O condômino nocivo e o direito à propriedade

AutorDiego Sígoli Domingues
CargoMestrando em direito na universidade nove de julho
Páginas36-48

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A discussão acerca da remoção de morador antissocial de unidade condominial encontra guarida nas normas jurídicas, no que se refere ao interesse da coletividade sobrepor-se à vontade do indivíduo

A cláusula geral da função social impõe aos proprietários/possuidores, incluindo por excelência os residentes do condomínio edilício, o ônus de usar a coisa com fins sociais adequados. Veda-se a utilização da propriedade de forma nociva, abusiva e ilícita, bem como a prática de atos que não trazem qualquer comodidade ou utilidade e sejam animados pela intenção de prejudicar terceiro, preservando-se o benefício do bem comum, da coletividade, dos condôminos em geral, em detrimento do puro e simples individualismo.

As prerrogativas disciplinadas ao direito de propriedade garantem ao condômino, na parte que lhe compete, o direito de usar, gozar, fruir e dispor da coisa, devendo, porém, observar as normas inerentes à segurança, sossego, salubridade e segurança de terceiros e dos demais condôminos.

Como o direito de propriedade não é absoluto, irrestrito e ilimitado, inúmeras limitações podem ser impostas, de ordem positiva (obrigação de fazer) ou negativa (dever de abstenção), principalmente a bem do interesse coletivo. O descumprimento às normas previstas na legislação, convenção e regimento interno do condomínio, respeitado o direito de defesa, implica punições ao condômino descumpridor, desde reprimendas simples, que não afetam o direito de uso, como advertências e multas, até sanções mais gravosas, como a proibição do uso do bem, temporária ou definitiva.

Fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, vem se admitindo a polêmica pena de exclusão do condômino nocivo e antissocial, necessariamente precedida de ação judicial ajuizada pelo condomínio com autorização ampla da assembleia. Referida sanção é extremamente gravosa, eis que impõe ao proprietário/possuidor restrição ao uso efetivo da coisa, um dos poderes inerentes ao direito de propriedade. A aplicação desta medida extrema reclama elevada gravidade na conduta do condômino descumpridor contumaz, de tal monta que afete a salubridade, segurança e vida dos demais condôminos, bem como o esgotamento e ineficácia das sanções anteriormente impostas, alçando-se o Poder Judiciário como a última porta para restabelecer a paz dentro do condomínio, limitando o direito de uso de propriedade a bem do interesse coletivo.

1. Do direito fundamental à propriedade: origem e tutela jurídica

A propriedade consubstancia-se em um direito subjetivo do indivíduo em relação ao poder que detém sobre determinada coisa, bem móvel ou imóvel, material ou imaterial, fungível ou infungível. Ao lado da família e do contrato, é uma das tríplices vértices do direito privado, constituindo-se,

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além disso, como direito fundamental, reconhecido tanto em nosso texto constitucional como nos tratados internacionais, pois é inerente à condição humana, evidenciando o domínio sobre o resultado obtido pelo trabalho do homem.

FRUTO DE CONSTRUÇÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL, VEM SE ADMITINDO A POLÊMICA PENA DE EXCLUSÃO DO CONDÔMINO NOCIVO E ANTISSOCIAL, NECESSARIAMENTE PRECEDIDA DE AÇÃO JUDICIAL

Assim, pode-se afirmar que "o fundamento primeiro do direito de propriedade é o emprego da coisa na satisfação das necessidades existenciais" (mi-LagRes, 2011, p. 45).Trata-se de direito imprescritível e insuscetível de aniquilação, possuindo, ademais, caráter de perpetuidade, perdurando sua qualidade até a transferência a outrem, por ato voluntário, como a transmissão inter vivos ou causa mortis ou, por outo lado, ato forçado, nos exatos limites previstos no texto constitucional, a exemplo da desapropriação por necessidade e utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização.

Consoante os ensinamentos clássicos de Orlando Gomes:

O direito real de propriedade é o mais amplo dos direitos reais, sendo que sua conceituação pode ser feita a luz de três critérios: o sintético, o analítico e o descritivo. Sinteticamente, é de se defini-lo como a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. Analiticamente, o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Descritivamente, o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida a vontade de uma pessoa, com as limitações da lei (2012, p. 103).

No que concerne à sua origem histórica, "a propriedade é um fato preexistente ao ordenamento, um fato do mundo natural, o qual, sob a vontade de um sujeito, recebe proteção jurídica" (venosa, 2010, p. 1.095). Significa dizer que, já nos primórdios da civilização, os homens se apropriavam de bens e coisas no intuito de garantir sua sobrevivência. Para Cássia Celina Paulo Moreira da Costa:

O pilar da propriedade possui ligação com o estado de natureza. A necessidade de sobrevivência fez com que os indivíduos se agrupassem em sistema de cooperação mútua, levando a crer que a primeira propriedade erigida tenha sido a comunal, e não a privada, considerando-se o vínculo da terra com os grupos familiares e religiosos (2003, p. 97).

O direito à propriedade, acompanhando a evolução da sociedade, assistiu a inúmeras transformações ao longo dos anos, observando-se uma progressiva superação do caráter absolutista do Estado em prol da justiça social e a garantia à propriedade privada do indivíduo.

A luta pelo direito à propriedade contra atos de terceiros há tempos possui elevada importância e proteção jurídica. Em âmbito internacional, inicialmente merece menção a Magna Carta promulgada em 1215 e que não só buscou limitar os poderes monárquicos como garantiu também alguns direitos aos nobres, inclusive inerentes à defesa da propriedade privada, como, por exemplo, garantindo à viúva a prerrogativa de suceder e permanecer na posse dos bens que possuía antes da morte do seu marido (art. 7º). O Bill of Rights de 1689 revelou-se outro esplêndido documento jurídico de instituição de direitos individuais aos súditos, incluindo a defesa da propriedade privada contra atos abusivos. A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 introduziu ao sistema jurídico o caráter de inviolabilidade da propriedade, assegurando que ninguém dela pode ser privado, salvo necessidade pública legalmente comprovada (art. 17).

Em consonância com as cartas jurídicas inter-nacionais, a constituição dos Estados Unidos, especialmente após a promulgação da quinta emenda, instituiu de forma objetiva e específica garantias aos cidadãos americanos contra os eventuais abusos da autoridade estatal, entre os quais se insere a condição de que a propriedade privada somente poderia ser expropriada para o interesse público com o pagamento de justa indenização.

O código civil francês, tradicionalmente conhecido como Código Napoleônico, tutelou o direito de propriedade, elencando meios de aquisição de propriedade, como, por exemplo, a usucapião. No mesmo sentido, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 10 de dezembro 1948, tutelou a todos os indivíduos, não apenas aos nobres, o direito de não serem privados arbitrariamente de seus bens, vedando o confisco abusivo (art. 17).

Inúmeras outras cartas constitucionais de países que efetivamente respeitam o estado democrá-

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tico de direito conferiram aos cidadãos a proteção jurídica ao direito à propriedade, como, por exemplo, as constituições francesas, alemã e mexicana.

No Brasil, a Constituição Imperial outorgada de 1824, em seu artigo 179, inciso XXII, garantia o direito à propriedade, ressalvada, todavia, a desapropriação em caso de interesse público mediante o pagamento de indenização.

A Lei 3.071/16, tradicionalmente conhecida como Código Civil de 1916, trouxe um caráter eminentemente patrimonialista às relações civis, elencando a propriedade como um dos pilares do direito privado, reservando capítulo próprio para a tutela deste direito (artigo 524), garantindo o seu absolutismo e seu exercício de forma ampla.

Em seguida, a Constituição brasileira de 1934, além de reafirmar a tutela do direito de proprie-dade, instituiu a necessidade do seu exercício pautar-se nos limites sociais (artigo 173), sendo o embrião do que viria a se consolidar posteriormente como função social da propriedade, vindo a ser prevista na Constituição de 1967, que albergou como um dos princípios basilares da ordem econô-mica justamente a função social (art. 157).

A PROPRIEDADE POSSUI RELEVADA PROTEÇÃO EM NOSSO ORDENAMENTO JURÍDICO, TRATANDO- SE DE DIREITO FUNDAMENTAL TUTELADO TANTO EM ÂMBITO NACIONAL COMO INTERNACIONAL

Por sua vez, em consonância com os principais textos e cartas constitucionais, a Constituição de 1988 estabeleceu o direito à propriedade como garantia fundamental (artigo 5º, inciso XXII), além do seu dever de atender a sua função social (art. 5º, inciso XXIII), contemplando-o como um dos princípios fundamentais da ordem econômica (art. 170), bem como elencando a mesma regra para as propriedades rurais, desde que o bem tenha aproveitamento racional e adequado e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186).

O Código Civil de 2002, em que pese ter adotado um caráter menos patrimonialista em relação ao Código Civil de 1916, manteve estrita sintonia com o texto constitucional, principalmente no que concerne à necessidade do cumprimento da função social da propriedade (art. 2.035, parágrafo único), abrangendo novos princípios como a autonomia privada, e alargando sua proteção, como por exemplo regulando sua extensão (art. 1.229), e elencando novos meios de aquisição da propriedade, tal...

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