Sobre o conceito de operação de câmbio ilegítima

AutorLuiz Gastão Paes De Barros Leães
Páginas337-352

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Parecer

1. Exposição e consulta

1.1 A sociedade brasileira Alfa ("Alfa") realizou com a sociedade Beta ("Beta"), sediada no exterior, um acordo de investimentos por meio do qual Beta abriu uma linha de crédito para a Alfa.

1.2 Os recursos mutuados por Beta à Alfa correspondem ao produto da venda, no Brasil, em moeda nacional, de títulos estrangeiros anteriormente detidos por Beta e transferidos à sociedade brasileira Alfa. Dessa forma, Beta transferiu títulos estrangeiros a Alfa, financiando o seu pagamento, ou seja, mediante compra e venda a prazo. Alfa, por sua vez, os vendeu no Brasil a sociedades brasileiras, recebendo à vista os recursos em moeda nacional, conforme fluxograma abaixo:

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1.3 Não houve celebração de câmbio nesta segunda parte da operação, pois, como dito, a sociedade brasileira Alfa transferiu a prazo os títulos estrangeiros então detidos pela empresa Beta.

1.4 A amortização dos valores mutuados por Beta se deu de três formas.

A primeira consistiu no pagamento direto à Beta, com o produto da venda, recebido no exterior, de ativos adquiridos por Alfa no Brasil e pagos em moeda nacional. A segunda consistiu na celebração de instrumentos de dação de crédito em pagamento, através das quais Beta aceitou substituir créditos que detinha contra a empresa Alfa por outros créditos contra empresas residentes no País, originalmente devedoras de Alfa. Tal qual as operações de transferência de títulos, as dações em pagamento não cursaram no mercado de câmbio, pois não importaram efetiva remessa de recursos à Beta.

Por fim, a terceira forma de amortização dos valores mutuados consistiu na realização de dação em pagamento de créditos detidos por Alfa contra Beta decorrentes de empréstimos concedidos a esta última por Alfa, cujo respectivo desembolso de recursos se deu via Transferências Internacionais de Reais (TIRs) em favor de Beta.

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1.5 Os recebimentos e pagamentos acima foram contabilizados em rubricas do Passivo - Exigível a Longo Prazo - Beta Ltd. ou do Ativo - Realizável a Longo Prazo - Beta Overseas Ltd.

1.6 Conforme intimação que nos foi presente, o Bacen entendeu que, à exceção das TIRs (que cursaram no mercado de câmbio), as demais operações seriam irregulares, já que os "recursos provenientes de empréstimo contraído no exterior foram convertidos em moeda nacional pelo 'artifício' da compra e venda de títulos internacionais e parcialmente liquidados por meio de dação (em pagamento) de créditos em pagamento, restando caracterizada operação ilegítima de câmbio capitulada no art. 2o do Decreto n. 23.258, de 19.10.1933".

1.7 Em outras palavras, a acusação baseia-se no entendimento de que as operações de compra e venda a prazo de títulos e as dações de crédito em pagamento constituiriam "artifícios" para remeter recursos para e do Brasil sem cursá-los no mercado de câmbio.

A acusação entendeu ainda que Alfa teria agido por conta e ordem de Beta, pressuposto do art. 2° do Decreto n. 23.258/ 1933, capitulação legal indicada pelo Bacen, in verbis:

Art. 2°. São também consideradas operações de câmbio ilegítimas as realizadas em moeda brasileira por entidades domiciliadas no país, por conta e ordem de entidade brasileiras ou estrangeiras domiciliadas ou residentes no exterior.

1.8Nesse contexto, aConsulta tem por escopo indagar acerca da capitulação legal indicada pelo Bacen, bem como da necessidade de cursar no mercado de câmbio as operações questionadas pela autarquia (i.e., transferência de títulos estrangeiros a residentes no país no âmbito de operações de compra e venda a prazo e operações de dação de crédito em pagamento celebradas com credora estrangeira).

1.9 Para a correta compreensão dos quesitos que seguem, cumpre tecer duas breves considerações acerca do Decreto n. 23.258/1933, capitulação legal indicada pelo Bacen.

A primeira diz respeito aos limites da definição de "operação ilegítima de câmbio" introduzida pela referida norma.

1.10 O conceito de "operações ilegítimas", para efeitos do art. 2° do Decreto n. 23.258/1933, está explicitamente delimitado no próprio preâmbulo do Decreto n. 23.258/1933, que assim estabelece:

Atendendo a que são consideradas operações legítimas as realizadas de acordo com as normas traçadas pela Lei n. 4.182, de 1920, Decreto n. 14.728, de 1921, e circulares da extinta Inspetoria Geral dos Bancos, do Gabinete do Consultor da Fazenda e do Banco do Brasil (Secção de Fiscalização Bancária);

1.11 O Decreto n. 4.182/1920 estabelecia que o governo instituiria a fiscalização dos bancos, para o fim de prevenir e coibir o "jogo sobre o câmbio", assegurando apenas as operações legítimas e o Decreto n. 14.728/1921, por sua vez, aprovava o regulamento para a fiscalização dos bancos e casas bancárias.

Por conseguinte, o conceito de "operações ilegítimas" introduzido pelo Decreto n. 23.258/1933 foi claramente delimitado, podendo-se afirmar que "operações ilegítimas" são aquelas que se afastam, a teor do preâmbulo do Decreto n. 23.258/1933, das normas dos (já revogados) Decretos ns. 4.182/1920 e 14.728/1921.1

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1.12 A segunda consideração a respeito da capitulação legal indicada pelo Bacen refere-se à sua revogação expressa, ocorrida em 1991, através do Decreto Presidencial s/n., de 25 de abril de 1991, in verbis:

Art. 4°. Declaram-se revogados os Decretos relacionados no Anexo. Anexo

(...)

23.258, de 19 de outubro de 1933.

1.13 Em 14 de maio de 1998, sete anos após a revogação expressa, foi editado um novo Decreto s/n., que assim dispôs:

Art. 1o. Fica reconhecida a nulidade do art. 4o do Decreto de 25 de abril de 1991, na parte em que revogou o Decreto n. 23.258, de 19 de outubro de 1933 (grifou-se).

1.14 De acordo com a Exposição de Motivos - EM n. 278/MF, de 8.5.1998, o Decreto n. 23.258/1933 foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como lei ordinária e, portanto, não poderia ser revogado por um decreto, razão pela qual era preciso reconhecer a nulidade do art. 4° do Decreto de 25 de abril de 1991, na parte em que revogou o Decreto n. 23.258/1933.

1.15 Feitas essas considerações, passa-se aos quesitos.

(a) Sobre a revogação do Decreto n. 23.258/1933:

  1. Se um determinado ato é praticado quando a norma que o proibia (1a norma) já se encontrava revogada por uma legislação posterior (2a norma), é indiscutível que o administrado que o praticou não deve sofrer os efeitos punitivos da norma anterior que o proibia, justamente porque esta, à época, não produzia mais efeitos no ordenamento. Esta conclusão seria diferente caso, posteriormente, a 2a norma viesse a ser declarada nula por uma 3a norma? Isto é, é admissível que este administrado agindo em conformidade com o direito até então vigente possa sofrer os efeitos punitivos da 1a norma só porque a 2a norma que a revogou fora mais a frente declarada nula? Por outras palavras: o direito brasileiro admite a repristinação de normas punitivas?

  2. Se o erro de proibição, desde que justificável, isenta o agente de pena, não é razoável supor que o administrado que agiu em conformidade com a legislação à época vigente, posteriormente revogada, também deve, com mais razão, ficar isento de qualquer punibilidade?

    (b) Sobre o conceito das "operações ilegítimas" de que trata o Decreto n. 23.258/1933:

  3. O conceito de "operações ilegítimas", para efeitos do art. 2o do Decreto n. 23.258/1933, pode ser ampliado pelos ins-petores do Bacen para além das operações realizadas de acordo com as normas traçadas pelas leis que ensejaram a publicação do Decreto n. 23.258/1933 (i.e., Decreto n. 4.182, de 1920, Decreto n. 14.728, de 1921, e circulares da extinta Inspetoria Geral dos Bancos, do Gabinete do Consultor da Fazenda e do Banco do Brasil - Secção de Fiscalização Bancária)?

  4. As operações questionadas no processo podem ser consideradas "operações ilegítimas" à luz do conceito estabelecido no art. 2o do Decreto n. 23.258/1933?

  5. Pode o administrado ser punido pela prática da infração de operação ilegítima de câmbio, mesmo diante do fato de que a infração última a que as operações ilegítimas tentavam coibir - o jogo sobre o câmbio - não mais existe no sistema jurídico brasileiro?

    (c) Sobre as operações de compra e venda de títulos estrangeiros entre residente no Brasil e no exterior:

  6. A regulamentação nacional proíbe a aplicação em títulos estrangeiros por parte de residentes no País?

  7. São proibidas as transferências de títulos entre estrangeiros e nacionais que

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    não envolvam movimentação financeira no momento inicial?

  8. Transferências de títulos entre estrangeiros e nacionais que não envolvem movimentação financeira são consideradas operações de câmbio?

  9. Existe, no ordenamento jurídico pátrio, obrigatoriedade de liquidação de operações de compra e venda de títulos por meio de remessa de recursos ao exterior?

    (d) Sobre a venda de títulos estrangeiros por e para partes residentes no Brasil:

  10. Há no ordenamento vigente, hoje e à época das operações questionadas (de abril de 1997 a dezembro de 1998) alguma regra que (1) proíba a detenção por residente no Brasil de títulos estrangeiros; (2) proíba a negociação particular desses títulos por partes igualmente residentes no Brasil, em moeda nacional?

  11. Operações de compra e venda de títulos estrangeiros, no Brasil, entre partes nacionais, em moeda brasileira, podem configurar infração cambial?

  12. Um residente no País que adquiriu títulos no exterior (e pagou-os com recursos obtidos em operação de crédito no exterior ou, então, adquiriu tais títulos a prazo sem que tenha realizado qualquer pagamento em um primeiro momento) e, em seguida, vendeu os títulos no Brasil a residente no Brasil e recebeu os recursos no País realizou operação de câmbio ou operação ilegítima de câmbio para os fins do Decreto n. 23.258/1933?

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