Conclusões

AutorMárcio Túlio Viana - Raquel Portugal Nunes
Páginas319-344
conclusões
A lição sabemos de cor.
Só nos resta aprender
(Beto Guedes, “Sol de Primavera”)
Em tempos distantes, a Justiça era sentida como parte do Cosmos, ou da
Natureza.(1) Na verdade, os próprios homens se viam assim — células de um mes-
mo organismo — de tal modo que não havia maior diferença entre o voo de um
pássaro e os seus próprios passos, ou entre os frutos de uma árvore e as crianças
que nasciam.(2)
Por muitos séculos, a Justiça também viveu cercada de elementos mágicos, não
só porque os deuses eram mais presentes, mas porque os homens não confiavam
em seus próprios julgamentos.(3) Qualquer um podia ser morto por quebrar — mesmo
sem culpa — os ritos sagrados, a ordem do Universo.
De certo modo, o verdadeiro juiz eram os deuses, cujas vontades o sacerdote
revelava ou traduzia. Para isso, submetia os litigantes às mais variadas provas, como
a de pular num buraco com serpentes, beber caldos amargos sem fazer careta ou
jogar-se no rio com as mãos amarradas.(4)
As provas indicavam com quem estava a razão. Mas ao mesmo tempo re-
verenciavam o divino, pois a função de julgar era também divina, usurpada pelos
homens.(5) Por igual razão, na Idade Média, muitos duelos aconteciam à sombra
dos templos.
Aos poucos, porém, a Justiça foi deixando os deuses — e passou a construir os
seus próprios templos. Livre das penas do inferno, o juiz passou a prestar contas,
em teoria, apenas à sociedade. Desde então, é ela quem lhe dá poder — e even-
tualmente o pune.(6)
Mesmo assim, em vários templos da Justiça, dragões ou leões de boca aberta
revelam ainda “o aspecto (...) terrificante do sagrado”.(7) E outros rastros do divino
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se mantêm presentes, seja no sinal da cruz com que as partes se protegem, seja
na própria cruz que o juiz prega, às vezes, na parede, seja até em certos debates
jurídicos.(8)
Símbolos como esses contam coisas sobre a Justiça; ajudam a compor a sua
imagem e servem também para legitimá-la. Eles criam todo um ambiente que fala
— passando a ideia de democracia, equilíbrio, neutralidade.
A própria sentença é assim. Ela se apresenta como uma prova, um exemplo
e também um símbolo da razão. Só por ser racional, já nos parece justa, por mais
que as aparências, às vezes, enganem.
Na audiência, até os personagens se transformam em símbolos. Um juiz de
toga, no alto e no centro da sala, é a imagem idealizada da Justiça: serena, firme,
acima das paixões terrenas. Um advogado de terno, com o seu belo discurso, pode
nos fazer pensar no Direito: sóbrio, sério, racional.
Mas os símbolos judiciais não habitam apenas o fórum — nem atuam só no
processo. Já nas Escolas de Direito, os mestres os ensinam aos futuros bacharéis,
até mesmo por meio de seus trajes e palavreados — que também funcionam como
exemplos e imagens da Justiça.
A própria sala de audiências não cabe dentro de suas paredes. Nem consegue
conter o mundo. Seus poros se abrem para mil contágios, tanto quanto os produz.
É como uma esponja que suga e expele o líquido. Ou é como se respirasse.
Também por isso, as pessoas que saem pela porta não são exatamente as
mesmas que haviam entrado: podem estar mais tensas ou soltas, mais curvas ou
eretas, suspirando ou sorrindo... Um mesmo rosto talvez exiba uma nova ruga ou
um novo brilho.
O próprio juiz é assim. Se, em boa parte, constrói o processo, também o
processo o constrói — até fisicamente. Sua função não se separa de suas carnes.
E o que se passa com as pessoas também ocorre com o rito. A todo instante,
as regras sofrem os efeitos de mil e uma variáveis, nem sempre percebidas, mas
nem por isso irrelevantes. E como, entre as coisas que o processo recolhe, estão as
distorções do mundo, nem sempre esse ideal se realiza.
Paradoxalmente, as maiores vítimas das injustiças são os que mais precisam
de justiça — os oprimidos. É mais ou menos como acontece nas enchentes, nas
epidemias, nos tsunamis ou no dia a dia das favelas, com suas balas perdidas.
É verdade que a lei dá ao juiz do trabalho algum poder para reduzir esse risco.
Mas ela também agrava o risco, ao permitir, na prática, que o trabalhador possa
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