Sobre a Constitucionalização do Trato Conferido aos Delitos Contra o Patrimônio, Cometidos sem Violência ou Grave Ameaça

AutorDomingos Barroso da Costa - Juarez Morais de Azevedo
Páginas28-37

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1. Introdução

"O direito1 só pode ser compreendido no âmbito da atitude referida ao valor. O direito é uma manifestação cultural, isto é, um fato relacionado a um valor. O conceito de direito não pode ser determinado de modo diferente do que o dado, cujo sentido é o de tornar real a ideia do direito. O direito pode ser injusto (summum ius - summa iniuria), mas só é direito por ter o sentido de ser justo." (Gustav Radbruch)

Como se extrai do ensino de Radbruch, não se pode reconhecer como direito a construção ordena-dora que se faça cega a valores. Com isso, afirma-se que o direito só se legitima na medida em que pretenda a justiça, ideal que pressupõe igualdade e é pressuposto da liberdade.

Trata-se de construção claramente elaborada na superação ao positivismo jurídico e sua dogmática autorreferenciada, que, em sua pretensão de pureza e suficiência normativa, tentou apartar o direito da justiça, considerando-os instâncias incomunicáveis. Em busca de certeza e segurança, o positivismo marcou-se por tentar impor ao direito o método próprio às ciências naturais, então cultuado como único meio legítimo ao alcance da verdade.

Sob tal pretexto, fomentou codificações e difundiu a ilusão quanto à possibilidade de, pela boa técnica, se elaborarem leis eternas, que se impusessem aos fatos, ordenando a realidade. Sem ideais que orientassem a produção jurídica, reduziu-se o direito à lei positivada, confundido conceitos de legalidade e legitimidade.

"Voltando ao assunto de nosso curso, o positivismo jurídico é uma concepção do direito que nasce quando 'direito positivo' e 'direito natural' não mais são considerados direito no mesmo sentido, mas o direito positivo passa a ser considerado em sentido próprio. Por obra do positivismo jurídico ocorre a redução de todo o direito a direito positivo, e o direito natural é excluído da categoria do direito: o direito positivo é direito, o direito natural não é direito. A partir deste momento o acréscimo do adjetivo 'positivo' ao termo 'direito' torna-se um pleonasmo mesmo porque, se quisermos usar uma fórmula sintética, o positivismo jurídico é aquela doutrina segundo a qual não existe outro direito senão o positivo" (Bobbio, 2006, p. 26).

Ou seja, direito era o que positivava o Estado, em construção teórica que fez da lei veículo para qualquer ideologia, como historicamente atesta o nazismo. Amparado pela lei, o nacional-socialismo alemão promoveu uma das maiores e mais bárbaras devastações étnicas inscritas na história, fato que, para além da perplexidade trazida ao mundo, marcou a falência do positivismo jurídico.

Assistiu-se, então, ao trágico ocaso da crença em uma ciência cega a valores, que seria capaz de conduzir a humanidade ao progresso a partir do bom uso de técnicas. Enfim, pôde-se constatar que a pretensão a um racionalismo puro conduziu a uma total ruptura significante, a uma perda do sentido que antes era garantido pelos ideais que orientavam as ações humanas. A barbárie nacional-socialista produzida em nome da lei e da ciência, logo, da razão, expôs aos olhos algo que não se podia compreender ou mesmo admitir, trazendo à tona um mal radical que, protagonizado por homens, ocasionou a ruptura quanto ao sentido da própria existência humana.

Tal ruptura significante estendeu-se a tudo que dizia respeito à cultura, mesmo porque é esse o espaço de existência humana. Assim também se instaurou a crise de sentido do direito e, revelado o fracasso da tentativa arrogante de uma autojustificação dogmática, própria ao positivismo, impôs-se a conclusão de que sua significação dependia de ideais maiores para cuja busca se fizesse instrumento. Em síntese, "o direito pode ser injusto (summum ius - summa iniuria), mas só é direito por ter o sentido de ser justo" (Radbruch, 2004, p. 11).

Nesse contexto crítico, em 1948, fez-se ao mundo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que materializava a intenção de, a partir dali, se difundir um novo paradigma de direito, orientado por ideais que o tornariam instrumento de justiça e de proteção à dignidade humana. Nasce, então, o movimento pós-positi-vista, que, sem desprezar as evoluções positivistas, se pôs a serviço de um direito erigido a partir de princípios cuja força vinculante, em termos jurídicos, deveria ser garantida por sua expressa previsão nas constituições, as quais, doravante, deixavam de ser meras cartas programáticas para se transformarem na referência normativa máxima dos países.

Todas essas considerações mostram-se extremamente valiosas e necessárias, uma vez que o tema proposto demanda cuidadosa análise, trabalhada à luz dos princípios constitucionais, exorcizada dos demônios cegos do positivismo jurídico e de seus fetiches legalistas. Nesse sentido, introduzindo o debate, cabe desde já destacar a

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posição privilegiada conferida pela Constituição a dois princípios que podem ser apontados como a base da justiça, como já se antecipou. Refere-se aos princípios da igualdade e da liberdade, que, no entendimento de Alexy, constituem o núcleo dos direitos fundamentais:

"Com o direito à liberdade e o à igualdade está fundamentado o núcleo dos direitos fundamentais. Todos os outros direitos fundamentais são ou casos especiais de ambos esses direitos ou meios necessários para a produção e asseguramento de uma medida suficiente de liberdade e igualdade fá-tica. O último vale, por exemplo, para o direito a um mínimo existencial" (2008, p. 34).

E, como aqui se debaterá uma incoerência legal cuja adequação constitucional depende da aplicação isonômica, logo, constitucionalizada do direito penal, não é preciso muito esforço para se concluir que a base do raciocínio fundar-se-á justamente nos princípios da liberdade e da igualdade. Aliás, é de se aproveitar o contexto para reafirmar que todo o direito penal constrói-se em torno da ideia de liberdade, na medida em que a garante, bem como fundamenta as restrição que eventualmente lhe são impostas, o que deve ser feito com igualdade para que haja justiça e o direito penal não se torne um mal maior que aquele a que visa punir e prevenir.

"Como a lei penal limita o indivíduo em sua liberdade de agir, não se pode proibir mais do que seja necessário para que se alcance uma coexistência livre e pacífica. Também o fato de que a dignidade humana e a igualdade devam ser protegidas é um resultado do pensamento iluminista, segundo o qual dignidade humana e igualdade compõem condições essenciais da liberdade individual." (Ro-xin, 2008, p. 33)

Essa reflexão ganha relevo enquanto capaz de antecipar e impedir distorções na criação e aplica-ção das leis que possam converter o direito penal em simples instrumento de garantia de privilégios e contenção de um refugo social que transforma em inimigo. E, quando se analisa comparativamente o trato conferido a determinados crimes contra as ordens tributária e econômica em relação aos previstos para os delitos contra o patrimônio, de pequeno ou médio potencial ofensivo, é inevitável concluir que, no Brasil, a lei penal é uma para os economicamente favorecidos e outra para os estratos mais pobres da população.

A análise dessa afirmativa será desenvolvida nos tópicos seguintes, à luz de princípios que regem o direito penal, tais como proporcionalidade, lesividade e intervenção mínima. Assim, como o posicionamento que aqui se sustentará se funda na convicção de que a legitimidade do direito penal depende de seu emprego subsidiário, enquanto ultima ratio, nada mais apropriado que dar sequência ao trabalho partindo de algumas considerações sobre o princípio da intervenção mínima e sua relação com a situação concreta que se traz à discussão.

2. A mínima intervenção enquanto condição de legitimidade do direito penal

Embora não se trate de entendimento pacífico, defende-se aqui, com Roxin, que o direito penal tem como função a proteção subsidiária de bens jurídicos, considerados, estes, como os entes que expressem valores imprescindíveis à coexistência pacífica das liberdades individuais, com igualdade (2008, p. 35). Sobre a subsidiariedade a que se refere, segue-se com o mestre alemão:

"A finalidade do direito penal, de garantir a convivência pacífica na sociedade, está condicionada a um pressuposto limitador: a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas. O direito penal é desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extrajurídicas" (Roxin, 2008, p. 33)

Consoante se verifica, as ideias acima expostas remontam a teorias contratualistas, como a de Rousse-au, em seu Do contrato social. Assim, tomando-se a sociedade como resultante de um pacto, no qual cada um dos indivíduos contratantes abre mão de parcela de sua liberdade em nome da segurança e, mesmo, da liberdade de todos, é de se concluir que só em casos extremos aqueles que aderiram à avença, consentindo em limitações à própria liberdade, podem ser dela totalmente privados2. Desse raciocínio já é possível se deduzir que, tendo por um de seus principais efeitos a privação da liberdade do sujeito, o direito penal só se faz legítimo se previsto e aplicado a casos de extrema gravidade, diante da certeza de que na situação que se apresente - em termos abstra-tos ou concretos - nenhuma outra medida se faria eficaz para punir e prevenir a...

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