Concordata preventiva e suspensiva (alguns aspectos económicos e contábeis)

AutorSandra de Medeiros Nery
Páginas199-218

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I- Introdução
A Justificativa

Desde há algum tempo,-a atiial lei falimentar brasileira (Decreto-lei 1.661/45) tem sofrido diversas críticas por ter objetivo liquidatário não mais condizente com a realidade atual, que prima pela concepção da preservação da empresa. Assim, desde 1993, está tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei que revoga a atual lei de falências e que regulamenta a recuperação e a liquidação judicial das empresas em crise.

Porem, como o referido Decreto-lei ainda está em vigor, é oportuno efetuar uma análise do instituto da concordata sob o ponto dè vista econômico-contábil, em especial/demonstrando que, com base nos documentos que á lei exige que sejam entregues por ocasião do pedido do favor, legal, existem meios de se avaliar se a concessão da concordata irá, possivelmente, evitar a falência da empresa, ou se será apearias um instrumento que irá adiar o fim desta última, implicando gastos desnecessários.

B Proposta de desenvolvimento

Inicialmente, será abordada importância do sistema de crédito para a economia de um país, inserindo-se o direito concursal nesse contexto.

À seguir, será apresentado um esboço da evolução histórica do instituto no mundo, a saber, no período anterior à Primeira Guerra Mundial, no período entre as duas guerras mundiais e a situação atual.

Na sequência da apresentação da evolução histórica da concordata no direito brasileiro, encontra-se a análise de alguns pontos do Decreto-lei 7.661/45, no tocante à concordata preventiva e à suspensiva.

Em seguida, serão abordadas as críticas ao sistema atual, no que diz respeito áos reflexos da conduta dos dirigentes so-

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bre a sorte da empresa e, também, se a viabilidade econômico-financeira da empresa se insere no instituto da concordata, nos moldes atuais.

Será apresentado um exemplo prático, demonstrando que, a partir das demonstrações financeiras obrigatórias, é possível verificar se a empresa apresenta ou não alguma viabilidade, seguindo-se a conclusão e a bibliografia.

II - Economia e crédito

Em regra, uma pessoa não pode produzir tudo o que precisa para sobreviver. Dessa forma, a troca de bens é necessária para a sobrevivência de uma sociedade. Segundo Hilferding, "qualquer que seja a forma de realização de troca, ela será necessariamente uma troca em base de equivalentes de valor, quer a troca de mercadoria se processe diretamente, quer seja mediada através de dinheiro".1 Quando predomina a mediação através de dinheiro, tem-se a economia monetária que é o modelo seguido atualmente pelas economias não primitivas.

A economia monetária permite o surgimento de poupadores, que não desejam adquirir bens imediatamente e emprestam o dinheiro que acumulam. Esses recursos são emprestados a quem se compromete a pagar não somente a quantia emprestada mas também um montante adicional de juros, de forma a compensar a desvantagem da perda do direito sobre bens e serviços.2

Quando o pagamento dos bens adquiridos só é feito algum tempo depois do recebimento da mercadoria, diz-se que existe uma relação débito-crédito.

Hilferding observa que um "aumento de produção significa, ao mesmo tempo, aumento da circulação; a multiplicação dos processos de circulação torna-se possível, por sua vez, pelo maior volume de dinheiro creditício".3

Assim, é possível afirmar, de forma simplificada, que a economia de uma nação tem como lastro a produção e a circulação de bens e serviços, as quais são financiadas por um sistema de crédito.

Existem, porém, limitações financeiras à produção e circulação, de três ordens: a primeira diz respeito à impossibilidade de que os agentes económicos possam fabricar dinheiro para suprir suas necessidades; a segunda, à capacidade de endividamento dos tomadores de recursos; e a terceira, aos padrões de prudência financeira estabelecidos pelos que emprestam os recursos.4

Ao longo do tempo, foram efetuadas diversas tentativas para atenuar essas restrições, dentre as quais, a criação de mais moeda, pelos governantes, e o desenvolvimento de novos ativos financeiros.

Como a situação de crise de um devedor tem consequências na economia, gerando uma ruptura no sistema de crédito, a qual, por si, tende a afetar a cadeia produtiva e de circulação, "uma terceira forma de reduzir tais restrições é de o governo ou as organizações económicas privadas tomarem medidas para ampliar a segurança dos empréstimos e ativos financeiros. Os governos podem criar novos trâmites legais para assegurar que a existência do débito possa ser imediatamente provada, ou a segurança dos empréstimos garantida".5

Nesse contexto, que é a garantia geral do crédito, situa-se o direito falimentar ou concursal, que tem como princípios básicos a igualdade entre os credores de uma mesma classe (par condido creditorum) e o saneamento do meio empresarial.

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III- Breve histórico do Direito Concursal

Gerardo Santini, citado por Nelson Abrão,6 reconheceu três fases na evolução histórica do direito concursal: a primeira fase compreende o período entre o surgimento do instituto da falência até o final da Primeira Guerra Mundial; a segunda fase abrange o período entre as duas guerras mundiais, e o terceiro período tem início após a Segunda Guerra Mundial. Para Nelson Abrão, a terceira fase apresenta dois marcos fundamentais, representados, respectivamente, pelo relatório da Inspetoria-Geral de Finanças, de 1965, que deu origem à lei de 1967, e à lei francesa de 1985.

A Primeira fase - O objetivo liquidatário-solutório

Durante longo tempo, entendeu-se que os distúrbios económicos causados pela situação de crise de um devedor estavam unicamente relacionados ao ferimento do interesse dos credores em receber aquilo que lhes era devido. Surgiram, assim, os procedimentos concursais de orientação liquidatária, ou seja, que visavam à liquidação do património do devedor para a satisfa-ção de seus débitos junto aos credores. É nesse contexto que se encontra o instituto da falência. Tais procedimentos admitiram, também, a possibilidade de um acordo entre devedor e credores, visando a uma dilação de prazo, alternativa ou cumulativamente a uma remissão de dívidas, que deu origem ao instituto da concordata.

Na antiguidade, a solução encontrada para que um devedor pagasse suas dívidas consistia no poder de coação dado ao credor sobre a pessoa do devedor. Se deixasse de honrar suas dívidas, este último poderia ser coagido fisicamente pelo credor, que também poderia aprisioná-lo, escravizá-lo e até matá-lo, caso não pagasse o devido.

Um longo caminho foi trilhado até que os bens, e não o corpo do devedor, se tornassem a garantia dos credores. Somente no ano 430 a.C. foi instituída, no Império Romano, a execução eminentemente patrimonial do devedor, por meio da lei poetelia papiria.

Na Idade Média, o devedor comerciante e o devedor não-comerciante insolventes recebiam o mesmo tratamento. O traço característico era a repressão penal, com a prisão do devedor insolvável e a aplicação de penas vexatórias e degradantes.

O instituto da falência, delineado como processo de execução coletiva contra o devedor foragido ou insolvente, surgiu no direito das cidades medievais italianas. O devedor era coagido, por meio de castigos, torturas físicas ou prisão, a pôr todo seu património à disposição dos credores, que se pagavam com o produto da venda dos bens componentes. Se o devedor fugisse, a autoridade pública sequestrava a sua fortuna. O processo executivo seguia perante o juiz, que tinha por função essencial punir os responsáveis pela falência, à qual estavam sujeitos comerciantes e não-comer-ciantes. Os credores, por meio de seus representantes e sob a fiscalização do juiz, administravam os bens do devedor. Competia ao síndico, eleito pelos credores ou nomeado pelo juiz, verificar os créditos, vender os bens e repartir o produto entre os primeiros.

As cidades medievais italianas, contudo, eram verdadeiras cidades-estado e, dessa forma, a fuga do devedor falido de uma para outra cidade reduzia grandemente as chances de os credores chamarem-no a juízo e apresentarem seus bens. Surgiu, então, a prática da concessão de salvo-con-duto para que o devedor falido foragido voltasse à sua cidade e se compusesse com os credores, a qual deu origem à concordata, que resultava na suspensão de um estado falimentar e foi, posteriormente, inserida nos estatutos dessas cidades.

Tal acordo, efetuado entre o falido e seus credores, apresentava as característi-

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cas de uma concordata suspensiva. Sua aplicação iniciou-se em fim do século XIII, tendo se aperfeiçoado em fins do século XV. Em regra, nas legislações estatutárias das cidades medievais italianas, a concordata, como "solução negociai entre falido e credores, era reconhecida e declarada eficaz em determinadas circunstâncias, mesmo em relação aos credores que tivessem dissentido, contanto que os concordantes representassem uma maioria, habitualmente bastante qualificada, da massa passiva", como em Florença.7 Em Veneza, porém, se fossem preenchidos determinados requisitos e não se chegasse a um acordo entre falido e credores, a autoridade, na pessoa dos supra-cônsules, intervinha e impunha seu poder para chegar a um acordo.

A concordata preventiva surgiu apenas na segunda metade do século XVI, nessas mesmas cidades. O devedor deveria dirigir-se aos juizes da Corte dos Mercadores "e pedir a convolação de seus credores, apresentando contemporaneamente seus...

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