Complexity, law and legal norms as emergences/Complexidade, direito e normas juridicas como emergencias.

AutorFolloni, Andre
CargoEnsayo

Introducao

Ha razoavel consenso, na teoria juridica contemporanea, a respeito da ausencia de identidade entre as normas juridicas--regras, principios ou postulados--e os textos de direito positivo, editados pelos orgaos competentes, os textos de fontes do direito (constituicoes, leis, decretos etc.). Esse consenso, todavia, nao e capaz de aglutinar, em uma teoria unica, as varias explicacoes sobre (a) o que e uma norma, se nao e um texto; (b) como surge uma norma juridica, se nao com o trabalho dos orgaos competentes; (c) como se da a relacao entre norma, texto e interpretacao, se nao mais se confundem mas mantem-se em conexao; (d) como controlar o arbitrio na producao da norma juridica, se nao se trata de respeito puro e simples ao texto editado pelo orgao competente. Nesses pontos, ao contrario, ha importante dissenso e espaco para especulacoes.

Neste artigo, proponho uma teoria que de resposta a essas quatro questoes. O fundamento da construcao sera a Teoria da Complexidade, heterodoxo e inovador na ciencia juridica. Utilizo uma das nocoes fundamentais da complexidade: as emergencias. Enuncio a hipotese de que normas juridicas podem ser compreendidas como fenomenos emergentes, no sentido que a teoria da complexidade da a essa expressao. Avalio a consistencia da hipotese ao tentar expor, coerentemente, o que sao emergencias, como se manifestam, e como as normas juridicas, em sua diferenca em relacao aos textos, podem ser bem descritas como fenomenos emergentes. Por fim, sustento ainda haver espaco para racionalidade e controle do arbitrio na Ciencia do Direito, nao prejudicados pela distincao entre texto e norma mas, precisamente, em razao dessa distincao, na maneira como aqui a formulo.

Ao partir de uma hipotese e avalia-la, nao de forma empirica, mas argumentativa, sigo uma adaptacao do metodo hipotetico-dedutivo para a Ciencia do Direito, nem sempre fundada no teste empirico de suas hipoteses, mas frequentemente na validade e na forca de suas justificativas--o que, em muitos casos, envolve o recurso a experiencia, mas raramente controlada, como nas ciencias naturais, e dificilmente com o carater de refutacao em definitivo que lhe empresta essa metodologia. Como o metodo nao e individual, mas coletivo, lanco a construcao teorica e fico na expectativa de consideracoes e de objecoes que nao tenho condicoes de antecipar. Ainda, o metodo do artigo e complexificado ao adotar a transdisciplinaridade como substrato, na tentativa de compreensao de conceitos de Complexity Science transversais, por sua propria natureza, a varias disciplinas cientificas--e de aplicacao desses conceitos ao Direito.

Desenvolvo o artigo iniciando por uma breve apresentacao da discussao sobre a diferenca entre texto e norma, na qual procuro expor a opiniao de alguns dos autores mais influentes dentre aqueles que tratam do tema, explorando suas similitudes e diferencas. Em seguida, explico o que sao as Ciencias da Complexidade e como elas compreendem as emergencias. Isso permitira a caracterizacao das normas juridicas como fenomenos emergentes, sugerindo como essa caracterizacao contribui para compreender a cientificidade da Ciencia do Direito e do controle racional de suas hipoteses, teorias e conclusoes.

  1. Texto e norma

    Ha certo consenso, na Teoria do Direito, a respeito da existencia de diferenca fundamental entre texto de direito positivo e norma juridica. Humberto Avila inicia seu consagrado estudo sobre os principios afirmando, categoricamente: "Normas nao sao textos nem o conjunto deles ...", para esclarecer, em seguida, que normas sao "... os sentidos construidos a partir da interpretacao sistematica de textos normativos". (1) Se norma e um "sentido" e nao e texto, entao e algo imaterial, diferente do texto, algo material. Quero guardar essa ideia, para a retomar adiante: o texto e algo fisico; a norma e algo imaterial que, de alguma forma, surge a partir daquele substrato material.

    Dessa observacao inicial, Avila avanca para uma consideracao igualmente importante: nao ha um significado intrinseco, incorporado ao texto, imodificavel no tempo e no espaco, independentemente de seu uso e de sua interpretacao, e nao--ao menos potencialmente--ambiguo e vago. (2) Em outras palavras: nao ha semantica independente da pragmatica. A Filosofia da Linguagem reconhece-o ha decadas: o sentido depende do emprego; o significado deixa o metafisico em direcao ao cotidiano. (3)

    Isso traz consequencias importantes para a Epistemologia Juridica. Nas ciencias naturais, por exemplo, nao e despropositado pressupor a existencia de qualidades intrinsecas a materia, a serem descobertas, descritas e explicadas pelos cientistas. Essas qualidades poderiam ser havidas como permanentes: uma teoria sobre a mecanica celeste pode ser retomada seculos depois, para sua revisao, corroboracao ou refutacao, partindo-se do pressuposto de que o proprio movimento ainda e o mesmo, regido pelas mesmas leis, variando apenas a sua compreensao pelos cientistas. No Direito, e despropositado pressupor qualidades intrinsecas aos textos, de modo que os significados de "liberdade", "igualdade" ou "familia" sejam, hoje, por exemplo, os mesmos adotados pelos gregos na antiguidade classica.

    Nao so as teorias sobre a liberdade, a igualdade e as familias evoluiram, como e licito pressupor a evolucao do proprio conteudo dessas expressoes, de forma correlata e mutuamente imbricada. Isso demonstra como a concepcao de norma juridica determina a compreensao da Ciencia do Direito. Se a norma ja pre-existe a interpretacao, a Ciencia do Direito pode ser apenas descritiva ou explicativa; se, ao contrario, a norma depende da interpretacao, a Ciencia do Direito avancara para outras funcoes. (4) Isso torna-se ainda mais importante quando se percebe que o processo interpretativo nao envolve apenas textos, mas tambem outros elementos, como atos, fatos, costumes, finalidades e efeitos, e e intermediado por metodos, argumentos e teorias. (5)

    Se Humberto Avila pode ser tido por um dos principais juristas brasileiros inseridos na tradicao contemporanea da Filosofia Analitica e da Argumentacao Juridica, e interessante visitar o que sustenta, sobre a distincao entre texto e norma, um dos mais notaveis representantes atuais da tradicao Hermeneutica. Lenio Luiz Streck afirma que a norma juridica nao se confunde com o texto, dentre outros motivos, porque o texto e formado por palavras cujo significado nao esta nelas mesmas independentemente de um processo de interpretacao. Esse significado depende de uma posicao teorica assumida pelo interprete. Streck recorre ao classico exemplo de Recasens Siches, da proibicao de caes nas estacoes de trens. Se o cao e proibido, entao e permitido ou proibido levar ursos? E caes guias de cegos, sao permitidos ou proibidos? A analise meramente sintatica e semantica do enunciado nao permite a resposta adequada: de um lado, onde esta escrito "caes" deve-se entender tambem ursos e outros animais perigosos ou inconvenientes ao ambiente; de outro lado, onde esta escrito "caes" nao se deve entender tambem os caes guias de cegos, nao perigosos nem inconvenientes, mas necessarios para o acesso dessas pessoas a estacao. Essa resposta, que ao mesmo tempo amplia a palavra "caes" para significar tambem ursos e restringe-a para nao significar alguns caes, so e possivel a partir de uma compreensao previa do contexto no qual a proibicao de caes faz sentido.

    Na visao de Streck, responder negativamente a pergunta sobre a proibicao de ursos, com base no significado da palavra "cao", e valer-se do positivismo exegetico, enquanto responder positiva ou negativamente de forma arbitraria seria adotar o positivismo voluntarista ("pos-exegetico"). Ja responder adequadamente, com base em uma compreensao adequada da situacao na qual se insere a proibicao, seria aplicar uma "analise pospositivista". Em sintese, a diferenca entre texto e norma, de um lado, implica a compreensao do contexto em que se insere a normatividade (hermeneutica) e, de outro, e por isso mesmo, nao admite o arbitrio de dar ao texto qualquer significado normativo, limitado tanto pelos "limites sintaticos-semanticos do texto" quanto pelo "campo juridico" que o envolve. O interprete, enfim, nao pode dar ao texto "o sentido que mais lhe convem". A norma "exsurge" do texto como resultado da aplicacao (nao se entenda, aqui, "aplicacao" em sentido kelseniano, mas gadameriano). (6)

    Dessas consideracoes tambem se seguem problemas interessantes para a Epistemologia Juridica. Quando alguem afirma uma norma a partir de textos, aplicando aquela teoria hermeneutica, postula, mesmo implicitamente, que a sua interpretacao dos limites sintatico-semanticos do texto e do campo juridico e correta. Ha uma pretensao de correcao na interpretacao do texto e do contexto. Essa pretensao precisa ser sustentada perante a comunidade juridica e pode ser objeto de controversia: outro jurista pode pretender que os limites sintatico-semanticos do texto sao outros, e que o campo juridico e formado por teorias, por hipotese, desconsideradas ou mal compreendidas pela interpretacao combatida e assim por diante. O debate publico aparece e torna-se necessaria uma teoria que dele de conta. Diz Streck: "A validade e o resultado de determinados processos de argumentacao em que se confrontam razoes e se reconhece a autoridade de um argumento". (7) Para o autor, se o entendo bem, nao ha como se construir um metodo previo capaz de permitir argumentacao dedutiva resultando na melhor decisao de um caso que ainda nao apareceu. Isso nao significa inexistencia do "nivel apofantico", mas sua dependencia em relacao ao "nivel hermeneutico", explicitado pelo apofantico mas nao nele constituido, porque um processo argumentativo nao poderia acontecer sem a pre-compreensao. (8) Outra ideia a ser adiante retomada: o nivel apofantico sucede, no tempo, o nivel hermeneutico, com alguma semelhanca a distincao entre contexto de descoberta e contexto de justificacao: primeiro...

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