Concretização dos direitos socias: a via crucis do trabalhador terceirizado

AutorMaria Fernanda Wirth
Páginas196-201

Page 196

Ver Nota1

1. Introdução

O texto constitucional de 1988 elencou o trabalho, em seu artigo 6º, no capítulo dos Direitos Sociais, inovando em relação aos textos anteriores que dispunham que o trabalho integrava o capítulo Da Ordem Econômica e Financeira. Com esse avanço, o trabalho passa a ser visto como o exercício de um direito fundamental e não mais como um mero evento econômico.

A realidade, contudo, não tem confirmado tal promessa constitucional, é inegável que a ordem econômica e as crescentes demandas do mercado2 continuam exercendo forte influência sobre as relações de trabalho. Objetivando atingir maior competitividade econômica, os governos e os empregadores têm optado por ações de redução do campo de proteção do trabalhador, fomentando a adoção de práticas de desregulamentação e de flexibilização das relações de trabalho, em que prevalece a precarização das garantias trabalhistas, com fins de reduzir o custo com mão de obra. Contrariando o ideal do Estado de bem-estar, desenhado na Constituição, a lógica da ordem econômica tem se tornado paradigma na condução da agenda política, trilhando a sobreposição da economia até mesmo sobre as normas jurídicas, a custo dos direitos sociais dos trabalhadores.

Essa mudança de mentalidade trouxe ao mercado de trabalho a possibilidade de as empresas utilizarem mão de obra habitual oferecida por outra empresa, o processo de terceirização dos serviços, uma contratação de mão de obra intermediada, que mascara a necessidade de mão de obra permanente da tomadora final, distanciando-se do conceito clássico de terceirização, que objetivava determinado serviço, um fim determinado, e não o trabalhador.

Como bem sintetiza, Delgado:

Por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a estes os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista: o obreiro, prestador de serviços, que realiza suas atividades mate-riais e intelectuais junto à empresa tomadora de serviços; a empresa terceirizante, que contrata este obreiro, firmando com ele os vínculos jurídicos trabalhistas pertinentes; a empresa tomadora de serviços, que recebe a prestação do labor, mas não assume a posição clássica de empregadora desse trabalhador envolvido3.

Concretizando essa realidade, em 31 de março de 2017, foi sancionada a Lei n. 13.429/2017, que regulamenta a terceirização no país, estabelecendo que incumbe à empresa prestadora de serviços a contratação, remuneração e direção do trabalho realizado por seus empregados, asseverando que não há vínculo empregatício entre os trabalhadores e a empresa contratante, reconhecendo, tão somente, a responsabilidade subsidiária à empresa contratante quanto às obrigações trabalhistas oriundas do período no qual ocorrer a prestação de serviço, incluindo o recolhimento das contribuições previdenciárias, observado o artigo 31 da Lei n. 8.212/1991.

Vale lembrar que dias antes, em 26.4.2017, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 760.931/DF, com repercussão geral reconhecida, consolidou o entendimento que veda a responsabilização automática da Administração Pública por obrigações trabalhistas geradas pelo inadimplemento de empresas terceirizadas, cabendo sua condenação somente nos casos em que houver prova inequívoca de sua conduta omissiva ou comissiva na fiscalização dos contratos4.

Nesse cenário, impõe-se a análise não apenas dos significados da terceirização para as relações de trabalho e seu impacto nos direitos dos trabalhadores, como, também, os efeitos previdenciários dessa nova relação de trabalho,

Page 197

a fim de se determinar quais os riscos que podem ser vislumbrados com a terceirização para além do ambiente do mercado de trabalho.

2. Impactos da terceirização nas relações trabalhistas

A terceirização é considerada uma tendência irreversível da economia atual5, sendo apontada como modelo decisivo para garantir competitividade às empresas, consistindo, em síntese, na transferência das responsabilidades de parte da gestão empresarial para outra empresa fornece-dora de mão de obra.

Sua principal característica é a desvinculação entre as figuras do empregador e do trabalhador, rompendo a relação dual de trabalho e inaugurando uma nova triangulação nessa relação, na qual o contrato se estabelece entre duas empresas e o objeto desse contrato é a força de trabalho do indivíduo6.

Essa combinação de flexibilização e de desvinculação do contrato formal de trabalho atinge a essência da legislação trabalhista, na medida em que se multiplicam os contratos a termo, a subcontratação, esvaziando a proteção assegurada ao obreiro. Embora formalmente não exista diferença entre o trabalhador terceirizado e o efetivo, ambos são contratados por uma empresa, com contrato regular de trabalho; na prática, contudo, um fator os difere de sobremaneira, é que na negociação entre a empresa cliente e a fornecedora de mão de obra está embutido o salário, o valor do trabalhador. O rendimento do trabalhador se opõe ao interesse de lucro da empresa prestadora e ao interesse de redução de custos da empresa tomadora.

Assim, essa modalidade contratual facilita a contratação de trabalhador, que, via de regra, não se favorece dos mesmos salários, vantagens e oportunidades que são dirigidos àqueles contratados diretamente pela tomadora de serviços. Nem mesmo são abrangidos pela mesma proteção de classe, não gozando da representação por meio de entidade sindical, o que lhes retira o usufruto de vantagens reconhecidas em dissídios coletivos7. Inaugurando um fenômeno que cria uma nova classe de trabalhadores, dispostos à margem da proteção social.

No âmbito da Administração Pública, a realidade não é diferente, é imperioso lembrar que a lógica que direciona a contratação pública é a do menor preço. Assim, em uma licitação para contratação de serviço terceirizado será clara a competitividade entre as empresas que apresentarem o menor preço, sacrificando, em consequência, a remuneração paga a cada um dos trabalhadores, sem se ter em conta que os direitos sociais não podem ser conduzidos pela economia de mercado ou regidos pela lógica civilista.

Percebe-se que a lógica dessa sistemática de contratação caminha em sentido contrário aos princípios do Direito do Trabalho e de sua função protetiva ao obreiro, favorecendo práticas discriminatórias e precarizantes das relações de trabalho8, ao mesmo tempo em que fomenta o recuo do Estado na regulamentação do mercado de trabalho e na efetivação da proteção social, pervertendo as garantias constitucionais direcionadas ao trabalhador.

Esse recuo do Estado abre espaços para diversas práticas irregulares, que embora não permitidas em lei, fazem parte do dia a dia dos trabalhadores terceirizados.

Um exemplo comum de prática abusiva é a notória alta rotatividade das empresas prestadoras. Não é incomum que essas empresas, de tempos em tempos, desapareçam, muitas das empresas prestadoras nem mesmo têm uma sede real, são criadas especificamente para ser parte de um contrato e são facilmente extintas, sem deixar vestígios, impondo ao trabalhador a árdua tarefa de comprovar seu vínculo de emprego e ver reconhecidos seus direitos trabalhistas, como férias, 13º salário, depósito de FGTS.

A alta rotatividade, também, interfere negativamente no tempo médio de duração do vínculo de emprego. Segundo pesquisa realizada pelo DIEESE, em 2014, os vínculos nas atividades tipicamente terceirizadas duravam, em média, 2 anos e 10 meses, enquanto nas atividades tipicamente contratantes a duração média dos vínculos era de 5 anos e 10 meses9.

Page 198

A troca de empresa prestadora de serviço também é prática rotineira10, a lei permite que a empresa terceirizada seja substituída por outra a cada dois anos, assim, com a simples troca de nome, a empresa pode estabelecer novos contratos, como se um novo contrato se iniciasse com aqueles trabalhadores, embora o trabalhador continue realizando as mesmas tarefas, no mesmo local. Essa prática facilita a burla do direito às férias, com o início fictício de um novo...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT