Intervenção e step-in rights: um conflito de poder entre administração pública e agente financiador nas PPPs Brasileiras

AutorKleber Luiz Zanchim
Páginas194-207

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1. O problema

O presente trabalho tem por objetivo estudar a relação de poder entre a Administração Pública e os agentes financia-dores dos projetos de parcerias público-privadas/PPPs no Brasil. Trata-se de uma nova dimensão de conflitos nas concessões: ao lado da tensão comum entre os interesses dos entes públicos e os dos concessionários, entram em cena interesses de sujeitos que, apesar de terceiros diante do contrato de concessão, são fundamentais para o sucesso das parcerias.

Esse novo contexto surgiu com a introdução no art. 5o, § 2°, I, da Lei 11.079, de 30.12.2004, de mecanismo desenvolvido no modelo inglês de PPPs conhecido como step-in rights: possibilidade de os agentes financiadores assumirem o controle da concessão no caso de o concessionário deixar de adimplir seus contratos de financiamento. No Brasil tal mecanismo é contraponto de um importante poder da Administração Pública, previsto no art. 32 da Lei 8.987, de 13.2.1998: possibilidade de intervenção na concessão quando a prestação do serviço estiver inadequada ou quando o concessionário não estiver cumprindo fielmente as normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes.

Há no quadro normativo, portanto, interessante problema. Em determinadas situações, tanto o ente público como o agente financiador podem pretender exercer seus poderes sobre a concessão. Nessa hipótese, formar-se-ia um foco de conflito envolvendo o controle da Sociedade de Propósito Específico/SPE responsável pela PPP.1

Apesar disso, em artigo publicado no periódico Gazeta Mercantil de 6.12.2005, representantes do Governo Brasileiro parecem não ter vislumbrado referido con-

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flito: "Os step-in rights não modificam o direito de a Administração intervir na concessão para garantir a segurança e a continuidade da prestação dos serviços nos casos previstos na Lei de Concessões. Cria, ao lado do direito de intervenção da Administração Pública, a possibilidade de o financiador, interessado em manter a concessionária em condições de pagar os empréstimos, contribuir para o interesse público re estruturando financeiramente a concessionária".2

É de se imaginar, todavia, que a Administração Pública e os financiadores tenham percepções diferentes sobre o modo de conduzir a sociedade responsável pela PPP, conforme seus interesses específicos: aquela tenderá a regularizar os serviços, enquanto estes tenderão a gerar recursos para pagar os financiamentos que concederam. As providências para alcançar essas duas ordens de objetivos podem não ser compatíveis, de modo que um conflito de governança é risco real, com repercussões para todos os envolvidos na PPP e também para a sociedade.

Dessa forma, a interação entre intervenção e step-in rights precisa ser bem compreendida, sendo úteis tentativas conciliatórias a fim de evitar que os investidores percam incentivos de patrocinar as PPPs. Para tanto, é importante fixar a natureza jurídica dessas figuras, trabalho que faremos tendo em vista apenas a legislação brasileira. Adiantamos que, para nós, ambas são formas de poder, mas cada qual com aspetos bastante próprios. Depois de analisarmos as figuras em separado, compararemos uma e outra e apresentaremos sugestão para compor o conflito entre elas. Comecemos, então, pela intervenção.

2. Natureza jurídica da intervenção nas concessões

A doutrina brasileira tem dedicado pouca atenção ao fenômeno da intervenção nas concessões. Limita-se normalmente a reproduzir o texto legal, sem refletir sobre sua extensão. Mesmo Hely Lopes Meirel-les, sempre tão cuidadoso com a precisão conceitual, não foi longe no estudo do tema. Disse apenas que "é providência extrema que se justifica quando o contratado se revela incapaz de dar fiel cumprimento ao avençado, ou há iminência ou efetiva paralisação dos trabalhos, com prejuízos potenciais ou reais para o serviço público. Por isso mesmo, e por ser medida auto-executável pela Administração, exige justa causa, caracterizada pelo grave descum-primento do contrato ou pela ocorrência de fatos externos à conduta do contratado que ponham em risco a execução".3

Outro autor importante que ofereceu poucas linhas ao assunto foi José Cretella Jr., restringindo-se a dizer que: "É legítima a intervenção do Estado, sempre que os serviços públicos não recebam da parte do concessionário aquele andamento que estaria na mira do Estado ao transferir-lhe aquela responsabilidade pública".4

Frente ao "silêncio" da doutrina brasileira,5 resta-nos o texto legal, nota-damente o art. 32 da Lei 8.987/1995: "O poder concedente poderá intervir na con-

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cessão, com o fim de assegurar a adequação na prestação do serviço, bem como o fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes".

O primeiro ponto que chama a atenção é o vocábulo "poderá". Em primeira leitura, ele sugere uma faculdade de agir da Administração Pública. Essa facultas agendi passaria por um juízo sobre a conveniência e a oportunidade da intervenção tendo em conta o que o ente coletivo entende por "serviço adequado" e por "fiel cumprimento" do regramento jurídico aplicável à concessão. Se tal juízo concluir pela necessidade da providência inter-ventiva, expede-se o decreto respectivo, com definição do interventor, do prazo da intervenção e dos objetivos e limites da medida (parágrafo único do artigo acima transcrito).

Todavia, a despeito do que possa parecer, a intervenção não é ato livre da Administração Pública. Ao contrário, sujeita-se a duas condicionantes finalísticas: assegurar a prestação adequada de serviço e o cumprimento do regramento jurídico da concessão. Arriscamos dizer que referidas condicionantes cabem na noção de "interesse público", mormente diante de dois princípios do art. 37 da CF: o da eficiência e o da legalidade. Como o interesse público é indisponível, a intervenção não pode ser ato livre do poder conceden-te. Observe-se.

E intuitivo que o princípio da eficiência pressupõe que os serviços em concessão sejam prestados adequadamente (primeira finalidade da intervenção). Afinal, conforme o art. 6oda Lei 8.987/1995: "Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas" (grifamos). Quanto ao princípio da legalidade, é razoável admitir que obriga os entes públicos a fazer cumprir as normas das concessões que outorgam (segunda finalidade da intervenção). Ora, se as finalidades do procedimento inter-ventivo representam a concretização de dois princípios constitucionais que regem a Administração Pública, somos levados a entender que elas veiculam interesses públicos.

Por isso, a intervenção deve ser enquadrada como ato da função pública de fiscalização e tutela do objeto da concessão, valendo dizer que a Administração Pública tem o dever ou, melhor ainda, o poder-dever de nela intervir nas hipóteses previstas em lei. O caso não é de discricio-nariedade, mas de vinculação.

Essa vinculação tem, porém, temperamentos. Não é estrita, dada a dificuldade de se definir a priori o que seja "adequação" na prestação dos serviços e "fiel cumprimento" do contrato e da regulamentação aplicável.6 O problema é comum mesmo em legislações estrangeiras. No Chile, por exemplo, apesar de a lei atribuir expressamente ao contrato e ao edital de licitação o papel de preencher o sentido daqueles conceitos, não indica parâmetros seguros para tanto.7

Sem claros anteparos contratuais ou legais para decidir a respeito da intervenção, a Administração Pública terá de utilizar certo juízo discricionário sobre a regularidade do comportamento do concessionário; ou, como quer Celso Antônio Bandeira de Mello, deverá realizar "exercício de apreciação discricionária em

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relação a algum ou alguns dos aspectos que o condicionam ou que o compõem".8 Isso conduz a que a natureza jurídica da intervenção seja de poder-dever da Administração Pública condicionado por uma verificação não-objetiva da conduta do concessionário, dada a indeterminação dos termos da hipótese legal que embasa a providência interventiva.

Daí resulta conseqüência importante para os entes privados que participam da concessão: esse poder-dever é-lhes um fa-tor de risco, e, como tal, merece controle. Voltaremos ao tema quando compararmos intervenção e step-in rights. Antes, porém, cumpre analisar se a legitimidade da intervenção depende da presença simultânea de suas duas condicionantes finalísticas, ou se apenas uma delas já é suficiente. Qualquer conclusão depende da exegese do regime estabelecido pela Lei 8.987/1995.

Da leitura do art. 33 dessa lei percebe-se que a intervenção desencadeia um procedimento administrativo.9 Pode-se-lhe aplicar, portanto, a Lei 9.784, de 29.1.1999, que rege os processos administrativos e traz, no art. 2°, parágrafo único, XIII, um critério para interpretação da norma administrativa - qual seja, interpretação "da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige".10

Como visto acima, pode-se admitir que os dois fins definidos no art. 32 da Lei 8.987/1995 (adequação na prestação do serviço e fiel cumprimento das normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes) para legitimar a intervenção sejam fins públicos. Dessa forma, se pela Lei 9.784/1999 devemos interpretar citado artigo de modo a garantir o melhor atendimento a esses fins, é de se concluir que a expressão "bem como", nele constante, é uma "adição aglutinativa/alternativa", e não uma "adição simples" - ou seja, pode ser substituída por "e/ou", mas não apenas por "e". Logo, podemos redigir a regra em comento da seguinte forma: "O poder concedente deverá intervir na concessão, com o fim de assegurar a adequação na...

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