A Mediação nos Conflitos de Consumo em Portugal

AutorCátia Marques Cebola
CargoDoutora em Direito e docente na ESTG-IPLeiria
Páginas155-166

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Introdução

Os direitos do consumidor, com expressa proteção constitucional, apenas poderão almejar efetividade se, paralelamente à sua consagração legal, coexistir um sistema idóneo de reconhecimento desses mesmos direitos, que permita, além do mais, a sua concretização através da solução adequada dos conflitos iminentes numa relação jurídica de consumo. Esta realidade cedo fez nascer o impulso legislativo de criação de formas extrajudiciais de resolução de conflitos de consumo fora do cenário judicial.

Em termos europeus, o Programa Preliminar da Comunidade Económica Europeia para uma política de proteção e informação dos consumidores1, de 1975, prescrevia a necessidade de aprofundar o estudo sobre a criação de sistemas de resolução amigável de conflitos, tendo em conta o direito inderrogável de os consumidores obterem a reparação dos danos decorrentes de uma relação jurídica de consumo através de meios rápidos, eficazes e pouco dispendiosos2.

Na mesma senda, é apresentado em 1993 o Livro Verde sobre o Acesso dos Consumidores à Justiça e a resolução dos litígios de consumo no mercado único3, no qual sai "reforçada a ideia do recurso aos meios não judiciais para resolução de litígios transfronteiras de consumo"4.

A ratio subjacente aos intentos europeus repousa nas características inerentes aos conflitos de consumo, as quais resultam da especial relação jurídica que se estabelece entre consumidor e agente económico, aquando da aquisição de bens, prestação de serviços ou transmissão de direitos, destinados a uso não profissional. Com efeito, o consumidor constitui a parte "economicamente mais fraca e juridicamente menos experiente do que o seu cocontratante"5, possuindo os agentes económicos maiores capacidades ao nível do aconselhamento jurídico e patrocínio judiciário. Constituem ainda características dos litígios de consumo o seu baixo valor, as especificidades das matérias inerentes, o efeito réplica deste tipo de litigiosidade (capaz de atingir simultaneamente vários consumidores) ou o seu caráter tantas vezes transfronteiriço (com o desenvolvimento do comércio eletrónico)6.

Neste contexto, o sistema judicial revela-se pouco afinado na resposta à litigiosidade de consumo, quer pelos custos inerentes, quer pelas delongas processuais evidenciadas, quer ainda pelo formalismo processual dissonante com as características dos conflitos neste âmbito. Assim, a

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aposta na implementação de meios extrajudiciais para a resolução de litígios de consumo tem-se intensificado. A recente Diretiva 2013/11/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução alternativa de litígios de consumo (comumente designada Diretiva RAL) ou o Regulamento (UE) n. 524/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013, sobre a resolução de litígios de consumo em linha (abreviadamente referido por Regulamento ODR) são apenas dois exemplos da importância reconhecida aos meios extrajudiciais ao nível da resolução de conflitos de consumo e da continuação dos esforços para garantir a sua implementação em todo o espaço europeu.

Em Portugal a aplicação de meios extrajudiciais à resolução de conflitos de consumo tem sido protagonizada, em grande medida, pelos centros de arbitragem de conflitos de consumo, datando de 1989 o primeiro centro sito na cidade de Lisboa7. Hoje existem no panorama nacional sete centros de arbitragem de conflitos de consumo de competência regional restrita aos concelhos abrangidos na sua égide8e ainda dois centros nacionais especializados em conflitos na área dos seguros (CIMPAS) e no setor automóvel (CASA)9.

Uma característica comum aos vários centros de arbitragem de conflitos de consumo reside na adoção de um modelo faseado de resolução dos litígios, dividida em várias etapas, com a aplicação sucessiva de diferentes mecanismos. Este modelo, designado na doutrina estrangeira de multistep conflict resolution, tenta primeiramente granjear o acordo das partes para uma solução negociada através da mediação e da conciliação. Apenas frustrada a tentativa de obtenção do acordo por meios autocompositivos, se dá início ao julgamento arbitral, de caráter heterocompositivo, que desembocará na sentença final ditada pelo árbitro do centro. Estatísticas da Justiça revelam que em 2010 mais de 50% dos processos findos nos centros de arbitragem de conflitos de consumo ficariam resolvidos em sede de mediação10. Estes dados permitem perceber a importância deste mecanismo na obtenção de uma solução dialogada e célere pelas partes em conflito, pelo que no presente trabalho cingiremos a nossa análise na aplicação hodierna da mediação em Portugal, tendo em conta, designadamente, o novo enquadramento legal criado pela Lei 29/2013, de 19 de abril.

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1. A mediação de consumo: aproximação conceptual

A conceptualização da mediação não constitui tarefa de fácil objetivação. Efetivamente, subjaz a este mecanismo de resolução de litígios a flexibilidade de procedimentos e das técnicas utilizadas pelo mediador, pelo que se torna difícil apresentar o conceito de mediação de forma minuciosa e restritiva.

Os vários centros de arbitragem de conflitos de consumo preveem a aplicação da mediação sem, contudo, a definirem. Em termos comparados, o Real Decreto 231/2008, de 15 de fevereiro, que regulamenta o Sistema Arbitral de Consumo em Espanha, também consagra a mediação como forma de resolução deste tipo de conflitos no seu art. 38º, mas nada refere quanto ao seu conceito11.

Neste contexto, haverá que se buscar na regulamentação geral da mediação a sua definição conceptual12. A Diretiva 2008/52/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio, relativa a certos aspectos da mediação em matéria civil e comercial13, no seu artigo 3º, alínea a), define a mediação como um processo estruturado, independentemente da sua designação ou do modo como lhe é feita referência, através do qual duas ou mais partes em litígio procuram voluntariamente alcançar um acordo sobre a resolução do seu litígio com a assistência de um mediador. O legislador comunitário abrange ainda neste conceito a mediação conduzida por um juiz que não seja responsável por qualquer processo judicial relativo ao litígio em questão, excluindo, dessa forma, as tentativas para solucionar por acordo o conflito, levadas a cabo pelo tribunal ou pelo juiz do próprio processo em curso, durante a respectiva tramitação. Segundo os desígnios comunitários, no âmbito dos centros de arbitragem de conflitos de consumo, não constituirá mediação as tentativas de obtenção de acordo levadas a cabo pelo árbitro do processo em...

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