A competência executória das sentenças coletivas envolvendo direitos individuais homogêneos trabalhistas

AutorFausto Siqueira Gaia
Páginas129-139

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1. Introdução

As ações coletivas são vias instrumentais disponibilizadas pelo legislador para a tutela de direitos metaindividuais, ou seja, aquela gama de direitos que transcendem a esfera individual dos envolvidos, seja pela possibilidade ou não de determinação dos seus titulares ou mesmo pela (in)divisibilidade do objeto de direito material envolvido.

Nesse aspecto, considerando os aspectos subjetivos e objetivos envolvidos, inserem-se os direitos coletivos em sentido amplo, catalogados pelo legislador e pela doutrina em subespécies que compreendem os direitos difusos, os direitos coletivos em sentido amplo e os direitos individuais homogêneos.

O pano de fundo que cerca a tutela coletiva de direitos passa em um primeiro momento pela leitura do direito processual sob a perspectiva constitucional. A Constituição cidadã de 1988 disponibiliza, ainda que de forma dispersa em um texto analítico, mecanismos processuais tendentes a assegurar a efetividade do direito material.

Ao atribuir a entes coletivos, como os sindicatos, as associações e ao próprio Ministério Público a legitimidade para postular em Juízo a tutela de direitos metaindividuais, é rompida de certo modo a tradição individualista do processo, que é marcada pela pulverização de demandas individuais, inábeis a evitar que novas situações de violações de direitos viessem a se repetir no futuro.

No âmbito das relações trabalhistas, as ações coletivas ganham importância capital diante de uma realidade de violações de direitos, que não raro transcendem a esfera individual do trabalhador.

O incremento das demandas individuais constitui um dos elementos contributivos ao retardamento e da própria ausência de efetivi-dade da prestação jurisdicional. A morosidade e a inefetividade no exercício da Jurisdição contrapõe-se ao princípio fundamental da duração razoável do processo, o que refiete em outro princípio de igual envergadura constitucional: o do acesso à justiça compreendido tanto sob a perspectiva formal e quanto sob o aspecto material1.

Não raro diversos trabalhadores deixam de ingressar com demandas individuais para reivindicar direitos sonegados durante a relação de emprego e, mesmo em relação àqueles que ajuízam suas ações, deparam-se com decisões contraditórias diante do mesmo suporte fático apresentado a órgãos julgadores distintos, o que compromete a pacificação dos confiitos sociais.

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Assinala Pedro da Silva Dinamarco2 que a visão tradicional do processo civil individualista deve ser reavaliada diante dos confiitos de natureza metaindividuais existentes nas sociedades de massa.

As ações coletivas, ou ações "sem rosto"3, no âmbito das relações de trabalho ganham importância como mecanismo assecuratório do acesso à justiça. No entanto, o simples reconhecimento do direito material violado não é capaz por si só de restaurar o status quo violado. Medidas executivas, a serem tomadas na fase de execução do processo, revelam-se necessárias para assegurar a efetividade do comando condenatório fruto da fase de cognição processual.

A fase executiva tendente à realização prática do direito material coloca em discussão diversas controvérsias acerca da competência do Juízo. Em razão da delimitação do objeto em estudo, deteremos à investigação acerca da natureza jurídica da competência para execução individual ou coletiva, envolvendo direitos metaindividuais reconhecidos em sentenças proferidas em ações civis públicas ou outras ações coletivas manejadas pelos legitimados extraordinários.

Para responder à indagação, abordar-se-á no primeiro momento os princípios constitucionais aplicáveis ao processo, dentre os quais o do acesso à justiça, em suas vertentes material e formal, o da efetividade da prestação jurisdicional e o da proteção ao trabalhador.

Apresentados os princípios constitucionais que devem nortear a interpretação do direito processual, serão apresentadas as vias de liquidação das sentenças coletivas para, então, partir para a investigação acerca do Juízo competente a fim de processar e julgar a execução desse título judicial.

2. As ações coletivas à luz dos princípios constitucionais
2.1. O acesso à justiça como direito fundamental

A interpretação limitada à literalidade do art. 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988, pode provocar conclusões precipitadas e, consequentemente, imprecisas, acerca do verdadeiro alcance do princípio fundamental do acesso à justiça.

Em uma primeira perspectiva, tomada a partir da interpretação literal do dispositivo constitucional, o princípio fundamental do acesso à justiça confunde-se com a própria inafastabilidade do controle jurisdicional, onde qualquer lesão ou ameaça de lesão a direito pode ser levada ao conhecimento do Poder Judiciário para a solução da controvérsia.

Essa noção do princípio do acesso à justiça é construída a partir de uma visão da igualdade sob o prisma formal, decorrente da concepção liberal na interpretação do direito. A mesma, não obstante conter uma relevante perspectiva interpretativa, é eivada de diversas limitações e pouco contribui para a efetividade do princípio do acesso à justiça.

Nesse sentido, acentuam Cappelletti e Garth4, em estudo específico sobre esse princípio fundamental, que "o acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva".

O adágio da isonomia de tratamento perante a lei permite tão somente que aqueles que tiverem o exercício de seus direitos violados possam socorrer do Estado-juiz para, substituindo a vontade dos envolvidos no confiito, aplicar o direito material ao caso concreto pacificando os confiitos.

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Acerca da acessibilidade formal, valiosas são as lições de Paulo Cézar Pinheiro Carneiro5, quando preceitua que:

A acessibilidade pressupõe a existência de pessoas, em sentido lato (sujeitos de direito), capazes de estar em juízo, sem óbice de natureza financeira, desempenhando adequadamente o seu labor (manejando adequadamente os instrumentos legais judiciais e extrajudiciais existentes), de sorte a possibilitar, na prática, a efetivação dos direitos individuais e coletivos, que organizam uma determinada sociedade.

Essa perspectiva, aqui denominada como acesso formal à justiça, ainda que correta, sob o ponto de vista da dogmática jurídica, revela ser insuficiente para a análise compreensiva do referido princípio constitucional. Assevera, nessa mesma direção, Kazuo Watanabe6 quando afirma que o acesso à justiça deve ser compreendido "não apenas como garantia de acesso ao Judiciário, mas como garantia de acesso à ordem jurídica justa, de forma efetiva, tempestiva e adequada".

Assim, ainda que no paradigma do Estado liberal burguês7, a preocupação com o acesso à justiça cingia-se ao campo de assegurar àqueles que não tivessem o bem da vida ou prestação espontaneamente entregue, ou mesmo o direito de se defender contra uma injusta pretensão o direito de acionar o Poder Judiciário, dentro dos paradigmas do Estado social e democrático de direito, este no qual se insere a Constituição cidadã de 1988, o princípio fundamental em apreço deve ser cotejado a partir da visão subs-tancial de outro princípio de igual envergadura normativa, qual seja, o princípio da igualdade material.

A igualdade material, como acentuado por Carlos Henrique Bezerra Leite:

(...) visa assegurar tratamento equânime e uniforme de todos os seres humanos, assim por dizer, no tratamento equiparado na possibilidade de acesso a todos os bens da vida, proporcionando, dessa forma, a igualdade real e efetiva de todos.8

A isonomia, ao ser analisada em perspectiva substancial, permite ao intérprete do inciso XXXV do art. 5º da Constituição de 1988 reconhecer que o acesso à justiça material, diante de demandas envolvendo direitos metaindividuais, tem como objetivo fundamental assegurar a todos os envolvidos no confiito a efetiva prestação jurisdicional, independentemente de constarem ou não expressamente no rol de substituídos processuais que podem acompanhar a petição inicial9.

Com efeito, a necessidade de superação da igualdade formal de cunho liberal para uma perspectiva substancial-inclusiva de viés democrático, autoriza a evolução da tradicional visão de acessibilidade à justiça associada ao simples e puro acesso ao Poder Judiciário para uma noção de acesso pleno (ou integral), consubstanciado na garantia de entrega do bem da vida lesado ao seu titular, ainda que quem esteja formalmente no polo ativo da ação seja um ente coletivo, como o Ministério Público, os sindicatos ou as associações de trabalhadores.

Caminhando nesse mesmo sentido, obtempera José Roberto dos Santos Bedaque que "o processo deve ser não só assegurado a todos,

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mas representar instrumento apto a conferir tutela a quem realmente fizer jus a ela"10.

A acessibilidade material à justiça, em situações envolvendo direitos de expressão metaindividual dos trabalhadores, tem refiexos inclusive de natureza extraprocessual na redução das diferenças sociais, eleita pelo poder constituinte originário como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil em seu art. 3º, já que a partir da garantia de direitos fundamentais trabalhistas é assegurado ao trabalhador a construção de sua identidade como sujeito constitucional11.

Nesse sentido, a interpretação das regras processuais acerca da competência executória das demandas coletivas, como veremos mais adiante, deve ser feita em consonância com a perspectiva inclusiva do...

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