Dos conflitos intersubjetivos ao surgimento da sociedade de massas

AutorGustavo Viegas Marcondes
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
Páginas8-20

A tarefa de delimitar no tempo o marco inicial do que entendemos atualmente por interesses coletivos, ou mesmo por tutela jurisdicional coletiva, não é singela. Com efeito, há menos utilidade na determinação desses marcos, por si mesmo considerados, do que na compreensão do contexto histórico em que se deu o desenvolvimento dos institutos jurídicos a partir dos quais surgiu o que hoje entendemos por tutela jurisdicional coletiva.

Para o escopo desse trabalho, a compreensão desse contexto histórico passa também pela compreensão da própria sociedade (não apenas a brasileira) dos séculos XIX e XX, preponderantemente. Isso não significa, como veremos adiante, que antes disso não houvesse notícias da utilização de mecanismos de tutela jurisdicional coletiva, inclusive de tutela coletiva passiva. Entretanto, foi nesse período que se desenvolveu mais acentuadamente a ideia de interesse transindividual, passível de tutela jurisdicional específica. Além disso, foi também nesse período que se observou a inaptidão do modelo individual de tutela jurisdicional para dirimir conflitos marcados pela indeterminação de sujeitos e indivisibilidade do bem da vida em disputa.

Ao se desenvolverem os primeiros estudos acerca dos interesses transindividuais percebeu-se que essa categoria de interesses não se enquadrava na clássica definição de Direitos Subjetivos, sobretudo, em razão da indeterminabilidade dos titulares e da indivisibilidade do objeto. Rodolfo de Camargo Mancuso pontua essa distinção, com foco nos interesses difusos, destacando que tal categoria de interesses jurídicos se apresenta marcada pela insuscetibilidade de apropriação.

Os interesses difusos situam-se, assim, no “extremo oposto” dos direitos subjetivos, visto que estes apresentam como nota básica o “poder de exigir”, exercitável por seu titular, contra ou em face de outrem, tendo por objeto o bem da vida. Ora, é justamente essa relação de imanência entre o interesse e uma pessoa determinada que inexiste nos interesses difusos; sendo insuscetíveis de apropriação a título exclusivo, os interesses difusos caracterizam-se, justamente, com referir-se a uma série indeterminada de sujeitos.1

Nesse mesmo sentido, Luís Antônio Rizzatto Nunes pontua que a indeterminabilidade do sujeito, e também a indivisibilidade do objeto, configuram características determinantes para a denotação dos interesses difusos.

Aliás, diga-se que é exatamente essa característica da indeterminabilidade da pessoa concretamente violada um dos principais aspectos dos direitos difusos.

O termo “difuso” significa isso: indeterminado, indeterminável. Então, não será preciso que se encontre quem quer que seja para proteger-se um direito tido como difuso. (...)

O objeto ou bem jurídico protegido é indivisível, exatamente por atingir e pertencer a todos indistintamente. Por isso, ele não pode ser cindido.2

Luiz Rodrigues Wambier, por seu turno, esclarece como se estabeleceu essa dicotomia entre os chamados “novos direitos” e a clássica conceituação dos Direitos Subjetivos.

Em nosso entender, a extrema modernidade dos novos direitos, e seu visível contraste com a clareza de determinação dos direitos “antigos”, representado, entre outros fatores, pela disseminação dos efeitos da coisa julgada, pelo alargamento da legitimação para agir e pela indeterminação de seus titulares (pelo menos sob o ponto de vista dos padrões clássicos), certamente contribuiu para que sejam vistos com doses de reserva ou com muita precaução.

Isso determinou que fossem esses direitos novos (difusos e coletivos), mais os direitos individuais homogêneos, tratados com certo preconceito, até porque se trata de direitos dificilmente encartáveis nos rígidos esquemas conceituais que sempre guardaram os direitos subjetivos, ou, no caso dos individuais homogêneos, do tratamento dispensado aos direitos subjetivos individuais, em decorrência do caráter coletivo que têm, ainda que só acidentalmente.3

O que se percebe é que a própria designação “novos direitos” dá uma boa ideia do rompimento conceitual que, até então, marcava a teoria jurídica, especificamente no campo dos Direitos Subjetivos. Houve, verdadeiramente, o desenvolvimento de uma nova categoria jurídica, essencialmente ligada a uma nova realidade social e econômica, na qual se molecularizaram os interesses jurídicos.

A propósito, José Eduardo Faria pontua que o efetivo exercício de tais “novos direitos” depende fundamentalmente de uma atividade positiva do Estado, por meio de iniciativas estatais comprometidas com um objetivo específico, inclusive no âmbito do Poder Judiciário.

Já os direitos coletivos, se atentarmos bem para sua lista, têm outro caráter. Não se trata, na maioria dos casos previstos no art. 6.º, de se conservar uma situação de fato existente. Assim, tipicamente o remédio ou a ação para proteger tais direitos não consiste na exclusão de outrem (Estado ou particular) numa esfera de interesses já consolidados e protegidos de alguém (indivíduo ou grupo). Trata-se de situações que precisam ser criadas. Assim o direito à educação: é mais do que direito de não ser excluído de uma escola; é, de fato, o interesse de conseguir uma vaga e as condições para estudar (ou seja, tempo livre, material escolar, etc.). Ora, se a vaga não existe, se não existe tempo livre, se não há material escolar a baixo custo, como garantir juridicamente tal direito? Como transformá-lo de um direito à não interferência (permissão, dever de abstenção) em um direito à prestação (dever de fazer, obrigação) de alguém? Paradigmaticamente a mesma coisa ocorre com o direito à moradia: como transformar o direito à propriedade (defesa de bens contra a injusta invasão ou apropriação de terceiros e permissão para deter bens legitimamente adquiridos) em direito à moradia (acesso à propriedade, ou à posse) – pela locação, por exemplo – de um local onde se estabelecer com a família numa cidade). De quem exigir tal acesso, contra quem exercer seu direito e quem afinal está obrigado a que espécie de prestação?

Ora, tipicamente os novos direitos sociais, espalhados pelo texto constitucional, diferem em natureza dos antigos direitos subjetivos. Não se distinguem apenas por serem coletivos, mas por exigirem remédios distintos. Mais ainda, têm uma implicação política inovadora na medida em que permitem a discussão da justiça geral e da justiça distributiva, para retomarmos a distinção clássica.4

A própria referência aos interesses transindividuais como “novos direitos”, por si só, demonstra essa dicotomia, justamente porque tal categoria de interesses foge aos critérios de definição que marcaram a Teoria dos Direitos Subjetivos. A propósito, essa “nova” categoria de interesses também não encontra lugar na clássica dicotomia entre Direito Público e Direito Privado5. É esse o entendimento de Luiz Rodrigues Wambier que, destacando tratar-se de uma categoria autônoma de direitos, reclama um tratamento processual igualmente particularizado.

Em nosso entender, a questão pode ser resolvida na medida em que nos disponhamos a encarar tais direitos (coletivos e difusos) como direitos novos, desvinculados daqueles direitos subjetivos já protegidos pelo sistema jurídico, e que convivem harmoniosamente com estes, embora recebam tratamento processual diferenciado.6

Com efeito, os interesses transindividuais, sempre foram tomados por direitos humanos de terceira dimensão7, associados ao valor “fraternidade” que remonta aos ideais consagrados pela Revolução Francesa de 1789 – liberdade, igualdade e fraternidade.

De modo geral, associa-se o valor “liberdade” aos direitos de primeira dimensão, ou seja, os direitos de liberdades individuais, de cunho proibitivo ao Estado. O valor “igualdade” é associado aos direitos de segunda dimensão, ou seja, direitos sociais, relacionados ao trabalho e à participação do Estado na promoção de iniciativas de bem estar social, e o valor “fraternidade”, por sua vez, é associado aos direitos de terceira dimensão, ou seja...

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