O compromisso de ajustamento de conduta no direito brasileiro e no projeto de lei da ação civil pública

Autor1.Bianca Oliveira de Farias - 2.Humberto Dalla Bernardina de Pinho
Cargo1.Mestre em Direito. Professora de Direito Processual. Civil da UCAM. Advogada no Rio de Janeiro. 2.Pós-Doutor em Direito. Professor de Direito Processual. Civil na UERJ e na UNESA. Promotor de Justiça no R.J.
Páginas29-57

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1. Introdução:

Vivemos, atualmente, no denominado Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil. Ainda que possuidor de imperfeições, este sistema consagra a dialética e destaca conceitos e valores fundamentais em nossa sociedade, taisPage 30como o princípio da igualdade e a tutela das liberdades de culto e de expressão nas suas mais variadas formas1.

Como é cediço, o Estado, no exercício de sua soberania, desempenha basicamente três funções: administrativa, legislativa e jurisdicional. A última, também denominada jurisdição, guarda estreita pertinência com o tema ora estudado2.

Ao invocar para si o monopólio da função jurisdicional, visou o Estado coibir a chamada "justiça de mãos-próprias".3 Mas, nem sempre foi assim4.

Em primeiro momento, vigorou a chamada autodefesa ou autotutela. Era a época da vingança privada, da justiça de mãos-próprias. Não havia um juiz distinto das partes e ocorria a imposição da decisão por uma das partes à outra.

Em momento seguinte, passa a ser adotada a autocomposição como forma de solução de litígios. Buscava-se, por meio desta, a solução dos conflitos por meio da desistência, renúncia ou transação. Sem dúvida, tal método é infinitamente superior ao anteriormente adotado, de caráter marcantemente desagregador e plenamente incompatível com os preceitos orientadores da vida em sociedade.

Contudo, não obstante a evolução ocorrida, problemas continuavam a existir. Isto porque, a parcialidade continuava a caracterizar as decisões e o que freqüentemente se observava era o predomínio do mais forte em conseqüente detrimento do hipossuficiente. É a partir daí, que se percebe a necessidade de atribuir-se o poder decisório a um agente eqüidistante das partes, capaz de conferir ao caso concreto a justa decisão5, posto que dotado da devida neutralidade. Transfere-se, então, ao Estado o exercício da função jurisdicional6.

Acreditava-se que, com tal atitude, todos os problemas relativos à solução dos litígios estariam definitivamente resolvidos, pois os agentes estatais se incumbiriam de aplicar a lei aos casos concretos com imparcialidade sem, contudo, perceber-se que, nem os diplomas legais eram capazes de prever soluções para todos os problemas porventura existentes, nem tampouco possuíam tais agentes os instrumentos processuais necessários para conferir às lides a rápida e justa solução que se reclamava. Tais limitações culminam no panorama que hoje se vislumbra em que o Estado, e conseqüentemente a função jurisdicional, vêm sendo muito criticados7.

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Nesse diapasão, surge o chamado movimento de acesso à justiça8, ou na expressão de Kazuo Watanabe "acesso à ordem jurídica justa"9, que vem contestando a falta de efetividade do processo, buscando fundamentalmente aprimorá-lo para que o "consumidor" da tutela jurídica, detentor do direito material em questão, consiga auferir melhor proveito. Notável influência exerceu, nesse sentido, o jurista italiano Mauro Cappelletti que deflagrou o movimento doutrinariamente denominado: "ondas do acesso à justiça"10.

Ao desenvolver a terceira onda renovatória de acesso à justiça, de caráter eminentemente instrumentalista, o mencionado doutrinador acabou por atribuir maior importância às formas extrajudiciais de solução de lides11. A natureza coletiva dos interesses muitas vezes envolvidos leva a uma mudança de perspectiva12 na medida em que se passa a perceber que, em tais casos, mais eficiente do que a eventual condenação pecuniária do réu é a obtenção de acordos e medidas capazes de garantir a ocorrência da lesão em tela ou, ainda, a pronta e efetiva reparação do prejuízo causado13.

Com o desenvolvimento destas formas de resolução de litígios alcançamos inegável progresso nas relações processuais posto que, assim, é possível obter-se a tutela dos interesses em questão de forma de forma célere, na medida em que tais meios de solução de litígios primam pela informalidade e dispensam os entraves burocráticos enfrentados constantemente no curso de um processo14. Ademais, o Judiciário também é beneficiado na medida em que diminuem significativamente o número de ações ajuizadas ou que aguardam a prolação de sentença15.

Essa conquista processual ameniza, portanto, dois grandes problemas: a morosidade e o alto custo dos processos judiciais que são, ainda, excessivamente burocráticos, alheios à realidade econômica e social que os circundam, findando, em algumas hipóteses, em representar até a formalização da injustiça.

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Cabe ainda ressaltar que estas formas alternativas de solução de litígios, perfeitamente consoantes com o princípio de cunho constitucional do acesso à justiça, não implicam, nem de longe, na formação de um movimento de privatização da justiça16.

Nesse sentido, perfeita é a abordagem feita por Geisa de Assis Rodrigues17:

"A Justiça estatal continua sendo o foro mais importante de solução de litígios, existindo, inclusive, uma estreita relação entre os modos alternativos de solução de controvérsias e os Tribunais, principalmente porque estes, ao exercerem seu papel de definir o direito que deve prevalecer nos conflitos a ele subsumidos, emitem mensagens que irradiam para todo o sistema".

É nesse cenário que se impõe a necessidade de uma detalhada reflexão acerca do termo de ajustamento de conduta e de sua aplicação no âmbito do ordenamento atual e das perspectivas que já se apresentam com o novel Projeto de Lei que visa a disciplinar a ação civil pública.

2. Breve histórico do surgimento do termo de ajustamento de conduta:

O processo que leva ao surgimento do termo de ajustamento de conduta tem início na década de 80. Este período é comumente denominado como "década perdida" na economia mas, contrariamente, é tido como período de grande evolução na seara jurídica.18Ocorrem notáveis progressos legislativos19, O Ministério Público fortalece-se como nunca antes ocorrera, ganha destaque a tutela dos direitos e garantias dos cidadãos, cresce a preocupação com a resolução breve de pequenas causas e com a tutela dos direitos difusos sob a perspectiva do acesso à justiça. Engajadas nessa perspectiva, surgem as leis nº: 7244/8420, 7347/85 e 8429/92.

Rompem-se, então, antigos dogmas. A celeridade e a instrumentalidade passam a ganhar destaque quando da análise processual21. Uma sucessão de mudanças começa a ocorrer no Código de Processo Civil, ao mesmo tempo em que a tutela dos chamados direitos transindividuais ganhaPage 33acentuada relevância e, por fim, é editado o Código de Defesa do Consumidor que veio a assumir papel de extrema relevância diante da nova realidade processual que se apresentava.

Assim, o termo de ajustamento de conduta, já previsto no artigo 211 da lei 8069/90, passa a ser regulamentado nos termos do artigo 113 do Código de Defesa do Consumidor, instrumento que veio a introduzir o parágrafo 6º no artigo 5º da Lei 7347/85 (Lei da Ação Civil Pública), pelo que a nova disposição passou a ser aplicável aos direitos coletivos lato sensu, ou seja, aos direitos difusos, coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, considerada a norma do artigo 117 do Código de Defesa do Consumidor, que acrescentou o artigo 21 à Lei da Ação Civil Pública.

Convém destacar que a previsão do compromisso de ajustamento de conduta pela Lei suprareferida, acabou por tornar inócuo o veto ao parágrafo 3º do artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, posto que repetia as disposições inicialmente vedadas.22

Há, ainda, previsão expressa nos parágrafos 1º ao 4º da Lei nº 8.884/94, Diploma que se aplica à ordem econômica, e nos parágrafos 1º ao 8º do art. 79-A da Lei nº 9.605/98, que cuida das infrações contra o meio ambiente.

É possível afirmarmos, portanto, que o estudo do termo de ajustamento de conduta conjuga, necessariamente, três variáveis: os direitos transindividuais, a solução extrajudicial de conflitos e as implicações do Princípio Democrático23 na definição de decisões políticas que têm como pano de fundo a tutela dos direitos do homem enquanto inserido numa determinada sociedade.

Isto porque, como é cediço, no Estado Democrático de Direito, alia-se justiça e democracia, entendida a última como o direito a ter direitos, recorrendo-se a mecanismos de proteção da tutela preventiva e repressiva da agressão aos direitos como forma de acesso pleno à justiça, assim compreendido o direito a uma ordem jurídica justa, conhecida e implementável. É o chamado direito altruísta, ou seja, o direito a ter outros direitos.

Devemos ter sempre em mente que o direito que não se preocupa com o acesso à justiça não tem compromisso com a realidade. Sendo certo que a tutela estritamente individual não mais era capaz de permitir o real acesso à justiça, advém a proteção de direitos coletivos como decorrência fundamental do Estado Democrático de Direito.

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Portanto, o termo de ajustamento de conduta surge em momento de redemocratização das instituições e de radical mudança ideológica por parte dos operadores do Direito.

Aliás, essa guinada na direção a ser seguida quando da análise e resolução dos litígios era a única solução para que se pudesse prestar a tutela jurisdicional de forma satisfatória, posto que, nos moldes em que...

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