Condenação impediente de novo estabelecimento

AutorLuiz Gastão Paes de Barros Leães
Páginas231-240

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1. Exposição e consulta

1.1 Lojistas áoshopping center..., que abriram estabelecimentos no centro comercial ..., foram notificados pelos mantenedores do primeiro empreendimento de que teriam infringido as alíneas 5.9 e 5.10 da Cláusula V da "Escritura Declaratória de Normas Gerais Regedoras das Locações do Shopping Center..." que faz parte integrante do contrato de locação existente entre os lojistas e os empreendedores, e que reza o seguinte, in verbis:

"5.9 Os locatários não poderão ter outro estabelecimento, sede, ou filial, explorando o mesmo ramo de atividade, por eles exercida, em suas respectivas lojas, dentro de um raio de dois mil metros, contados do centro do terreno do Shopping Center, salvo autorização expressa das de-clarantes.

"5.10 A proibição mencionada no item anterior inclui as empresas ou firmas de que os sócios das sociedades locatárias participem, ou venham a participar, direta ou indiretamente, como quotista ou acionista, ou que tenham vínculo comercial ou de qualquer natureza com o locatário, ainda que episódico."

1.2 Como o centro comercial situa-se a menos de dois mil metros do terreno do ... onde se encontram as lojas locadas aos lojistas, estaria configurada a infração contratual, razão pela qual foram estes últimos notificados para que "providenciem o encerramento das atividades que vêm sendo desenvolvidas" pelos seus novos estabelecimentos no ..., "sob pena de, não o fazendo, rescindir-se o contrato de locação" celebrado com o ..., "ocasião em que serão tomadas as medidas judiciais aplicáveis à espécie".

1.3 Somos consultados sobre a validade das cláusulas contratuais em apreço, e se realmente elas impedem possam os lojistas abrir outro estabelecimento no novo shopping, e devam encerrá-lo sob pena de verem os seus contratos com o velho shopping rescindidos.

1.4 A resposta a esses quesitos impõe a análise preliminar dos princípios da liberdade de iniciativa e de concorrência, assim como das condições de validade das convenções restritivas de concorrência, para, a

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seguir, abordarmos as cláusulas de não-concorrência nos contratos pactuados nos shopping centers e, por fim, as cláusulas em exame, objeto da consulta, impedientes de estabelecimento em local próximo.

Na redação do presente parecer, distribuímos esses diferentes tópicos em quatro seções sucessivas.

2. A liberdade de iniciativa e de concorrência e as suas limitações

2.1 As nossas Constituições sempre elegeram a liberdade de iniciativa como princípio informador da ordem económica e social. A Constituição Federal de 1988 avança ainda mais, estabelecendo, em seu art. 1°, inc. IV, de nítido caráter preambular e geral, como um dos "fundamentos" da própria República Federativa do Brasil - constituída "em Estado Democrático e de Direito" - o "valor social" da livre iniciativa.

Quer dizer, a livre iniciativa é insculpida como postulado da República, não como expressão individualista, mas enquanto conceito socialmente valioso. Isso porque um dos "objetivos fundamentais" da República Federativa do Brasil - conforme expressamente determina o art. 39, inc. I, da Lei Maior, igualmente de caráter preambular e geral - é o da "construção de uma sociedade livre, justa e solidária", razão pela qual a livre iniciativa deverá ser encarada como conceito polarizado no sentido de dar cumprimento a esses escopos basilares.

2.2 Daí porque, ao tratar dos "princípios gerais da atividade económica" na República, a Carta em vigor volta a afirmar que a ordem económica está "fundada" na livre iniciativa e "tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social" (art. 170, caput), elevando também à posição de princípio constitucional a "livre concorrência" (art. 170, inc. IV).

Livre iniciativa e livre concorrência são, assim, princípios que se inter-relacio-nam e se complementam, de sorte que, ao consagrar a livre concorrência como tegumento informativo da ordem económica, é também ao seu conteúdo social que a Carta Magna está se referindo.

2.3 Com efeito, a livre concorrência foi expressamente alçada à condição de princípio constitucional, ao lado da livre iniciativa, no pressuposto lógico de que o mercado competitivo é uma garantia de eficiência económica, e, como tal, fator determinante da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que é um dos objetivos fundamentais da República. Esse é o "valor social" da livre iniciativa e da livre concorrência, sob cujo prisma devem tais princípios ser necessariamente entendidos e interpretados.

2.4 Ora, um mercado livre e competitivo, com essa orientação social, só é plenamente alcançado quando se assegura, a todos, "o livre exercício de qualquer atividade económica".

Essa garantia de acesso livre à atua-ção no mercado - também pioneiramente introduzida pela Carta de 1988, no art. 170, parágrafo único - não é senão projeção, no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas (ou seja, no plano empresarial), do direito individual ao "livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão garantido a todos "os brasileiros e estrangeiros residentes no país" pela própria Lei Maior (art. 5°, inc. XIII), já com assento nas Constituições anteriores.

Trata-se, assim, de uma prerrogativa fundamental, agora constitucionalmente garantida nos quadrantes de uma ordem económica livre e competitiva.1

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2.5 Pois bem, essa liberdade de acesso e de competição no exercício da ativi-dade económica, a todos assegurada, não pode ser absoluta, a ponto de comprometê-la, estando sujeita a limites, que permitem conciliar a utilização dessa prerrogativa com o respeito à esfera jurídica alheia e ao cumprimento da sua função social. Como acentua o art. 2.595 do Código Civil Italiano, intitulado limiti legali delia concor-renza, "a concorrência deve desenvolver-se de modo a não lesar os interesses da economia nacional e nos limites estabelecidos pela lei". Daí a existência de uma série de limites legais à liberdade de iniciativa e de competição, arrolados pela doutrina.2

2.6 Entre os limites legais à livre iniciativa e à livre concorrência, costuma-se elencar, em primeiro lugar, a própria atua-ção "normativa e reguladora da atividade económica", atribuída ao Estado, que é uma manifestação do poder de polícia que restringe a liberdade de ação económica dos particulares (CF art. 174). Também a intervenção direta do Estado na atividade económica, sempre através de lei, e só "quando necessária aos imperativos da segurança nacional, ou a relevante interesse coleti-vo", igualmente tem essa função limitadora da área de atuação dos particulares (CF art. 173). A constituição de monopólios públicos (CF arts. 177 e 21, XXIII), assim como a dos monopólios privados de inventos e sinais industriais (CF art. 5g, inc. XXIX) são, da mesma forma, fenómenos oriundos de prescrições legais que restrigem a liberdade de atuação económica do segmento privado. De maneira semelhante, a legislação de repressão ao abuso do poder económico tem o condão de fixar freios à atividade económica, quando esta venha a adquirir "formas" que visem à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros (art. 173, § 49).

Em todas essas hipóteses, os limites à liberdade de iniciativa e de competição económicas são impostos justamente como maneira, mediata e indireta, de mantê-la e preservá-la.

2.7 Ao lado dessas restrições à concorrência, determinadas por disposições legais, outras, porém, podem ser estabelecidas por estipulação convencional dos próprios concorrentes. São as chamadas convenções de não-concorrência, que são admitidas desde que preencham especialís-simas condições de validade.

Entre essas convenções, as mais comuns são as cláusulas de não-restabeleci-mento em caso de venda do fundo de comércio, as cláusulas de não-concorrência após a cessação do contrato de trabalho e as cláusulas de vedação de concorrência de sócio em sociedades comerciais.

Sem falar nos chamados pactos restritivos que, se não estabelecem propriamente obrigações de não-concorrência, restrigem as condições de exercício das ativi-dades económicas, como as convenções de exclusividade, opactum de non alienando, a cláusula de preferência ou a denominada clause de revente à prix imposés3

3. Condições de validade das convenções restritivas da concorrência

3.1 Quando o estabelecimento comercial é explorado, forma-se uma clientela, isto é, um conjunto de pessoas que mantém com o estabelecimento relações continuadas de procura de bens e serviços. A clientela não é, por certo, uma parte integrante do fundo de comércio, mas uma situação de fato, comTvalor económico, dele decorrente, que, por atuação reflexa, influi no "aviamento" do estabelecimento. A tutela jurídica do valor económico representado pela clientela está, destarte, inteiramente

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ligada à tutela do fundo empresarial, de que é uma...

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