A Condição Jurídica do Trabalhador Migrante no Âmbito Normativo Internacional

AutorTalita Dartibale Amado
Ocupação do AutorAdvogada. Mestranda em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo ? USP. Graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista ? UNESP (2012).
Páginas15-30

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Introdução

Dentre os legados do segundo pós-guerra, o de maior destaque e impacto na humanidade foi o processo de internacionalização dos direitos humanos, introduzindo a nova concepção trazida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948). Paralelamente a isso, a abertura dos mercados, mediante a facilitação da circulação de bens e serviços, bem como a transnacionalização do capital conduziram a um aumento na circulação de pessoas a nível global, tendo em vista uma relativa redução no custo dos transportes e as inovações tecnológicas, em especial na área das telecomunicações e da informação, cujo desenvolvimento foi mais acentuado no final do século XX. Trata-se, aqui, de efeitos da globalização, compreendida como um fenômeno histórico amplo, uma vez estar relacionado a fatores de naturezas diversas, sobretudo de ordem econômica.

A migração de pessoas na esfera internacional tornou-se parte de uma revolução transnacional que remodelou sociedades e políticas ao redor do mundo. É a chamada "globalização da migração", isto é, a tendência de que cada vez mais países sejam, ao mesmo tempo, crucialmente afetados por fluxos migratórios das mais diversas origens, de modo que a maioria dos países de imigração venha a receber migrantes provenientes de uma ampla variedade de contextos econômicos, sociais e culturais.1A despeito da tendência natural do ser humano à mobilidade, considerando a intensificação desse processo em tempos atuais, ainda nos deparamos com uma firme resistência, por parte dos governos dos Estados, com relação à formulação de políticas migratórias de proteção e integração social, abertas à realidade do crescente fluxo internacional de pessoas. Ao passo que se promoveu a integração dos mercados, mediante a formulação de políticas de desregulamentação do comércio, dos investimentos e a formação de blocos econômicos, resistiu-se largamente às políticas migratórias receptivas, com fulcro no princípio da soberania estatal. Muitos países mantêm uma série de barreiras legais para impedir os migrantes de cruzarem suas fronteiras, o que conduz à formulação de políticas cada vez mais restritivas, à medida que os governos tentam minimizar os impactos econômicos, sociais e culturais desses massivos fluxos de pessoas entre as nações.

Vale pontuar, o imigrante é o estrangeiro que atravessa fronteiras nacionais com um intuito de permanência, diferentemente do simples estrangeiro ("o outro"), condição esta que exige o mero deslocamento de um indivíduo do Estado de sua nacionalidade para outro, de nacionalidade diversa (uma nova jurisdição ao qual o estrangeiro se submete ao adentrar uma nova nação). Enquanto o imigrante tem em seu movimento migratório uma vocação de maior perenidade, que lhe é a característica distintiva, a definição do estrangeiro

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funda-se basicamente no critério da nacionalidade (NICOLI, 2011, p. 22-23).

O fenômeno migratório não só ocorre entre países distintos, como também dentro do próprio país de origem, sobretudo quando este possui grande dimensão territorial e abriga realidades heterogêneas. Contudo, há que se destacar, este ensejo é dedicado apenas ao estudo da normativa sobre a migração laboral no plano internacional.

Concernente aos fatores que impelem ou instigam a migração, há razões de toda sorte, como a fuga de guerras civis, desastres naturais, perseguições em razão de raça/etnia, credo/religião, opinião política, ou, simplesmente, a busca por condições que garantam uma vida digna (trabalho). São os denominados fatores "pull-push" dos fluxos migratórios. Outro elemento propulsor desses movimentos, ainda que de forma indireta, são os "fatores de rede", relacionados à liberdade de informação e à evolução dos meios de comunicação que, se não atuam como causa direta da decisão de migrar, no mínimo a encorajam.

Todavia, é cediço que o trabalho é a principal força motriz das migrações na esfera internacional, isto é, a busca por um emprego (fuga do desemprego), visando a melhores condições de vida, ainda consiste na grande motivação que impulsiona os movimentos migratórios pelo mundo.

Daí a relevância que deve ser atribuída ao tema da proteção jurídica do trabalhador migrante, que urge ser-lhe dispensada onde quer que ele se encontre, posto que, assim como todo e qualquer ser humano, independentemente das circunstâncias que o cercam e das demais particularidades que o individualizam, é um ser dotado de dignidade.

1. A dignidade humana do trabalhador migrante

O trabalhador imigrante, na lição de Arnaldo Süssekind (2000, p. 363), é "aquele que se transfere para um país do qual não é originário, com o ânimo de nele se integrar ou, pelo menos, nele trabalhar em caráter não eventual". Nota-se, aí, que o ânimo de permanência ínsito ao migrante é vinculado ao trabalho, o qual, inclusive, consiste em fator legitimador do direito de estadia e residência no interior dos limites de uma nova jurisdição. O trabalho é, efetivamente, o elo que une o migrante à sociedade receptora, a qual, na medida em que reconhece direitos àquele, possibilita a sua maior integração social, o que necessariamente perpassa pelo trabalho juridicamente regulado.

O migrante, pelo simples fato de ser "humano", portanto racional (atributo exclusivamente humano), é dotado de dignidade2, qualidade imanente à condição humana, fator kantiano universalizante fundamentador da existência de direitos intransmissíveis, irrenunciáveis, inalienáveis e imprescritíveis, que constituem a essência de todo ser humano. Sob essa ótica, não seria demasiado afirmar que o trabalho é o caminho dignificante, o qual viabiliza, ao menos em tese, a realização dos direitos de liberdade, igualdade e solidariedade.

No meio acadêmico, há quem entenda ou defina o migrante a trabalho como o "migrante documentado", significando o indivíduo que ingressa no país de destino mediante o visto apropriado, nele permanecendo sob os direitos assegurados conforme os critérios definidos de acordo com a modalidade do visto concedido (SILVA, 2014, p. 21). Deste modo, não se enquadram nesse padrão os chamados migrantes clandestinos, "indocumentados" ou não documentados, o que não se re-vela admissível ou compatível com a realidade mundial atualmente vivenciada, em que a maioria dos migrantes a trabalho são irregulares, em razão do que, tornam-se os mais vulneráveis e, portanto, necessitados de uma maior proteção.

À luz do princípio universal da dignidade da pessoa humana, valor ético pertencente à categoria do que poderíamos chamar de "sobredireito", o trabalhador migrante merece proteção jurídica plena, onde quer que esteja, sobretudo quando inserido num contexto socioeconômico completamente novo. Isto, pois, em geral, torna-se vítima de discriminações de matiz cultural (estereótipos, preconceitos, xenofobia, racismo) e da estrutura social de poder, que distingue os nacionais dos não nacionais, de modo que, quando inserido na esfera laboral, lhe é imposta uma situação que, não raro, culmina na sua submissão a um cenário de exploração que beira à escravidão. Nesse processo, o migrante vem a ser subjugado pelo chamado processo de reificação do ser humano, ao qual os trabalhadores migrantes irregulares ("migrantes indocumentados") são os mais vulneráveis a serem submetidos.

Nos casos mais drásticos, o imigrante irregular chega a perder sua personalidade formal de fato, sofrendo, em termos formais, uma grande restrição de

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direitos, e perdendo, em aspectos reais, quase que total-mente a sua capacidade jurídica. Ele estaria à margem de exercer atos mínimos de uma vida civil normal, o que, em tese, vai de encontro à previsão da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), arts. 6º e 7º, de que todo o homem tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa, e de que todos, por serem iguais perante a lei, têm direito à igual proteção da lei (LIMA, 2006, p. 245).

Diante desse quadro de vulnerabilidade existencial, carecedor de atenção especial, este trabalho dedica-se à questão da proteção jurídica do trabalhador migrante, não se atendo aos efeitos dos movimentos migratórios nos países emissores e nos países receptores, tendo em vista a sua complexidade, ora apresentando mais vantagens, ora mais desvantagens, a depender das peculiaridades inerentes às condições sociais, demográficas, políticas, econômicas e culturais de cada país.

É fato que a globalização econômica e suas implicações na divisão internacional do trabalho influem sobremaneira na definição dos fluxos migratórios internacionais, o que, outrossim, acaba determinando a feição das políticas migratórias, ora mais restritivas, ora mais condescendentes e tolerantes. Ademais, em face da liberalização dos mercados e da acentuada fragmentação dos processos produtivos, as grandes empresas multinacionais pulverizam suas unidades, mormente em países que estão em desenvolvimento, nos quais os direitos trabalhistas são mais flexíveis e, de modo geral, o volume de encargos sociais é menor. Isso levou a um recrudescimento da migração em direção a países em desenvolvimento, em razão do incremento na oferta de postos de trabalho neles gerado. Ou então, numa outra perspectiva, pode-se dizer que houve um deslocamento dos postos de trabalho até os potenciais migrantes, considerando que a maioria dos migrantes são, originalmente, de "países do Sul" (países em...

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