Conflitos de competência tributária entre o ISS e o ICMS: a tributação das 'operações mistas' e a evolução da jurisprudência

AutorCaio Augusto Takano
CargoMestrando em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP.
Páginas103-112

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1. Considerações introdutórias

A Constituição Federal de 1988 repartiu competências tributárias entre os entes políticos mediante a instituição de regras, referindo-se, no mais das vezes, a conceitos determinados, com o escopo de definir as possibilidades de atuação legiferante daqueles entes, bem como de prevenir eventuais conflitos de competência.1Tais regras atuam como uma primeira e importante limitação ao poder de tributar que, a um só tempo, definem expressamente, já no antiplano constitucional, quais são os fatos susceptíveis de tributação e retiram parcela de liberdade do legislador, na medida em que delimitam o conteúdo das normas que poderá editar.2É forçoso reconhecer a relevância das regras de competência tributária e dos conceitos nelas introduzidos, resultado de uma efetiva tomada de decisão pelo legislador constituinte, em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido, é procedente a advertência de Paulo de Barros Carvalho, de que "o empenho do constituinte cairia em solo estéril se a lei infraconstitucional pudesse ampliar, modificar ou restringir os conceitos utilizados naquele diploma para desenhar as faixas de competências oferecidas às pessoas políticas".3

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Nada obstante, a partir de um determinado signo constitucional é possível construir diversas propostas interpretativas, dependendo da perspectiva adotada pelo exegeta. Por exemplo, tem-se usualmente o Direito Tributário como um "direito de superposição",4sendo os conceitos de Direito Privado utilizados pela Constituição imutáveis, seja pela própria lógica do sistema jurídico, seja pelo comando expresso do art. 110 do CTN. Contudo, no âmbito privado, o signo "serviço" comporta tanto uma acepção mais restrita (Direito Civil), quanto uma acepção mais ampla (Direito do Consumidor).

Dúvidas surgem, pois, em relação à construção da significação a partir dos signos utilizados nos enunciados constitucionais, ainda que se adote como premissa a existência de conceitos rígidos e imutáveis. Qual conceito deverá prevalecer? Quais traços são relevantes para o direito tributário? Como devem ser interpretados os signos utilizados nos enunciados constitucionais?

No que se refere ao tema proposto, mesmo com o esforço do legislador complementar para dirimir conflitos de competência (e aqui a doutrina converge na possibilidade de a lei complementar dirimir conflitos de competência5), definindo contornos mais nítidos para os conceitos de "serviço" ou de "circulação de mercadoria", não são raras as pretensões dos Estados de exigir o ICMS sobre operações que impliquem fornecimento de mercadoria, ainda que configurem mera etapa de uma determinada prestação de serviço. De outro lado, também é comum que os Municípios exijam o ISS de uma determinada etapa da cadeia produtiva da mercadoria que envolva uma atividade que, isoladamente, pudesse ser considerada como um serviço.

Diante deste panorama, coube ao Poder Judiciário definir com maior precisão os tênues limites das hipóteses de incidência do ISS e do ICMS nas chamadas "operações mistas", isto é, atividades que envolvem serviços e fornecimento de mercadorias, elegendo critérios que pudessem determinar qual imposto deveria incidir sobre elas, respeitando-se os arquétipos constitucionais. No entanto, diversas foram as soluções propostas pelos Tribunais superiores e pouco significativa foi a segurança jurídica promovida a partir das construções pretorianas até o momento.6Busca-se, no presente estudo, investigar as balizas constitucionais sobre a matéria para, posteriormente, analisar a evolução da jurisprudência sobre o tema, buscando identificar quais critérios são considerados relevantes para classificar uma "operação mista" como "prestação de serviço" ou "circulação de mercadoria", bem como verificar a pertinência de tais critérios com o nosso ordenamento jurídico.

2. A discriminação de competências tributárias na Constituição Federal de 1988

A estruturação do sistema constitucional tributário foi realizada por intermédio de um trabalho minudente do legislador constituinte, pelo qual se atribui a característica da rigidez ao nosso sistema, como sempre enfatizou Geraldo Ataliba.7No Brasil, como em nenhum outro corpo legislativo, foram delineadas, de forma clara e precisa, as balizas que deverão ser inexoravelmente observadas por todos, legisladores e aplicadores do Direito.

Essa opção do legislador constituinte por um sistema fechado, com base em regras, e não em dicções principiológicas,

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implica importantes consequências para a compreensão de nosso sistema jurídico, principalmente em relação aos limites interpretativos das normas constitucionais de competência tributária. Neste sentido, são oportunas as lições de Humberto Ávila: "O decisivo é que a Constituição Brasileira não permitiu a tributação pelo estabelecimento de princípios, o que deixaria parcialmente aberto o caminho para a tributação de todos e quaisquer fatos condizentes com a promoção dos ideais constitucionais traçados".8A partir dessa decisão, restringiu-se substancialmente a liberdade do legislador infraconstitucional, que ficou adstrito às balizas traçadas já em sede constitucional. Em outras palavras, é na própria Constituição Federal que a competência impositiva dos entes públicos encontra seus limites máximos.9De interessante figura se vale Paulo Ayres Barreto para descrever esse fenômeno, identificando, no texto constitucional, uma série de prescrições que conformariam "círculos concêntricos", que definiriam o último e efetivo limite da tributação, e, a partir deste círculo, formar-se-iam sucessivos círculos concêntricos, em contínuas reduções, até a efetiva definição do espectro possível de atuação do legislador ordinário para instituir a norma geral e abstrata, dentro do qual, inclusive, deve agir a administração tributária.10Disso decorre a impossibilidade de se pretender ampliar o campo de competência delimitado em âmbito constitucional, a partir de prescrições principiológicas ou a partir da finalidade daquelas normas. Deve-se, ao contrário, respeitar a decisão do legislador constituinte ao optar por tratar o assunto mediante regras. Como ensina Frederick Schauer, a partir de sua positivação, a própria regra fornece razões suficientes para as tomadas de decisões de seu aplicador.11Não é demais lembrar que a rigidez constitucional possui como aspecto positivo a repartição de competências tributárias e, como aspecto negativo, a inibição dos demais entes federativos pela referida outorga, evitando, pelo menos no plano lógico, os con-flitos de competência e a bitributação interna.

Se a existência de uma repartição de competências tributárias não é uma exigência do sistema federal (desde que seja assegurada a autonomia financeira de seus membros, através da discriminação de receitas da arrecadação), é interessante observar, contudo, que esta opção acompanhou todos os textos constitucionais desde o surgimento da federação brasileira.12E o legislador constituinte o fez, principalmente, por duas razões: (i) assegurar a autonomia financeira das pessoas políticas que compõem a federação, conferindo-lhes fontes juridicamente próprias de receitas;13e (ii) proteger o contribuinte da cumulação de incidências que pudesse ultra-passar a capacidade contributiva manifestada por um mesmo fenômeno.14Como assinalou Misabel Derzi, em virtude da existência de princípios fundamentais como o federalismo e a rigidez constitucional, não poderia o legislador constituinte ter optado por tipos, estruturas mais abertas e fluídas, devido à incompatibilidade de suas características com aqueles princípios, de-

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vendo prevalecer a interpretação a partir de conceitos constitucionais.15Nesse sentido, surge novamente a voz de Paulo Ayres Barreto, que nos adverte: "Não teria o menor sentido a Constituição ser minudente ao discorrer sobre as competências tributárias, estabelecendo, ainda, uma cláusula de fechamento (art. 154, I, da CF) para, em seguida, permitir que o legislador infraconstitucional manipulasse a competência da forma que bem lhe aprouvesse".16Portanto, estamos convencidos de que a amplitude do campo de incidência tributária, em qualquer instrumento normativo, deverá ser buscada inicialmente na própria Constituição Federal, onde encontrará nos signos utilizados pelo legislador constituinte um conceito fechado, que, por sua vez, atuará como um primeiro e intransponível limite.

3. Contornos constitucionais dos espectros de incidência do ISS e do ICMS

Descrever todo o debate teórico realizado no âmbito acadêmico nas últimas décadas em torno da existência e do conteúdo de um conceito de prestação de serviço e outro de circulação de mercadoria, a partir de sua radicação constitucional, certamente ultrapassaria o escopo desse artigo. Contudo, a identificação dos traços típicos da competência delimitada em sede constitucional será bastante útil para a compreensão das discussões que circunscrevem o tema dos conflitos de competência entre o Imposto sobre Serviços - ISS e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços - ICMS.

A Constituição Federal, em alguns casos, foi bastante lacônica no tratamento do regime jurídico de alguns impostos, nos quais se limitou a delimitar suas materialidades possíveis mediante a enunciação de conceitos, conferindo maior liberdade ao legislador infraconstitucional para disciplinar a matéria, como no caso do IPI e do ISS; enquanto que em outros foi bastante minuciosa, delimitando de forma precisa seus contornos essenciais, como no caso do ICMS.

Nada obstante, mesmo naqueles casos, não se...

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