Complexo industrial da saúde, desenvolvimento e proteção constitucional ao mercado interno

AutorGilberto Bercovici
Páginas617-653
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COMPLEXO INDUSTRIAL DA
SAÚDE, DESENVOLVIMENTO E
PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL
AO MERCADO INTERNO
1. O REGIME CONSTITUCIONAL DA SAÚDE
A estruturação decisiva do sistema público de saúde no Brasil
inicia-se com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública
(Decreto n. 19.402, de 14 de novembro de 1930), no Governo Provi-
sório de Getúlio Vargas.1 Durante a elaboração da Constituição de 1934,
* Este texto foi publicado na Revista de Direito Sanitário, vol. 14, n. 2, 2013, pp. 9-42.
1 Vide SCHWARTZMAN, Simon (org.). Estado-Novo, Um Auto-Retrato:Arquivo
Gustavo Capanema. Brasília: EdUnB, 1982. pp. 379-418; HOCHMAN, Gilberto &
FONSECA, Cristina M. Oliveira. “O Que Há de Novo? Políticas de Saúde Pública e
Previdência, 1937-1945” In: PANDOLFI, Dulce Chaves (org.). Repensando o Estado
Novo. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1999. pp. 73-77 e 81-93; HOCHMAN, Gilberto &
FONSECA, Cristina M. Oliveira. “A I Conferência Nacional de Saúde: Reformas,
Políticas e Saúde Pública em Debate no Estado Novo” In: GOMES, Ângela Maria de
Castro (org.). Capanema: O Ministro e seu Ministério. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2000,
pp. 173-193 e, especialmente, FONSECA, Cristina M. Oliveira. Saúde no Governo Vargas
(1930-1945): Atualidade Institucional de um Bem Público. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2007 e LIMA, Nísia Trindade; FONSECA, Cristina M. O. & HOCHMAN,
Gilberto. “A Saúde na Construção do Estado Nacional no Brasil: Reforma Sanitária em
Perspectiva Histórica” In: LIMA, Nísia Trindade; GERSCHMAN, Silvia; EDLER,
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GILBERTO BERCOVICI
o que ocorre, fundamentalmente, é a constitucionalização das medidas
tomadas pelo Governo Provisório. Ou seja, uma sistematização consti-
tucional do que já havia sido regulado pelo Poder Executivo revolucio-
nário.2 Neste sentido, há no texto constitucional de 1934 a previsão
expressa de direitos sociais, como o artigo 10, II3, que dava competên-
cia à União e aos Estados para cuidar da saúde e assistência públicas, o
artigo 121, § 1º, ‘h’4, que definiu a assistência médica como um direito
dos trabalhadores e os artigos 138, ‘f’ e ‘g’5 e 1406, que previam, entre
as políticas de assistência social, políticas de saúde e higiene sociais e o
combate às grandes endemias.
A Carta de 1937 atribuiu à União a competência exclusiva para
legislar sobre defesa e proteção da saúde (artigo 16, XXVII)7, considerou
Flavio Coelho & SUÁREZ, Julio Manuel (orgs.). Saúde e Democracia: História e
Perspectiva do SUS. Reimpr., Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2011. pp. 38-46.
2 Sobre este processo, vide BERCOVICI, Gilberto “Estado Intervencionista e
Constituição Social no Brasil: O Silêncio Ensurdecedor de um Diálogo Entre Ausentes”
In: SOUZA Neto, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel & BINENBOJM,
Gustavo (orgs.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. pp. 725-728.
3Artigo 10, II da Constituição de 1934: Compete concorrentemente á União e aos
Estados: II – cuidar da saúde e assistência publicas”.
4Artigo 121, § 1º, ‘h’ da Constituição de 1934: § 1º A legislação do trabalho observará
os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador:
h) assistência medica e sanitaria ao trabalhador e á gestante, assegurado a esta descanso,
antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdencia,
mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice,
da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes do trabalho ou de morte”.
5Artigo 138, ‘f’ e ‘g’ da Constituição de 1934: Incumbe á União, aos Estados e aos
Municipios, nos termos das leis respectivas: f – adoptar medidas legislativas e
administrativas tendentes a restringir a mortalidade e a morbidade infantis; e de hygiene
social, que impeçam a propagação das doenças transmissíveis; g – cuidar da hygiene
mental e incentivar a lucta contra os venenos sociaes”.
6Artigo 140 da Constituição de 1934: A União organizará o serviço nacional de combate
ás grandes endemias do paiz, cabendo-lhe o custeio, a direção technica e administrativa
nas zonas onde a execução do mesmo exceder as possibilidades dos governos locaes”.
7 “Artigo 16, XXVII da Carta de 1937: Compete privativamente à União o poder de
legislar sôbre as seguintes matérias: XXVII – normas fundamentais da defesa e proteção
da saúde, especialmente da saúde da criança”.
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COMPLE
X
O INDUSTRIAL DA SAÚDE, DESENVOLVIMENTO E...
matéria de competência concorrente entre a União e os Estados regular
sobre obras de higiene popular e casas de saúde e clínicas (artigo 18, ‘c’)8
e definiu a assistência médica como um direito dos trabalhadores (artigo
137, ‘l’)9. O texto constitucional, no entanto, retrocedeu em termos de
garantia formal dos direitos sociais, pois garantia os direitos trabalhistas
e previdenciários e o direito à educação, mas não mencionava expres-
samente o direito à saúde.
Com a Constituição de 1946, a União tinha competência para
organizar a defesa permanente contra os efeitos das endemias rurais
(artigo 5º, XIII)10 e para legislar sobre defesa e proteção da saúde (arti-
go 5º, XV, ‘b’).11 O direito dos trabalhadores à assistência médica foi
mantido (artigo 157, XIV).12 O texto constitucional manteve o retro-
cesso em relação à Constituição de 1934 e não previu expressamente o
direito à saúde. No entanto, é sob a vigência da Constituição de 1946,
durante o segundo governo de Getúlio Vargas, que será instituído au-
tonomamente o Ministério da Saúde, por meio da Lei n. 1.920, de 25
de julho de 1953.13 Deve ser destacado, ainda, que o combate às grandes
8 Artigo 18, ‘c’ da Carta de 1937: “Independentemente de autorização, os Estados
podem legislar, no caso de haver lei federal sôbre a matéria, para suprir-lhe as deficiências
ou atender às peculiaridades locais, desde que não dispensem ou diminuam as exigências
da lei federal, ou, em não havendo lei federal e até que esta os regule, sôbre os seguintes
assuntos: c – assistência pública, obras de higiene popular, casas de saúde, clínicas,
estações de clima e fontes medicinais”.
9 “Artigo 137, ‘l’ da Carta de 1937: A legislação do trabalho observará, além de outros,
os seguintes preceitos: l) assistência médica e higiênica ao trabalhador e à gestante,
assegurado a esta, sem prejuízo do salário, um período de repouso antes e depois do parto”.
10Artigo 5º, XIII da Constituição de 1946: Compete à União: XIII – organizar defesa
permanente contra os efeitos da sêca, das endemias rurais e das inundações”.
11Artigo 5º, XV, ‘b’ da Constituição de 1946: Compete à União: XV – legislar sobre: b
– normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da
saúde; e de regime penitenciário”. Esta competência legislativa, segundo o disposto no artigo
da Constituição, não excluía, neste caso, a legislação estadual supletiva ou complementar.
12Artigo 157, XIV’ da Constituição de 1946: A legislação do trabalho e a da previdência
social obedecerão aos seguintes preceitos, além de outros que visem à melhoria da
condição dos trabalhadores: XIV – assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica e
higiênica preventiva, ao trabalhador e à gestante”.
13 Sobre as discussões que levaram à criação do Ministério da Saúde, vide HAMILTON,

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