Direito Comunitário: O Apogeu do Velho Continente e o Longo Caminho da América Latina

AutorRodrigo Dias Rodrigues de Mendonça Fróes
Páginas3-40

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I Introdução

O desfecho da primeira década1 do século XXI assiste à consolidação do fenômeno globalizador, presente, sobretudo, na ênfase dada à importância da comunicação, promovida a principal regente de todas as relações do mundo contemporâneo, sejam elas revestidas de caráter puramente comercial ou de valores políticos, com o fim de dar sustentação à flagrante interdependência entre os Estados.

Como consequência, forçosa é a reinvenção da ótica lançada sobre conceitos até hoje tidos por pétreos, como os de poder e soberania, que ganham novo matiz à medida que as relações às quais se aplicam são também rearranjadas.

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Dentro deste quadro, o foco do presente estudo é, portanto, o delineamento do pilar jurídico da globalização – o Direito Comunitário – a partir da análise de seu mais expressivo ícone, a União Europeia, e de como seu posicionamento na política mundial poderia influenciar a mais expressiva tentativa de cooperação latino-americana, o Mercosul.

Para tanto, faz-se necessário um exame da progressão histórica rumo a esta que é a grande Comunidade do cenário internacional e, consequentemente, ao próprio Direito Comunitário contemporâneo. Em seguida, lançar-se-á luz sobre as tentativas de integração deflagradas na América Latina, suas porções de êxito e insucesso e o atual panorama.

II Escorço Histórico

O Direito Comunitário tem sua gênese no Velho Continente e em todas as manifestações de unidade que este atravessou ao longo da História. Cabe ressaltar, contudo, a superação de uma série de fatores que, em diversas etapas, conspiraram contra a solidez da proposta.2

Primeiramente, a Europa sofreu com uma diversidade populacional que oferecia poucos ou mesmo nenhum ponto de interseção, somada a uma indefinição territorial: múltiplas etnias, com línguas e culturas particulares, em graus distintos de civilização e ideologias díspares, ocupavam um espaço cujo contorno geográfico punha em dúvida a própria autonomia física continental, numa elasticidade de classificações que permitia fosse apresentada como um promontório da Ásia ou uma faixa de terra estreitamente ligada à África.

Com uma base física ainda por ser reconhecida e desprovido de um canal de negociação entre os povos, carecia o continente de um evento catalisador que se sobrepusesse à ausência de um fator de unidade.

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Assim, somente com a expansão do Império Romano, transmitindo aos povos dominados os seus elementos fundamentais, aos quais somaram-se, já passado o seu auge, aspectos culturais germânicos, surgem as primeiras concepções políticas acerca de uma civilização europeia, instituindo uma ordem jurídica com vocação unificadora, à medida em que agregava sociedades de etnias distintas por meio de leis e instituições comuns. Os levantes bárbaros, todavia, poriam por terra esta ainda frágil forma una.

Adentra, então, a Europa na Idade Média, onde a autoridade do Papado, bem como a consequente difusão do Cristianismo, contribuíram para a sustentação de um teor unitário, em um plano primeiramente espiritual e, em seguida, político. É de se destacar, contudo, que, se por um lado encontravam-se razoavelmente superadas as discrepâncias populacionais pré-Roma, por outro ainda eram incipientes os conceitos de soberania nacional, que, como se verá mais adiante, constituem ponto nodal dos debates acerca do Direito Comunitário.

Após o esgotamento da Igreja, que, tendo atingido seu auge nas Cruzadas – a expressão máxima do poder da unidade contra os “infiéis” perante ela dissidentes -, se viu enfraquecida pelas lutas contra Imperadores alemães que consumiram os séculos X a XIII, ascenderam no século seguinte os Reis de França, sob o manto do Absolutismo e da personificação divina. Com eles, solidificam-se as unidades nacionais, em detrimento da unidade política e religiosa europeia.

Os séculos seguintes assistiram à composição do equilíbrio das potências europeias, conforme redesenhava-se o mapa político do continente e as rivalidades eram transferidas para o além-mar. A partir de 1815, constrói-se um panorama de cooperação e respeito pelo Direito Internacional, alimentado por congressos políticos e conferências técnicas, permitindo à Europa um século próspero3 no qual a guerra franco-prussiana não foi mais que um ligeiro abalo e que só teve fim com a Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

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Os danos impostos à Europa por este primeiro conflito grave fizeram com que, ao seu fim, o discurso de retomada da cooperação se ampliasse rapidamente no sentido do resgate da unidade perdida em prol da afirmação das soberanias. Este anseio remontaria, ainda, a concepções remotas isoladas, que, em suas respectivas épocas, vislumbravam novas formas unitárias, dentre as quais os “Estados Unidos da Europa” de Pierre Dubois (1304) e o “Projeto de Paz Perpétua” do Abade Charles Irénée Castel, de Saint-Pierre (1713).4 Este último propunha uma estrutura confederativa, sediada nos Países Baixos, na qual um Senado composto por representantes de todos os Estados-membros faria as vezes de órgão central, adotando a arbitragem como meio de resolução de controvérsias.5

Os anos seguintes ao fim da Primeira Guerra foram marcados por personagens empenhadas na formação de uma Europa unida6, dentre os quais se projeta Aristides Briand, Ministro dos Negócios Estrangeiros da França e autor do primeiro Projeto de União Europeia, de 1929. Sua proposta, no entanto, esbarra no respeito às soberanias ao esboçar o vago conceito de“laço federal”7 e esvanece com a sua morte, em fins de 1932.

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Já no ano seguinte, a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, dando início à sua marcha de nacionalismo exacerbado e agressivo rumo uma unidade política impositiva e destrutiva, fez com que o continente mais uma vez sucumbisse ao retrocesso.

O desfecho da Segunda Guerra Mundial mostra-se ainda mais devastador que o de sua predecessora – e, dentro deste cenário desolador, finalmente a unidade europeia começa a transpor o plano das ideias e se tornar algo palpável.

Assim é que, em 18 de abril de 1951, é assinado em Paris o Tratado que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), composta pela França, Alemanha, Itália, Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo e visando a unificação da economia no concernente ao comércio de carvão, aço e minério de ferro. Nascia uma Zona de Livre-Comércio, caracterizada pela extinção ou redução de taxas aduaneiras e restrições ao intercâmbio. No mesmo ano, criava-se a Assembleia Parlamentar, mais tarde rebatizada Parlamento Europeu.

Progressivamente, são firmados em Roma, no dia 23 de março de 1957, dois Convênios distintos. O Tratado Institutivo da Comunidade Econômica Europeia (CEE) estabeleceu um Mercado Comum, conceito que, uma vez incorporada às zonas de livrecomércio uma Tarifa Externa Comum (TEC) – o que, neste estágio, caracterizaria uma União Aduaneira, como se verá mais adiante -, estabelece os direitos à livre circulação de bens, serviços, pessoas e capitais, bem como regras comuns de concorrência. Junto a este – e de extrema relevância por já antever as tensões globais da década seguinte –, o Tratado Institutivo da Comunidade Europeia de Energia Atômica, conhecida por EURATOM, funcionava como um estímulo ao uso pacífico da energia nuclear. Considerados conjuntamente, constituem o Tratado de Roma.

Outro avanço sensível deu-se já em 1965, por meio do Tratado de Fusão, assinado em Bruxelas no dia 08 de abril e responsável pela instituição de um Conselho e Comissão únicos para as três Comunidades então existentes. Mais tarde, com a assinatura, em fevereiro de 1986, do Ato Único Europeu, expandiram-se as pretensões do Tratado de Roma para com a Comunidade Econômica Europeia, abarcando elementos não imediatamente econômicos e avançando em uma direção política.

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O ápice é atingido com a assinatura, em 07 de fevereiro de 1992, do Tratado de Maastricht (Países Baixos), criando finalmente a União Europeia, estrutura suprema da busca por uma coesão socioeconômica no continente e lançando as bases do que hoje se entende por Direito Comunitário.

III Direito Comunitário Contemporâneo
III 1 Noções Gerais

Primeiramente, com o escopo de conferir ao Direito Comunitário em sua forma atual uma análise de amplo espectro, verificar-se-á seu posicionamento perante outros ramos a ele muitas vezes associado, quando não com ele confundidos, de modo a destacá-lo, para, então, aprofundar o olhar sobre sua estrutura.

Desta forma, aplicar-se-á a ótica mais abrangente, de fora para dentro de seu corpo, chegando o mais próximo possível de uma completude conceitual.

O Direito Comunitário possui estreita relação com os ramos do Direito Internacional Público e do Direito Interno. Enquanto este último decorre diretamente da vontade do Estado, sendo por ele livremente modificado ou revogado sem interferência de outras soberanias ou nelas ecoando, o Direito Internacional tem por fito disciplinar direitos e deveres das pessoas internacionais, indo do Indivíduo às Organizações Internacionais e passando pelo Estado.

O ramo que nos é objeto de estudo, como que conjugando a prática da soberania estatal pelo primeiro com a amplitude de ação do segundo, adotará preceitos obrigatórios não só para os Estados-membros da comunidade, mas também para seus nacionais, uma vez acordada entre aqueles a delegação de determinadas matérias aos órgãos comunitários.8

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Prova maior da autonomia do Direito Comunitário é o fato de seus...

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