Conceito e função do ônus da prova na dinâmica comunicacional do direito: o art. 373 do Novo Código de Processo Civil e sua aplicação na esfera tributária

AutorFabiana del Padre Tomé
CargoDoutora em Direito Tributário pela PUC/SP. Professora nos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação em Direito da PUC/SP, nos Cursos de Extensão e de Especialização em Direito Tributário promovidos pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários-IBET. Advogada
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1. Sobre o foco temático deste estudo

O presente artigo é resultado de contínuos estudos desenvolvidos na área da incidência tributária, tomado o direito em seu contexto comunicacional.

A prova, em sua acepção de base, indica algo que possa servir ao convencimento de outrem. Objeto da prova é o fato que se pretende provar, constante na alegação da parte, ao passo que o conteúdo corresponde ao que se conseguiu provar, ou seja, ao fato demonstrado no suporte físico documental.

Para que se tenha algo por provado, há de estabelecer-se relação implicacional entre o conteúdo da prova e seu objeto, consistente no fato alegado. Tudo isso, por certo, com o ânimo de convencer o destinatário, na quali-dade de julgador, para que se constitua o fato jurídico em sentido estrito, desencadeando o correspondente liame obrigacional.

Para concretizar tal desiderato, produzindo enunciados probatórios, exige-se observância a uma série de regras estruturais, que se prestam à organização dos diversos elementos linguísticos, cujo relacionamento se mostra imprescindível à formação da prova. Para, além disso, como mecanismo auxiliar na formação do convencimento do sujeito habilitado para decidir conflitos, o ordenamento distribui as incumbências de carrear provas aos autos. Trata-se das chamadas "regras do ônus da prova".

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A Lei n. 13.105/2015, ao veicular as disposições do novo Código de Processo Civil, objetiva introduzir maior dinamicidade na atribuição da carga probatória, de modo que referido ônus recaia sobre quem tiver melhores condições para produzir a prova. De um lado, preceito dessa natureza apresenta grande utilidade para a aplicação do direito e consequente construção de fatos jurídicos. Mas, sua interpretação e seu emprego nos casos concretos há de observar rigorosamente os requisitos postos pelo legislador, evitando-se que, em nome da distribuição dinâmica do ônus da prova, instale-se o caos no ordenamento, em virtude de ser o ônus da prova alterado sem quaisquer parâmetros seguros para sua determinação.

A proposta deste texto é examinar esse assunto, firmando o conceito e a função do "ônus da prova" no sistema jurídico, identificando as regras para a distribuição da carga probatória postas pelo novel estatuto processual e as peculiaridades inerentes ao âmbito tributário. Por fim, a título ilustrativo, são analisados dois casos concretos em que os §§ 1º e 2º do art. 373 do novo Código de Processo Civil pode trazer importantes reflexos.

2. Delimitando o conceito de "ônus da prova"

Por "ônus" entende-se a necessidade de desenvolver certa atividade para obter um determinado resultado pretendido. Sua existência pressupõe um direito subjetivo de agir, que pode ou não ser exercido, isto é, um direito subjetivo disponível. Nesse sentido, sublinha Paulo de Barros Carvalho1que "o ônus configura, logicamente, uma relação meio-fim, estabelecida numa regra técnica e estruturada na forma ter-que, enquanto a obrigação funda-se no operador deôntico obrigatório".

O ponto diferencial entre ônus e obrigação está nas consequências cominadas a quem não realiza um determinado ato. Quando se está diante de vínculo obrigacional, a omissão do sujeito que figura no polo passivo desencadeia a relação sancionatória. No ônus, diversamente, o indivíduo que não cumpre suas atribuições apenas sofre as implicações inerentes ao próprio descumprimento. A respeito do tema, anota Francesco Carnelutti:2"existe somente obrigação quando a inércia dá lugar à sanção jurídica (execução ou pena); entretanto, se a abstenção do ato faz perder somente os efeitos úteis do próprio ato, temos a figura do ônus. (...) Por isso, se a consequência da falta de um requisito dado em um ato é somente sua nulidade, há ônus e não obrigação de efetuar o ato de cujo requisito se trata".

A esse critério distintivo acrescente-se outro, fundado no interesse: enquanto o vínculo obrigacional se impõe para a tutela de um interesse alheio, no ônus o liame volta-se à tutela de interesse próprio. Como explica Ovídio A. Baptista da Silva,3"a parte gravada com o ônus não está obrigada a desincumbir-se do encargo, como se o adversário tivesse sobre isso um direito correspectivo, pois não faz sentido dizer que alguém tenha direito a que outrem faça prova no seu próprio interesse".

Arruda Alvim4distingue o ônus perfeito do ônus imperfeito. Na primeira modalidade o ônus implica uma tarefa que o titular do direito subjetivo disponível tem de exercitar caso pretenda obter efeito favorável. Em tal hipótese, o descumprimento da atividade exigida acarreta, necessariamente, consequência

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jurídica danosa. Quanto ao ônus imperfeito, o resultado prejudicial em razão da ausência de efetivação do ato envolvido na relação de ônus é possível, mas não necessário. Nessa segunda espécie é que se enquadra a figura do ônus da prova.

Na lição de Giuseppe Chiovenda,5 assim como não existe um dever de contestar, igualmente não há que falar em dever de provar. Por isso, denomina-se ônus da prova a relação jurídica que estabelece a atividade de carrear provas aos autos, já que, nas suas palavras, "é uma condição para se obter a vitória, não um dever jurídico". Esse ônus, todavia, é imperfeito, no sentido de que, conquanto quem não produza a prova assuma o risco pela sua falta, tal omissão não implica, por si só, a perda do direito que se pretende ver tutelado, pois ainda que a parte não tenha se desincumbido do ônus da prova, o julgador pode dar-lhe ganho de causa em virtude de motivos outros. Eduardo Cambi6

formula exemplo no qual os fatos alegados pelo autor são impossíveis, situação em que, mesmo o réu não tendo contestado a ação, apresentando provas em contrário, o juiz pode rejeitar o pedido do autor, julgando-o improcedente. Por outro lado, esclarece o processualista, ainda que a parte tenha realizado o ato exigido em decorrência do seu ônus probatório, isso não é suficiente para que lhe seja atribuído efeito favorável, visto que, ao apreciar os fatos alegados e valorar as provas em seu conjunto, o julgador pode entender mais convincentes os argumentos e elementos probatórios trazidos por uma parte que por outra. Não basta produzir prova, desincumbindo-se do respectivo ônus para obter êxito na demanda: é preciso que a prova resultante cumpra a função em razão da qual foi realizada, sendo persuasiva o bastante para conferir convicção ao seu destinatário.

2. 1 Função e estrutura do ônus da prova

Consignamos ser o ônus uma espécie de encargo jurídico a que se veem submetidas as partes do processo com vistas a obter o resultado que o sistema outorga a quem realiza os atos na forma e tempo estabelecidos por esse sistema. A figura do ônus da prova, especificamente, decorre da necessidade de possibilitar a decisão em situações em que o conjunto probatório seja insuficiente para convencer o julgador. Assevera Enrique M. Falcón7que tanto as partes, ao desempenhar sua atividade probatória, como o julgador, no momento de avaliar as provas e ditar a decisão, devem ser orientados por uma regra que ofereça condições de determinar o vencedor e o perdedor na demanda, já que não é possível deixar de julgar.

Ao mesmo tempo em que o ônus da prova corresponde ao encargo que têm as partes de produzir provas para demonstrar os fatos por elas alegados, serve ao julgador como auxiliar na formação de seu convencimento, em especial nas hipóteses em que a prova é insuficiente, incerta ou faltante. Nesse sentido, o ônus da prova está intimamente relacionado com problemas de valoração dos elementos carreados aos autos.

A referência à dupla função do ônus da prova é feita, também, por Eduardo Cambi:8"(i) servir de regra de conduta para as partes, predeterminando quais são os fatos que devem ser provados por cada uma delas e, assim, estimulando suas atividades; (ii) servir de regra de julgamento, distribuindo, entre as partes, as consequências jurídicas e os riscos decorrentes da suficiência ou da ausência da produção da prova, bem como permitindo que, em caso de dúvida quanto à existência do fato, o juiz possa decidir, já que não se admite que o processo se encerre com uma decisão non liquet".

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A partir dessa bipartição, fala-se em ônus da prova em sentido subjetivo, no primeiro caso, e em ônus da prova em sentido objetivo, na segunda situação. Tal dualidade existe tão somente para fins de estudo analítico, pois uma função não subsiste sem a outra: elas se coimplicam. Sendo o ônus uma faculdade, exige um titular que a exerça, servindo de base para a aplicação da regra de julgamento. Por outro lado, a falta de certeza que conduz o julgador a decidir conforme os preceitos do ônus da prova não pode ser dissociada do encargo que pesa sobre quem solicita a tutela jurisdicional, cujo pressuposto é a verificação desse fato incerto. O âmbito objetivo do ônus da prova está, portanto, intimamente ligado com o aspecto subjetivo, sendo ambos necessários para a compreensão do instituto do ônus da prova.

Como discurso dialógico, a comunicação jurídica materializada nos autos processuais exige que todos os fatos alegados sejam fundamentados, com vistas a possibilitar a solução do dubium conflitivo. No discurso jurídico-processual temos duas relações comunicativas: uma, entre sujeito ativo e julgador; outra, entre sujeito passivo e julgador. Em cada um desses liames, os emissores (sujeitos ativo e passivo) enunciam fatos contrapostos, cujo reconhecimento fará prevalecer o...

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