criadora de tais elementos, eles não faziam parte da realidade.

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Nesse mesmo sentido, afirma Reca-séns Siches:4 "‘Meu mundo' concreto está constituído por objetos reais, que são provavelmente com independência de mim; mas o mundo dos objetos que formam o meu mundo, a forma e a estrutura em que eles se mostram a mim, a perspectiva em que se articulam e a significação que possuem para mim, tudo isso de algum modo depende do meu eu concreto. (...) É certo que, mediante uma construção intelectual - desde logo justificada -, referimo-nos a um 'mundo em si', 'o mundo', pura e simplesmente, em que se compreenda a totalidade de tudo quanto exista, sem limitar-se nem configurar-se pela perspectiva do sujeito humano. Mas a idéia de 'o mundo total e em si' é uma perspectiva intelectual, correta e justificada, mas não é um dado da experiência. Cada indivíduo não tem ante si a totalidade do mundo - todos os seus objetos -, mas alguns deles. Assim, por exemplo, no mundo dos gregos não existiam micróbios nem vitaminas, pois, apesar de estes existirem de fato, os gregos não os conheciam".

Veja-se quão importante é a linguagem. Além de criar o real, é a única capaz de desconstituí-lo. São as teorias que criam a nossa realidade. São as teorias, também, que a destroem, vindo a construir uma realidade diversa. Não são os eventos que se rebelam contra determinada teoria, demonstrando sua inadequação a eles. Apenas uma linguagem é capaz de destruir outra linguagem; somente uma teoria, portanto, pode refutar outra teoria.

Cuida salientar, ainda, que a existência ou inexistência concreta dos seres é irrelevante. Tendo a linguagem a virtude de constituir a realidade objetiva, ela se auto-sustenta, não havendo que falar em correspondência do enunciado com o objeto. Isso explica como é possível falarmos em coisas que não existem.

Temos para nós que o sentido de um vocábulo não se confunde com a coisa em si: seu significado nada mais é que outro signo, outro vocábulo. Pensamos não existir correspondência entre as palavras e os objetos. A linguagem não reflete as coisas tais como são (filosofia do ser) ou tais como desinteressadamente percebe uma consciência, sem qualquer influência cultural (filosofia da consciência).

A significação de um vocábulo não depende da relação com a coisa, mas do vínculo que estabelece com outras palavras. Nessa concepção, a palavra precede os objetos, criando-os, constituindo-os para o ser cognoscente. Como anota Dardo Scavino,5 "não existem fatos, só interpretações, e toda interpretação interpreta outra interpretação". Daí a conclusão de que se a coisa não precede a interpretação, só aparecendo como tal depois de ter sido interpretada, então é a própria atividade in-terpretativa que a cria. O fato inexiste antes da interpretação. É o ser humano que, interpretando eventos ou até mesmo empregando recursos imaginativos, cria o fato, fazendo-o por meio da linguagem, entendida como o uso intersubjetivo de sinais que tornam possível a comunicação.

Por essa mesma razão, somente por meio da linguagem é possível o conhecimento, em seu sentido pleno, como algo objetivado.

Seguindo semelhante linha de raciocínio, Leonidas Hegenberg6 conclui que "o ser humano transforma a circunstância em mundo. Dando sentido às coisas que o cercam, interpretando-as, o ser humano pode viver (ou, no mínimo, sobreviver). Quer dizer, o ser humano reconhece as coisas, entende-as, sabe valer-se delas, para seu benefício. Em suma, o caos circundante se transforma em mundo - uma circunstância, dotada ainda que parcial e provisoria-

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mente, de certa interpretação". O mundo não é um conjunto de coisas que primeiro se apresentam e, depois, são nomeadas ou representadas por uma linguagem. Isso que chamamos de mundo nada mais é que uma interpretação, sem a qual nada faria sentido.

Nas palavras desse autor,7 ao nascer somos atirados em um mundo, o qual se apresenta, para nós, como uma circunstância cheia de coisas, a que aos poucos nos ajustamos. E, para que esse ajuste não seja apenas físico, mas também intelectual, contamos com as interpretações que dela fizeram aqueles que nos antecederam, interpretações estas que conferem inteligibilidade ao mundo.

A experiência sensorial é imprescindível ao ato de conhecimento. Essa experiência, porém, não se resume ao mero contato com a coisa-em-si, exigindo, para que se opere, a interpretação dos fenômenos que se nos apresentam. É mediante o contato com essa interpretação que construímos outras interpretações mais elaboradas, denominadas significações conceptuais. Em ambos os casos (interpretação primeira e fixação da significação conceptual), faz-se presente a linguagem, sendo-nos lícito afirmar que a linguagem não se restringe a transformar a realidade efetiva em realidade conceptual: mais que isso, a linguagem é o meio pelo qual se criam essas duas realidades.

O conhecimento pressupõe a existência de linguagem. E a realidade do ser cog-noscente caracteriza-se exatamente por esse conhecimento do mundo, constituído mediante linguagem. Não é possível conhecermos as coisas tal como se apresentam fisicamente, fora dos discursos que a elas se referem. Por isso, nossa constante afirmação de que a linguagem cria ou constitui a realidade.

Algo só tem existência no mundo social quando a palavra o nomeia, permitin-do que apareça para a realidade cognos-cente. Lenio Luiz Streck8 é preciso ao discorrer sobre o assunto, asseverando não ser possível falar sobre algo que não se consegue verter em linguagem: "Isto porque é pela linguagem que, simbolizando, compreendo; logo, aquele real, que estava fora do meu mundo, compreendido através da linguagem, passa a ser real-idade. Dizendo de outro modo: estamos mergulhados em um mundo que somente aparece (como mundo) na e pela linguagem. Algo só é algo se podemos dizer que é algo. (...) A construção social da realidade implica um mundo que pode ser designado e falado com as palavras fornecidas pela linguagem de um grupo social (ou subgrupo). O que não puder ser dito na sua linguagem não é parte da realidade desse grupo; não existe, a rigor".

As coisas não precedem o discurso, mas nascem com ele, pois é o discurso que lhes dá significado. Consoante sublinha Manfredo Araújo de Oliveira,9 "não existe mundo totalmente independente da linguagem (...). A linguagem é o espaço de expressividade do mundo, a instância de articulação de sua inteligibilidade". E é em busca dessa inteligibilidade e seu aprimo-ramento que deixamos de associar palavras a coisas, passando a relacioná-las com outras palavras, mediante aquilo que se intitula definições. Como corolário, é forçoso concluir que as definições não dizem respeito a coisas: o que definimos são as palavras mesmas, empregando outras palavras.

É comum nos referirmos a coisas que não percebemos diretamente e de que só temos notícias por meio de testemunhos alheios. Falamos de lugares que não visitamos, pessoas que não vimos e não veremos

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(como nossos antepassados e os vultos da História), de estrelas invisíveis a olho nu, de sons humanamente inaudíveis (como os que só os cães percebem), e muitas outras situações que não foram e talvez jamais sejam observadas por nós. Referimo-nos, até mesmo, a coisas que não existem concreta-mente.

Como se vê, o significado não consiste na relação entre suporte físico e objeto representado, mas na relação entre significações.10 As assertivas não denotam os acontecimentos em si, mas outras palavras. A verdade não corresponde à identidade entre determinada proposição e o mundo da experiência, mas à compatibilidade entre enunciados: (i) aquele que afirma ou nega algo e (ii) o que constitui o fato afirmativo ou negativo, mediante a linguagem admitida pelo sistema em que se insere.

Além disso, é sabido que os acontecimentos físicos se exaurem no tempo. Uma vez concretizado, desaparece, sendo impossível ter-lhe acesso direto. Enrique M. Falcón,11 ao discorrer sobre o conhecimento e o modo como este se opera, deixa transparecer essa impossibilidade de intersecção entre fato e evento, ou seja, entre o relato lingüístico e o mundo da experiência: "Em geral, se pensa que os acontecimentos passados sobre os quais temos conhecimento não só foram reais, mas também se podem recordar e reviver com toda exatidão. Isso não é certo, pois não se pode afirmar, fora de toda dúvida, no sentido próprio da palavra, a certeza absoluta com relação à...

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