Concurso de Pessoas

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas515-565

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21.1. Noção e espécies

Bem observa José Francisco Cagliari que, como forte expressão de sua natureza gregária, o homem tende a se unir a outros para, pela conjugação de esforços, superar os limites de sua individualidade na consecução de seus fins, sejam estes lícitos ou ilícitos1236. Desse modo, tonaliza-se e ganha contornos o concurso de agentes sempre que houver, para a prática do episódio criminoso, o envolvimento de mais de uma pessoa atuando para o sucesso ilícito.

É o chamado concursus delinquentium, que difere do denominado concursus delictorum porque neste, ao invés de um crime e vários autores, têm-se diversos delitos atribuíveis ao mesmo sujeito ativo (v. n. 22.1).

O concurso de pessoas, acepção mais abrangente que coautoria, anteriormente utilizada pelo nosso legislador, se delineia não apenas nas hipóteses de coautoria ou participação, como, ainda, de autoria colateral, de que pode derivar a autoria incerta, e de autoria mediata, a seguir tratadas, constituindo a primeira a principal, mais frequente e comum das situações e, as restantes, as mais raras.

21.2. CONCURSO DE PESSOAS: INTRANEUS E ExTRANEUS

Recebe a denominação de autor aquele a quem coube o implemento físico do crime, id est, a realização material da ação incriminada no tipo legal delitivo. É o sujeito ativo direto da conduta punível, o seu executor.

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Muitas vezes, entretanto, o autor não age isoladamente, pois conta com a cooperação, auxílio ou estímulo de outras pessoas para o cometimento da empreitada criminosa. Há, assim, em alguns casos, esforços e condutas que se conjugam, coordenam e organizam para a realização do fato incriminado, emprestando cada participante sua cota de contribuição para o delito.

A alguns cabe a execução material e direta do episódio criminoso e a outros, numa divisão de tarefas, a conduta convergente, coadjuvante e acessória, que secunda o ato principal.

Percebe-se, dessa forma, que, embora todos os agentes queiram contribuir com sua conduta para a concreção do fato criminoso, não o fazem da mesma maneira, nem em idênticas condições1237.

As atividades engendradas, todavia, convergem para a consecução de único desígnio, militando os participantes, com maior ou menor intensidade no seu empenho, para a obra criminosa comum.

Nessa conjuntura, no delito coletivo, que é retratado pelo concursus delinquentium, existem aqueles que, com maior afinco, denodo e determinação, cometem dire-tamente o núcleo do tipo (são os chamados intraneus ou simplesmente autores) e pessoas que com eles simplesmente colaboram (são os extraneus, que figuram na condição de partícipes, comparsas, asseclas ou cúmplices) porque, embora não perpetrando a conduta descrita no tipo, cedem forças secundárias para o evento incriminado e realizam ações a latere e periféricas, todos igualmente responsáveis pelo crime. Intraneus são, portanto, os que cometem os atos típicos e extraneus os que praticam atos que, estranhos à estruturação típica do crime, são, no entanto, referentes à figura penal.

Há, porém, teorias que tergiversam e se digladiam no tocante ao conceito de autor.

Pela teoria extensiva, que se identifica com o finalismo da ação, autor é todo aquele que, mesmo sem realizar a ação típica, sem cometer de forma direta o ato incriminado, conserva na mão o controle e o comando sobre o fato delituoso, ou seja, possui o domínio final sobre a sua realização. Não é necessário que ele realize o fato com as próprias mãos. Segundo Juan Bustos Ramirez, autor é quem tem realmente o poder de realização do fato descrito no tipo legal1238. Sob esse ângulo, figura como autor o chefe de uma quadrilha de traficantes de drogas que tem o comando e o controle de todos os que atuam na operação criminosa, ou o líder de uma organização mafiosa que atribui a seus comandados a tarefa de eliminar o dirigente de gangue rival1239. Nos crimes do nacional-socialismo alemão, autores também seriam os denominados assassinos

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de escrivaninha, em face das ordens que emitiam e por força de seu refletido domínio de organização, posto dirigissem o decorrer dos fatos1240. Em suma: autor, consoante Welzel, é o senhor sobre a realização do tipo, aquele que domina o ato, que dá a ordem de execução e conta com o atuar de seus comandados1241, tendo o poder de decisão sobre a prática do fato1242. É o entendimento de Roxin, Maurach, Wessels, Jeschek e Bacigalupo, entre outros.

Divergimos dessa posição porque ela coloca a autoria afastada do tipo, que é o parâmetro básico para o delineamento do crime. A propósito, Graf Zu Dohna ressaltou que a teoria extensiva choca em sua construção tanto com o uso idiomático como com a lei. Na vida, nunca se afirma que cometeu um fato quem determinou a outrem que o realizasse1243. Além do mais, segundo as balizas da teoria examinada, bem observa Mira-bete1244, os executores da ação típica - nos casos acima expostos - não seriam autores, mas partícipes, o que, pelo senso comum, é, no mínimo, inadequado. Com tais vetores se chegaria até ao absurdo e à heresia, como o fez o Tribunal alemão, de ser condenada como cúmplice a tia que afogou o sobrinho recém-nascido e ser condenada como autora a mãe que deu o consentimento para que aquela assim o fizesse1245.

Por tais razões, preferimos adotar a teoria formal-objetiva, ou restritiva, de acordo com a qual, mediante a diversificação entre autoria e participação, é autor somente quem executa a ação principal, a conduta propriamente típica, sendo partícipes os demais.

Não é imprescindível à conceituação da autoria, entretanto, que alguém sempre execute todo o tipo. Basta praticar, segundo a espécie que se apresente, um dos elementos executivos. De tal arte, se o crime integra o grupo daqueles que apresentam forma livre (v. n. 3.2), não é autor quem, mesmo interferindo na execução, não realiza diretamente a ação típica. Exemplo: "A" segura "B" para que "C" o mate. "C" é autor e "A" partícipe, pois, embora atuando na execução, "A" não cometeu diretamente a ação de matar. Já nos crimes que pertencem à classe daqueles de forma vinculada (v. n. 3.2), são autores tanto os que realizam a conduta incriminada como aqueles que, sem praticá-la, atuam no modus operandi ao qual a ação está subordinada. Calha ilustrar: "A" subtrai, enquanto "B" efetiva grave ameaça contra a vítima. Ou: "A" realiza a contenção física da vítima (violência) para que "B" pratique com ela a conjunção carnal ou outro ato libidinoso. Ambos são autores do roubo (art. 157, CP) ou do estupro (art. 213, CP).

A teoria formal-objetiva deve ser, contudo, complementada pela noção de auto-ria mediata (v. n. 21.13).

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Em síntese, segundo nosso pensar, são autores aqueles que realizam a própria conduta incriminada e partícipes ou cúmplices os que atuam de forma periférica e a latere, praticando atos desprovidos de conotação típica própria mas correlacionados com a conduta principal para a consecução do crime.

Em Cândido Mota (SP), por exemplo, três rapazes cometeram ato obsceno (art. 233, CP), por meio do que na época se chamava streaking ou chispada, quando desfilaram desnudos pela via pública. Era noite. Dois destes rapazes desfilaram completamente nus, enquanto o terceiro, no volante de um automóvel, seguia e acompanhava os nudistas com os faróis do veículo acesos, em posição alta, para iluminar e clarear bem os amigos exibicionistas, tornando-os mais visíveis à apreciação pública1246. Os

dois primeiros praticaram o ato obsceno (intraneus) e o terceiro concorreu para a sua realização (extraneus), não obstante, ele próprio, nenhuma obscenidade houvesse feito.

Penalmente responsáveis pelo crime de estupro com violência presumida etária (hodierno estupro de vulnerável - art. 217-A, CP), verbi gratia, foram considerados aquele que praticou o congresso carnal com menor de 14 anos (intraneus) e os genitores da impúbere que, embora não mantivessem com ela qualquer contato sexual, consentiram na sua prática ou a ofereceram para o amplexo lascivo (extraneus)1247.

Responde como partícipe de aborto quem, embora não tenha realizado dire-tamente as manobras abortivas, ofereceu o local para a sua prática e intermediou a transação entre a gestante e a parteira1248.

Rumoroso caso de latrocínio (art. 157, § 3º, CP) verificou-se em São José dos Campos (SP), causando verdadeira comoção social na ocasião. Um dos partícipes, supondo que dois casais idosos de alemães, residentes em chácara afastada da cidade, possuíssem vultosa quantia em dinheiro guardada na casa, idealizou e planejou o assalto, seguido de morte, entregando aos comparsas as armas para o crime. Ele próprio, como autor intelectual do delito, não esteve, na data concertada, no local dos fatos. Foram apenas seus três asseclas. Enquanto um deles, fora da moradia, vigiava e observava - em posição de vigília - eventual...

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