A Comunicação entre o juiz e o acusado no processo penal

AutorFrederico Magno de Melo Veras
Páginas23-70

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O processo judicial é um inquérito, naturalmente não no sentido de inquérito policial, mas sim no sentido atribuído a este termo por Michel Foucault9, a saber, um procedimento para investigação da verdade. Este procedimento antecede necessariamente a sentença, definida esta como a enunciação, "por um terceiro, do seguinte: certa pessoa tendo dito a verdade tem razão, outra, tendo dito uma mentira não tem razão" (2009A, p. 61).

Visa o processo a descoberta da verdade e, de certa forma, pretende-se uma verdade a mais absoluta possível10, uma

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verdade que esteja além de uma dúvida razoável11, uma verdade que é quase científica, obtida por vezes com o auxílio de apurados exames, como o DNA encontrado na arma do crime, um exame psiquiátrico que ateste a imputabilidade ou não do acusado12, complexas perícias contábeis e fiscais ou pareceres altamente especializados (v.g., a atuação do Comitê Nacional de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos - CENIPA - no caso do avião Legacy que colidiu com um Boeing 737-800 de uma empresa área nacional em 2006).

Nesta busca da verdade, que ao menos em termos jurídicos encontra seus limites apenas no tempo e nos recursos disponíveis, tem-se uma fórmula de proteção do acusado, do juiz e da sociedade (entendida como conjunto de indivíduos vivendo de forma organizada). Ao acusado interessa a prova da sua inocên-

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cia ou a dúvida quanto a sua conduta e, ainda, a verificação de sua escassa culpabilidade. Para o juiz, a verdade judicial é garantia da não-infringência de seu estatuto13, nem o desrespeito às normas éticas que devem reger sua atuação14. A sociedade tem a garantia de que não haverá uma sanção penal indiscriminada pelo estado-juiz (alicerçado por outras instituições estatais, v.g., polícia e ministério público), mas ao contrário, um julgamento que siga regras processuais pré-estabelecidas, oferecendo ao acusado um efetivo direito de defesa.

Quem conduz este inquérito é o juiz, entendido o termo juiz como designativo daquele que "uma norma do ordenamento jurídico atribui o poder e o dever de estabelecer quem tem razão e quem não tem, e de tornar assim possível a execução de uma sanção" (BOBBIO, 1999, p. 27).

O juiz deve ser imparcial, deve buscar a verdade através de técnicas legalmente previstas, deve pesar as provas em favor e em desfavor da(s) tese(s) apresentada(s) na denúncia (fulano praticou tal ato, este ato configura a prática do crime previsto em alguns dos artigos da parte especial do CP, estando sujeito às penas ali previstas) e deve ainda analisar não apenas os fatos constantes dos autos, mas também os argumentos trazidos pelas partes, verificando se estes são ao menos plausíveis. Nes-

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te sentido, imagine-se que o acusado está desempregado (fato provado) e alegue que cometeu um furto de pequeno valor para com o produto deste alimentar sua família (fato não provado). A defesa alega inexigibilidade de conduta diversa, diante das circunstâncias precárias de vida do acusado (fato parcialmente provado: existência da mulher e filhos, grau de instrução do acusado, local onde mora). Poderá este argumento, que não foi integralmente provado, levar a uma absolvição? Evidente que sim, pois neste caso a verdade que o condenaria, a exigir do agente uma conduta culpável, não pode ser auferida. Registrese mais uma vez, neste caso, o juiz não tem prova nos autos desta inexigibilidade, mas a argumentação pode ser aceita com base em indícios e o conhecimento empírico ou científico de dados da sociedade em que o julgamento se realiza. Veja-se o item 4.2.3 (culpabilidade) em que se retorna a este ponto, com a indicação de como a doutrina penal dificulta a caracterização de situações de exclusão de culpabilidade, mesmo quando claro que ao acusado não restavam muitas saídas.

Apesar do dever de buscar uma verdade histórica (afirmação esta defendida por BOBBIO e FERRAJOLI), o juiz não é um cientista. Um cientista declara uma verdade (verdade que só momentânea e circunstancialmente poderá ser absoluta - assim como no direito positivado, o crime de hoje poderá ser a conduta penalmente permitida de amanhã, v.g., o adultério). Ao declarar a verdade oriunda de suas pesquisas, que poderão ser até inconclusas (o que não é permitido ao juiz, pois este não pode negar-se a prestação jurisdicional - sendo que até a impossibilidade de provar um fato criminoso é uma conclusão jurídica, gerando efeitos também jurídicos), o trabalho do cientista estará realizado, podendo quando muito sugerir campos de aplicação que poderão beneficiar-se de sua pesquisa.

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Ao juiz impõem-se uma sentença (não um enunciado científico)15, embora haja um relatório, que descreve uma marcha processual equivalente a um protocolo de investigação científica, bem como uma fundamentação que interpreta os dados obtidos confrontando-os com normas diversas do ordenamento jurídico que sejam significantes para a decisão (v.g., comprovou-se A - o furto ocorreu no período noturno porque a jurisprudência entende que tal situação ocorre após as 18h, exceto tratando-se de horário de verão e, no caso, este não ocorreu -, mas não se comprovou B - o furto não ocorreu com o rompimento de obstáculo, pois a vítima deixou a porta de sua casa aberta), porém o juiz profere um veredito e este altera a realidade, quer absolvendo, quer condenando. Ou seja, o juiz faz parte do experimento, não sendo mero espectador. E que experimento é este? O experimento previsto no ordenamento jurídico, com o qual o legislador/ Estado pretende controlar a vida social, minorando a prática de condutas valoradas como lesivas à sociedade16.

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Cada vez mais o judiciário é visto como um prestador de serviços, algo comparável aos serviços de eletricidade, de fornecimento de água ou coleta de lixo. Tratando-se dos juízes penais e do aparato necessário ao cumprimento das condenações criminais, alguns o aproximariam do último serviço mencionado, retirando das ruas os inimigos da ordem pública, sabendo-se que algumas sentenças referem-se, de forma atentatória a técnica jurídica e a dignidade humana, aos acusados como sendo lixo social (ROCHA, 2009, p. 129).

Considere-se o judiciário como um serviço público. Poderá ele ser prestado em larga escala, como já está sendo (centenas de milhares de ações por ano, propostas nos diversos ramos do judiciário), sem prejuízo de sua qualidade? Débora Regina Pastana (2009, p. 53), afirma:

Nesse cenário desarticulado politicamente e caracterizado pelo aumento palatino de litigação, percebe-se o surgimento do cidadão-cliente do cidadão-vítima, com seus clamores de tutela eficazes. Como cliente, o cidadão quer ver seu desejo atendido, como vítima quer ser recompensado. Frustra-se mais uma vez ao ver que o Judiciário tem inúmeros clientes e vítimas, que o atendimento não é personalizado e que nem sempre o cliente tem razão.

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Seguindo o raciocínio da autora citada, na esfera penal quem é o cliente? É o acusado ou a sociedade? É possível contentar aos dois simultaneamente? Talvez o acusado espere ser absolvido ainda que tenha praticado o crime e, em contraposição, a sociedade queira sua condenação, mesmo que inocente ou não culpável (no caso de fato típico, mas de insuficiente culpabilidade) ou quando a pena se revele inadequada. E quem é o juiz? Será o gerente de um posto de atendimento judicial? Tomará de empréstimo a lógica das empresas privadas, entendendo que quanto mais produtividade maior será o lucro? Espera-se não chegar a tal ponto.

Denomina-se acusado quem responda a um processo criminal, nesta qualidade é o mesmo titular de direitos (presumese sua inocência, o acusado tem direito ao silêncio, tem o direito inalienável a uma defesa técnica, a recorrer etc.). Uma conduta delituosa é imputada ao mesmo e é ao Estado (notadamente ao MP) que incumbe prová-la, inclusive no que se refere a sua culpabilidade.

A presente investigação interessa particularmente um determinado momento do ser acusado, a saber, o momento em que este recebe um veredito condenatório.

Como forma de impor limites ao objeto investigado, interessa o recebimento do veredito em primeira instância17, embora exista uma breve referência a comunicação do veredito oriundo da segunda instância.

Finalmente, quanto ao último termo do presente capítulo (a comunicação entre o juiz e o acusado no processo criminal), há

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de ser perguntar inicialmente porque seria necessária uma comunicação entre o juiz e o acusado?

De acordo com a forma como se entende o Direito Penal, irão variar as respostas. Acaso o Direito Penal seja mera retribuição do mal representado pelo crime, possibilitando que a culpa seja expiada e a comunidade vingada, a comunicação terá como objetivo uma mera prestação de contas, informará o resultado de um cálculo, comunicará a quantidade de pena resultante do peso desta comparada com o peso do delito18. Uma visão compensatória do direito, não propriamente de vingança, mas de pacificação social, com o restabelecimento da paz perdida, visão própria de sociedades ainda não muito desenvolvidas, a comunicação a todos da comunidade da condenação e...

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