Conflitos coletivos de trabalho: a greve, num contexto de violência, frente a outros direitos fundamentais

AutorFrancisco Gérson Marques de Lima
CargoProcurador Regional do Trabalho lotado na PRT-7ª Região (Ceará), Doutor em Direito Constitucional, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Páginas72-105

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1. Introdução

O presente artigo doutrinário tem por escopo analisar o conflito entre direitos fundamentais nos movimentos paredistas. A apreciação ora feita recorre às técnicas de interpretação constitucional, com exploração dos primados da harmonização, da ponderação, da razoabilidade e da proporcionalidade. Em face da dimensão destes princípios ou técnicas hermenêuticas não serão cotejadas muitas situações concretas, por falta de espaço e dos objetivos do presente texto. Contudo, as premissas básicas são lançadas criticamente, sob uma perspectiva além da meramente jurídica.

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A fonte de pesquisa foi, basicamente, a doutrinária, apesar de se trazer à colação algumas situações concretas, que servem para esclarecer o posicionamento da jurisprudência brasileira.

Considerando a perspectiva constitucional, em que se investiga o conflito de direitos fundamentais a partir do exercício do direito de greve, um típico direito social trabalhista, tem-se que as páginas seguintes poderão contribuir para uma melhor compreensão do fenômeno. E foi justamente esta omissão da doutrina trabalhista brasileira que inspirou a elaboração do presente deste artigo.

2. Hermenêutica de direitos fundamentais e greve

O principal motivo de se questionarem as greves reside na violação que ela geralmente causa a interesses da sociedade (interesse público) e a outros direitos fundamentais. Sua complexidade leva, inevitavelmente, a esta possibilidade.

Raimundo Simão de Melo observa, com muita propriedade, que a sociedade é prejudicada pelas greves porque isso é uma consequência natural do paredismo. Todavia, há limites de tolerância. Confira-se a lição doutrinária:

“Vítimas dos prejuízos do exercício irregular do direito de greve são as empresas, os próprios trabalhadores e a comunidade, esta no caso das greves em serviços e atividades essenciais. Mas também um particular, conforme o caso, pode sofrer prejuízos anormais decorrentes de uma greve e, por isso, buscar reparação condizente. Os prejuízos não são os normais decorrentes do exercício regular da greve, uma vez que esta, como instrumento democrático de pressão dos trabalhadores para fazerem valer as suas reivindicações, tem como finalidade exatamente causar prejuízos, pois, ao contrário, não serviria para nada. Seria como um sino sem badalo, uma voz sem eco ou discurso sem empolgação. O prejuízo indenizável no caso da greve é aquele anormal, porque não se pune quem exerce regularmente um direito. Para a classe econômica, pode ser considerado prejuízo indenizável, por exemplo, a falta de acordo por intransigência dos trabalhadores e do respectivo sindicato para a formação de equipes de manutenção de equipamentos e maquinários que não podem, pela natureza da atividade, sofrer solução de continuidade quanto ao funcionamento.

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Para a comunidade, o exemplo presente é a falta do atendimento das necessidades inadiáveis previstas na Lei n. 7.783/89 (art. 11 e parágrafo único). Não se quer com isso dizer que não possa ser feita a greve nas atividades essenciais, ela está autorizada sim, porém, haverá prejuízo para a população, que mesmo sem greve já sofre com a deficiência dos serviços essenciais, como atendimento médico, transporte cole-tivo e outros. Trata-se, portanto, de se compatibilizar o exercício de dois direitos igualmente fundamentais, como o exercício da greve e o atendimento das atividades inadiáveis da comunidade.

O que não se pode permitir são aqueles prejuízos dolosos e anormais, os quais podem levar à responsabilização civil, trabalhista e até criminal dos culpados, conforme o caso, que podem ser os empregados, os sindicatos ou os empregadores e até mesmo todos eles conjuntamente.”1

Certo é que a convivência em sociedade envolve um complexo difuso de vários direitos e deveres, que podem entrar em conflito e, no plano jurídico, é factível que haja antinomias. Portanto, compreende-se que o direito de greve possa, em situações concretas, colidir com outros interesses ou direitos de outros grupos, do Estado ou da sociedade, ou seja, é possível existir conflito de interesses metaindividuais, mútuos, ou que envolva direitos individuais. Nestes instantes, é necessário que o intérprete encontre a melhor forma de compatibilizar todos os interesses e, caso não seja isto possível, sacrificar algum, parcial ou, em último caso, totalmente. Todavia, esta solução, saiba-se, só vale para a situação concreta, como orienta a Hermenêutica dos Direitos Fundamentais, de que os direitos sociais são espécies. Em outro momento, quando a circunstância será diversa, pode ser que aquele critério hermenêutico aponte para solução inversa ou diferente2.

Assim, quando a Constituição Federal assegura o direito de greve (art. 9º), não permite que ele seja exercido abusivamente. Aliás, nenhum direito, de nenhuma hierarquia, pode ser exercido de forma abusiva. O interesse público e outros direitos individuais ou coletivos igualmente merecem ser atendidos. Quando emanar, na situação concreta, conflito de interesses, caberá ao intérprete tentar harmonizá-los, para que ambos os direitos possam ser exercidos. Portanto, quando o movimento paredista apresente tendência a ultrapassar os limites do tolerável, como a iminente invasão da propriedade alheia e sua depredação, as autoridades públicas poderão

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estabelecer limites razoáveis de aproximação a certos locais, para que o bem seja preservado, mas sem deixar de assegurar o exercício da greve.

César Augusto Carballo Mena, atento ao conflito de direitos gerado pela greve, chama a atenção para que o intérprete realize juízo de ponderação entre princípios fundamentais, sem necessariamente partir para a técnica do sacrifício (no caso, a subsunção, que consiste na submissão dos fatos à regra legal, pura e simplesmente). Este tirocínio valoriza a tolerância, em meio à diversidade dos interesses, aí incluída a democracia. Em suas próprias palavras, por fidelidade ao original, tem-se:

“15. Desde esta perspectiva, los eventuales conflictos entre los derechos subjetivos de rango constitucional han de resolverse a través de la ponderación antes que la subsunción, esto es, la coexistencia de derechos más que la virtualidad de uno en detrimento de otro, destacándose así el principio de la tolerancia frente a la diversidad, esencial a la concepción sustancial de la democracia.”3

Maria Luisa Balaguer Callejón ingressa em um importante campo: o de definir o “conteúdo essencial” do direito de greve.3 Trata-se, na realidade, de esclarecer qual o núcleo fundamental deste direito, aquela essência sem a qual ele ficaria descaracterizado; o ponto central, assegurado constitucionalmente. Seguindo a interpretação desenvolvida pela Hermenêutica de Direitos Fundamentais, referida autora explica que o núcleo do direito é indisponível ao legislador, de tal maneira que o legislativo não pode penetrar nem invadir aqueles aspectos intrínsecos do direito que se consideram precisamente no seu “conteúdo essencial”. Esta parte central de qualquer direito fundamental é intocável pelo legislador e serve de limite aos demais direitos, que também possuem, cada um, seus conteúdos essenciais. Leciona a referida autora4:

“Si decimos que cada derecho fundamental tiene un contenido esencial, indisponible para el legislador, el contenido esencial es la esencia misma del derecho fundamental. El límite de cada derecho fundamental está justamente ahí, en su contenido esencial.

A la hora de ponderar los derechos y sus posibles colisiones entre unos y otros, ha de tenerse en cuenta este límite, por encima del cual un derecho fundamental no puede ser restringido. La ponderación de

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derechos fundamentales así entendida, es la relación entre los Derechos Fundamentales desde sus contenidos esenciales en cuanto derechos.

Por ello, es fundamental en el derecho de huelga considerar su contenido esencial, pues a diferencia de otros derechos fundamentales donde la ponderación se efectúa por los tribunales de justicia fundamentalmente, en el derecho de huelga la ponderación, sobre todo en el caso de los servicios públicos, se hace por la Administración Pública de parte del ejecutivo que dicta medidas legislativas (gubernativas pero legislativas), de delimitación de este servicio público, para defender los derechos del consumidor, del usuario, del ciudadano que también tiene derechos fundamentales que proteger.”5

Uma parte da doutrina defende que o núcleo essencial é formulado em tese, abstratamente, em caráter e validade absolutos, encontrando-se imune às ingerências estatais. Logo, tal conteúdo é invariável, resistente, permanente, não podendo ser tocado ou afetado por decisão legislativa ou judicial. Vieira de Andrade fala em camadas, especialmente nos direitos de liberdade, onde há espaços periféricos e um núcleo intangível; quer dizer, “um núcleo essencial e camadas envolventes, com diferença decrescente e contínua de intensidade normativa”6. Outra corrente sustenta a relativização do núcleo, só averiguável em cada situação concreta, onde se analise sua real intocabilidade. O que justifica esta teoria relativa é a instabilidade do núcleo, afetado constantemente pela mobilidade dos valores sociais, que variam no tempo e no espaço, e pela necessidade de adequação frente a outros direitos de núcleos igualmente relevantes, devendo ser justificadas quaisquer restrições ou limitações aos direitos colidentes. A fragilidade das

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teorias absoluta e relativa se encontra justamente no que apresentam de melhor: a primeira tende, por sua perspectiva do endurecimento nuclear, a uma intocabilidade tamanha que leva a difíceis soluções no choque entre direitos fundamentais. Já a...

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