Configuracao e justificacao de um direito fundamental ao meio ambiente a luz dos conceitos de meio justo e de natureza-projeto em Francois Ost/Setting and justification of a fundamental right to the environment in the light of the concepts of fair and nature-project in Francois Ost.

Autorda Silveira, Clovis Eduardo Malinverni

Introducao

Os juristas que debatem a conformacao de um direito subjetivo ao ambiente a partir do texto constitucional brasileiro (ou da Constituicao portuguesa, que e muito proxima neste particular) assumem, explicita ou implicitamente, um determinado posicionamento teorico a respeito da relacao entre homem e natureza, o qual pressupoe uma construcao argumentativa no plano etico e epistemologico. Como procedimento-padrao, parte-se de uma tomada de posicao a respeito da ja consagrada--e, em certo sentido, desgastada--oposicao entre uma etica dita biocentrica e uma etica dita antropocentrica, para explorar as nocoes de meio ambiente e de bem ambiental constitucional, base sobre a qual sera problematizado o alcance do direito ao meio ambiente (se objetivo ou subjetivo, se fundamental ou nao fundamental, se de titularidade do individuo, da coletividade ou da natureza).

Uma das mais cuidadosas construcoes teoricas que permite desenvolver a ponte entre a etica e o direito, neste particular, foi desenvolvida na obra A natureza a margem da lei: a ecologia a prova do Direito, do jurista e filosofo belga Francois Ost (1995). Embora se trate de obra frequentemente citada em textos de Filosofia do Direito e de Direito Ambiental, entende-se que sua utilizacao e, no mais das vezes, demasiado superficial ou demasiado pontual, de forma que seu pontencial reflexivo e interpretativo nao pode ser considerado esgotado. Mais do que apropriada, a retomada dessa obra com um maior cuidado conceitual seria mesmo necessaria, porquanto ali se discute a crise ecologica com singular erudicao e profundidade, desde os pontos de vista etico e juridico, perquirindo pelo papel do Direito na construcao de um futuro razoavel.

Na primeira secao, discute-se o conceito de natureza-projeto com o objetivo de situar o leitor na visao especifica de Ost sobre o papel do Direito enquanto mediador da relacao entre Homem e Natureza. O autor demonstra que a crise ecologica nao se resume a um simples aumento de extensao e gravidade da degradacao ambiental, e sim de uma crise de representacao a proposito dos vinculos e limites entre o que e humano e o que e natural. Neste contexto, no embate entre o assim chamado antropocentrismo (natureza enquanto objeto) e o assim chamado biocentrismo (natureza enquanto sujeito), nao seria necessario decidir/optar por um destes pontos de vista, nem mesmo por um ponto de vista intermediario: o desafio e supera-los dialeticamente, segundo um ponto de vista que retenha seus momentos de verdade corrija suas limitacoes.

Em um segundo momento, a discussao remete ao questionamento acerca da centralidade do natural ou do humano na definicao do bem ambiental como direito protegido constitucionalmente. Para tanto, fazendo-se uso da literatura nacional e internacional, objetiva-se demonstrar que tais posicionamentos sao insuficientes, e que pernanecem no plano de um dualismo redutor: proteger os bens naturais por sua importancia intrinseca ou, pelo contrario, protege-los para a utilizacao da materia natural pelo Homem. Com Ost, e possivel verificar que a nocao de meio possibilita compreender a necessaria interacao e necessaria interdependencia existentes entre homem e (aquilo que nao e humano na) natureza. A partir desta formulacao pode-se perguntar com mais seguranca pelo papel desempenhado pelo Direito na eventual superacao desra crise ambiental--crise de representacao.

Por fim, na secao terceira, busca-se analisar o conceito de patrimonio comum ecologico em Ost e, a partir deste conceito, justificar um direito subjetivo ao ambiente no plano constitucional brasileiro (argumentos aplicaveis, simetricamente, ao contexto portugues). Apresenta-se, nesta secao, a proposta central deste texto, que e debater o problema da configuracao de um direito subjetivo fundamental ao ambiente com enfoque nas nocoes natureza-projeto e meio justo. Nao se tem, por obvio, a pretensao de exaurir o tema, e sim de chamar a atencao para a fecundidade da abordagem proposta, bem como de faze-la dialogar com importantes autores na materia, de modo a sinalizar resultados preliminares que venham a legitimar o procedimento investigativo e argumentativo proposto.

  1. Os conceitos de meio e de natureza-projeto em A natureza a margem da lei

    A crise ecologica, para Francois Ost, nao designa apenas a destruicao sistematica dos ecossistemas e o exaurimento dos recursos naturais: trata-se, antes, da crise da relacao entre os seres humanos e a natureza, que e a contraface de uma crise de representacao (1995, p. 08) desta mesma relacao. A tese fundamental e que, na representacao que os humanos fazem da natureza e de si proprios, perderam-se os sentidos de vinculo e limite--ou seja, perdeu-se o discernimento a respeito da dependencia do homem em relacao a natureza e, simultaneamente, o discernimento a respeito daquilo que distingue o ser humano da natureza e das demais formas de vida. As correntes teoricas e construcoes argumentativas que Ost classifica como natureza-objeto e natureza-sujeito perdem-se justamente na articulacao dos vinculos e dos limites entre humano e natural. Na abordagem dialetica empreendida em A natureza a margem da lei, a ideia de natureza-projeto aparece entao como sintese dialetica entre as ideias de natureza-objeto e de natureza-sujeito.

    A nocao natureza-objeto expressa a transformacao da natureza em artificio, mero reservatorio de recursos e deposito de residuos. Para o pensamento do humanismo e do antropocentrismo, que tem suas raizes no renascimento e marcam profundamente o pensamento pos-medieval ate a contemporaneidade, "o homem era, simultaneamente, a fonte do pensamento e do valor, e o seu fim ultimo" (1995, p. 177-178). A expressao ambiente carrega, historicamente, este sentido "coisificado" de cenario no qual reinam os homens (1995, p. 10), "senhores e possuidores da natureza", conforme a celebre conclusao de Descartes (1983, p. 63). Os fundamentos do projeto moderno de afirmacao dos superpoderes do homem diante da natureza tambem estao presentes em Bacon, quando este sintetiza o projeto moderno da tecnociencia em A nova Atlantida (1984).

    Como reacao aos ideais de desenvolvimento economico e progresso tecnocientifico ilimitados, verificou-se, nas ultimas decadas do seculo XX, a reafirmacao do ponto de vista da natureza, que Ost (1995, p. 175-178) simplifica na nocao natureza-sujeito. Embora varias correntes de pensamento possam ser compreendidas por esta rubrica, e a chamada "ecologia profunda" (deep ecology, tambem designada ecocentrismo ou biocentrismo) quem melhor a representa. Fundada em uma filosofia (na sua tripla dimensao ontologica, epistemologica e axiologica) e no dialogo entre determinadas ciencias (biologia, psicologia, dentre outras), a deep ecology destrona o homem, substituindo sua centralidade por aquela do movimento evolutivo da vida. Com toda a carga nostalgica de retorno a um "passado mitico", a uma "alianca com a terra", adota-se a visao da natureza, "cuja perfeicao de organizacao e fonte de toda a racionalidade e de todo o valor" (1995, p. 178).

    O problema para o ecologismo e que, ao tornar a natureza em sujeito--seja no plano etico ou, de modo mais radical, no proprio plano juridico--recupera-se a ideia de vinculo (de que os humanos fazem parte da natureza e dela dependem), mas perde-se a ideia de limite (de que o humano nao pode ser reduzido ao natural). Se o homem e parte da natureza, assim como qualquer outro ser vivo, a modificacao (do restante) da natureza pelo homem nao seria natural? Em outras palavras, a degradacao do planeta e exaurimento dos recursos naturais nao consistiriam em manifestacoes da propria natureza-mae, suas leis e seus desejos? Ao elevar a natureza a categoria de Grande Sujeito, perde-se de vista aquilo que distingue o ser humano dos demais seres vivos.

    A unica maneira de projetar um futuro razoavel, ou seja, de "fazer justica" a respeito de homem e natureza, e afirmar suas semelhancas e suas diferencas de forma dialetica. Esta proposta confirma que a riqueza do saber ecologico interdisciplinar nao reside na busca por uma ciencia do homem ou da natureza, mas na buca por uma ciencia de suas relacoes (1995, p. 16). Assim, se a palavra ambiente designa a natureza vista de uma posicao antropocentrica (ponto de vista da natureza-objeto) e a palavra natureza denota a natureza como um todo, do qual o homem e apenas parte (ponto de vista da natureza-sujeito), Ost designa meio o quadro das relacoes entre homem-natureza, que e o ponto de vista de...

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