O conflito entre a subjetividade jurídica e a subjetividade psicanalítica - a discussão entre Lacan e Perelman

AutorSilvane Maria Marchesini
Ocupação do AutorJurista. Psicóloga. Psicanalista. Pós-Graduada, Mestra em Psicologia Clínica
Páginas55-68

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Ver nota 23

A articulação por vezes conlitual entre a teoria do Direito e a teoria Psicanalítica repousa sobre o fato de que os dois campos discursivos da subjetividade, ainda que sigam lógicas distintas, eles buscam atingir os seus objetivos práticos por meio da palavra.

Em primeiro lugar, como já dissemos, nós partimos de uma certitude ética de que a subjetividade deve ser tratada numa perspectiva de integração entre as funções psíquicas do consciente e do inconsciente dos sujeitos.

E ainda que esta recente mediação discursiva entre Direito e Psicanálise, a qual não ignora as mutações contemporâneas, coloca a questão de uma relexão tanto sobre as tensões e "conlitos" entre o desejo do indivíduo e as leis das sociedades concretas24, quanto àqueles entre as diferentes leis das sociedades e a "Lei da linguagem". Essa última também chamada de Lei do Nome-do-Pai, que é considerada pela Psicanálise como um fato humano a ser estudado.

Jean-Pierre Lebrun25 psicanalista belga, no livro intitulado "A Perversão ordinária: viver juntos sem outro", propõe um bom esquema para abrir esta relexão. Ele indica, com bastante precisão e de-talhes, os aspectos das mutações seculares no funcionamento coletivo, as quais operam na intersecção individual e social e que são importantes para a construção da subjetividade.

Seu trabalho supõe esta construção em cinco níveis: o nível que Lacan denomina de humus humain, o nível do social humano, o nível da sociedade concreta, o nível da família e o nível da realidade psíquica do sujeito.

No primeiro nível, denominado de humus humain, Lebrun26 realça a especiicidade do humano, tendo-se em vista que a entrada no campo da fala exige do ser de se excluir do gozo absoluto - a Coisa -, sendo assim marcado pela negação.

A estruturante subjetiva é fundada a partir de uma insatisfação insuperável. O ser-falante emerge de uma perda, ou seja, de um menos de gozo que serve de fundamento à Lei do Nome-do-Pai como ao desejo.

No segundo nível, ele coloca aquele do limite, cuja negatividade serve de fundamento à Lei a qual

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surge no social humano sempre representada pela interdição do incesto, distinguindo o mundo natural e o mundo da cultura com o estabelecimento de lugares para os indivíduos no interior do social.

No terceiro nível, ele mostra que as sociedades concretas organizam suas normas e suas leis que são desenvolvidas e transmitidas a partir da interdição fundadora. Nelas se organizam as regras - sociais e jurídicas - que têm como função sustentar o consentimento dos sujeitos a essa perda de gozo absoluto.

No quarto nível, ele designou aquele da família pela importância das relações com os primeiros outros - geralmente os pais - no meio dos quais o sujeito reencontra o limite de gozo.

Ele destaca que no mesmo movimento, será preciso que a criança, no seu nível da realidade psíquica de sujeito, possa consentir a renunciar a todo-gozo - isto é, renunciar a toda potência infantil assumindo a castração simbólica - para poder aceder ao desejo.

Sobre estas bases Lebrun27 sustenta a tese da existência de solidariedade de uma perda necessária a cada nível do dispositivo de construção subjetiva que estabelece a linha divisória entre o gozo e a linguagem, transmitida como limite necessário ? especiicidade do humus humain e da psicologia do desejo.

É a solidariedade diminuta de perda-de-gozo que é atualmente colocada em causa, seguindo-se a ótica de Lebrun28. Na sua pesquisa de clariicação sobre a organização do laço social, ele afirma a existência de uma mutação inédita. Uma subversão sem precedente a qual ele atribui responsabilidade à perda de referências, do mesmo modo que ?s diiculdades de reajustamentos que nós temos aos ecos dos avatares da vida coletiva.

Os dois primeiros níveis, quais sejam, aquele do humus humain, e aquele do social humano, denominados por ele "núcleo antropológico duro", são os que distinguem a ordem simbólica da ordem social.

Lebrun29 busca, desta maneira, delimitar o que revela de contraentes de estrutura e o que se trata de uma simples contingência histórica.

Ele indica o sintoma de uma negatividade deslocada, pulverizada, que anuncia a supressão da categoria do impossível, isto é, a desaparição do limite que impõe um menos-de-gozo, como consequência da deslegitimação das iguras de autoridade. Ele explica que tais mutações seculares no funcionamento coletivo anunciam o im do laço social organizado, desde os tempos míticos, em um sistema sustentado numa posição de exterioridade - ou seja, numa posição de um lugar de exceção divino. Este processo de transformação das alianças sociais leva ao descrédito da diferença de lugares e da transcendência como lógica aceitável.

Ele explica, em suma, que estamos passando pelo im de um regime símbolo da vida coletiva an-teriormente sustentado na Incompletude e Consistência, e vivendo ao mesmo tempo a emergência da construção de outro tipo de laço social o qual marcha em direção a Completude e Inconsistência.

Portanto, a ótica da Psicanálise traz um esclarecimento sobre o fundamento das leis, isto é, da Lei da Humanidade inserida nas estruturas da linguagem - o nível que Lacan chama de humus humain, o nível do social humano, da família, e da realidade psíquica do sujeito - e das leis especíicas do campo do Direito que, por razões históricas, foram construídas e desenvolvidas pelas sociedades concretas30, mais recentemente pelos Estados, tudo isto portando uma relexão sobre o que seria da ordem da huma-nização e da desumanização.

Sobre a questão da legitimidade das leis, é preciso esclarecer que não se trata de qualidade das leis, mas da natureza mesma de uma instância simbólica, isto é, de uma categoria de simbólico em virtude da "lei proposta a esta cadeia"31 da estrutura da linguagem.

Em consequência deste deslocamento da perspectiva de compreensão do simbólico fazendo parte de

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uma cadeia significante submetida ? inluência da linguística - diferentemente de uma combinatória simbólica do inconsciente derivado de Lévi-Strauss -, a compreensão da Lei como instância significante pode se alargar em registros epistemológicos diferentes, por exemplo, a dialética do significante e do Outro, o "vazio interno" subjetivo, as vertentes radicais dos efeitos de linguagem, nomeadamente a metáfora e a metonímia - dito de outro modo, os efeitos de substituição e de combinação do significante nas dimensões respectivamente sincrônica e diacrônica onde eles aparecem no discurso -, enim a re-presentação "borromeana" do simbólico.

Após Freud, Lacan coloca em destaque a dualidade significante/signiicado nos seus primeiros seminá-rios e ele expõe as funções da metáfora e da metonímia nas psicoses a propósito do delírio, se servindo do aporte, sobre este ponto, do linguista Jakobson. Lacan demonstra como a metáfora paternal é ligada à colocação em ato, de um terceiro termo, significante fálico como significante central de toda a economia subjetiva32.

Lacan, assim, motivou-se a promulgar a metáfora paternal como o protótipo mesmo da metáfora.

Portando, a complexidade dessa articulação entre a teoria do Direito e a teoria Psicanalítica nos levou portanto, a estas pesquisas numa visão transdisciplinar. Segundo Basarab Nicolescu33, físico quântico, a visão transdisciplinar olha o que está entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e para além de toda disciplina. Tudo isto se faz seguindo a lógica da física quântica a qual introduz uma contradição irredutível na estrutura, nas funções e nas operações mesmas da lógica, isto é, a lógica do terceiro incluído, chave de abóbada da ilosoia lupasciana, que não abole a lógica do terceiro excluído da lógica clássica:

[...] ela restringe somente seu domínio de validade. A lógica do terceiro excluído é certamente válida para as situações relativamente simples, por exemplo, a circulação de veículos sobre uma estrada: ninguém sonha em introduzir, sobre uma estrada, um terceiro senso em relação ao senso permitido e ao senso proibido. Ao contrário, a lógica do terceiro excluído é nociva, nos casos complexos, por exemplo, no domínio social ou político. Ela age, neste caso, como uma verdadeira lógica de exclusão: o bem ou o mal, à direita ou à esquerda, as mulheres ou os homens, os ricos ou os pobres, os brancos ou os pretos. Seria revelador de empreender uma análise da xenofobia, do racismo, do antissemitismo ou do nacionalismo à luz da lógica do terceiro incluído34.

Pelo viés da transdisciplinaridade, a ilosoia marxista, por exemplo, pode ser estudada por meio do olhar cruzado da Filosoia com a Física, o Direito, a Economia, a Psicanálise ou a Literatura. O objeto de estudo sairá assim enriquecido do cruzamento de várias disciplinas, e ainda mais enriquecido, em relação à interdisciplinaridade, porque a inalidade da pesquisa transdisciplinar ultrapassa o quadro da pesquisa disciplinar.

Nós nos contentamos aqui com a exposição ingênua dos três axiomas sobre os quais se fundamenta a lógica quântica, quais sejam35:

· O axioma de identidade: A é A.

· O axioma de não contradição: A não é "não A".

· O axioma do terceiro excluído: Não existe um terceiro termo T (T de "terceiro incluído") que é ao mesmo tempo A e "não A".

Neles podemos observar que os pares contraditórios que a lógica quântica coloca em evidência são efetivamente "mutuamente contraditórios quando eles são analisados por meio da grade de leitura da lógica clássica". E também que "na hipótese de existência de um só nível de Realidade, o segundo e o terceiro axiomas são evidentemente equivalentes".

Se partirmos da lógica clássica, "chegamos imediatamente à conclusão que os pares contraditórios

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colocados em evidência pela física quântica são mutuamente exclusivos", pois não podemos afirmar ao mesmo tempo a "validade de uma coisa e seu contrário: A e não A".

A perplexidade gerada por essa situação é bem compreensível segundo Nicolescu36, pois "não pode-ríamos nós afirmar, se formos sadios de espírito, que a...

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