Estudo jurídico sobre o preço de compartilhamento de infra-estrutura de energia elétrica

AutorProf. Carlos Ari Sundfeld
CargoProfessor Doutor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público. Sócio de Sundfeld Advogados S/C.
Páginas1-22

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O presente estudo tem por objeto analisar a regulação do preço para cessão de infra-estrutura de empresas de energia elétrica. Quer-se saber se é juridicamente cabível a regulação do preço para cessão de infra-estrutura (postes) de empresa de energia elétrica, inclusive com a prévia definição, pelo órgão regulador, do montante desse preço.

A questão a ser enfrentada, pois, é se as empresas distribuidoras de energia elétrica são livres para negociar o preço dos postes e, caso sejam, quais são os eventuais parâmetros legais e regulatórios que elas devem observar na formação do preço.

I - O compartilhamento de infra-estrutura entre prestadoras de serviço público

É fato que as empresas concessionárias do serviço público de energia elétrica têm celebrado diversos contratos com operadoras do serviço de TV a Cabo e também de telecomunicações em geral, por intermédio dos quais é cedida infra-estrutura (postes) para que estas operadoras construam a rede necessária à implantação dos respectivos sistemas de prestação de serviço. Page 2

Essa prática, que se convencionou denominar compartilhamento de infra-estrutura, não é nova. É comum que a estrutura construída e concebida para um determinado serviço público venha a ser utilizada como suporte de um outro. Assim ocorreu, por exemplo, com as estradas de ferro, cuja estrutura serviu de apoio para implantação das primeiras redes de telecomunicações, utilizadas para o telégrafo; com as rodovias, que emprestavam espaço para implantação de postes de transmissão de energia elétrica, de gasodutos, etc. Enfim, existem várias situações, facilmente encontráveis no cotidiano, que podem ser lembradas para confirmar quão comum é o uso compartilhado de infra-estrutura entre prestadoras de serviços públicos.

A finalidade que norteia o compartilhamento de infra-estrutura é fácil perceber. Trata-se de mecanismo por intermédio do qual se potencializa a utilidade de uma determinada estrutura, que passa a atender, além da atividade principal para a qual foi concebida, outras atividades de utilidade pública.

Por esse meio, os custos de criação e manutenção dessas infra- estruturas tornam-se economicamente mais brandos, pois passam a ser diluídos entre várias atividades distintas. Justamente por isso, por proporcionar um custo geral menor na prestação do serviço, entende-se que um dos possíveis objetivos do compartilhamento de infra-estrutura é permitir a cobrança de tarifas mais baixas dos usuários, uma vez que haverá um custo proporcionalmente menor a amortizar. Tanto assim que é lícito ao concessionário buscar fontes provenientes de receitas alternativas com vistas a favorecer a modicidade das tarifas.

Em determinadas situações, a importância do compartilhamento é ainda maior. São casos em que o serviço não tem como, isoladamente, viabilizar a criação ou expansão da própria infra-estrutura, depende, por conseqüência, de recursos materiais de terceiros para existir em determinada área ou localidade. Isto pode ocorrer, em linhas gerais, em razão de duas circunstâncias: a) quando a criação de uma infra-estrutura exclusiva torna inviável a exploração econômica do serviço; ou b) quando faltem meios físicos suficientes para a instalação de uma nova estrutura autônoma.

Como se vê, o compartilhamento de infra-estrutura, em maior ou menor medida, tem considerável importância na prestação de serviços públicos. Não é para menos que, quase sempre, é possível constatar profunda intervenção estatal nesta matéria. Todavia, o modo pelo qual essa intervenção se processa pode variar de acordo com o modelo de prestação de serviços públicos adotado. No Brasil esta variação foi evidente.

Até bem pouco tempo, o emprego desta metodologia se processava de modo quase que natural. Os diversos serviços públicos eram prestados por entidades estatais, integrantes da chamada Administração direta ou indireta. Nesse contexto, as infra-estruturas eram compartilhadas não por força regulamentar, mas por pura e simples decisão do titular e prestador dos serviços, o Estado. Page 3

Como gestor das entidades prestadoras de serviços públicos e responsável pelos investimentos para a instalação das infra-estruturas, o Estado decidia que destinação dar à infra-estrutura que construira e que lhe pertencia. Além desse, por assim dizer, processo de decisão interna, existiam, quando muito, acordos entre diferentes unidades da Federação (União, Estados e Municípios), mas que também não passavam de decisões de índole político-governamental, distintas das primeiras apenas por envolverem mais de uma esfera de poder.

Esse quadro de intervenção direta do Estado na destinação das diversas infra-estruturas de base para os serviços públicos mudou. Deveras, com o avançado processo de privatização implementado no país, a titularidade ou, quando menos, a gestão desses bens de suporte foi transferida a particulares. O centro de decisão estratégico, por intermédio do qual se definia a destinação a dar a determinado bem, também foi transferido do Estado para a iniciativa privada.

Com isso, todavia, não se está a dizer que a disciplina deste assunto, comprovadamente essencial para a manutenção dos serviços públicos, tenha sido simplesmente transferida aos particulares. A transferência da titularidade ou gestão desses bens não significa necessariamente a ausência de intervenção estatal. A intervenção permanece, como não poderia deixar de ser, mas só que estabelecida de outra maneira. Se antes o Estado conduzia a política de compartilhamento de infra-estrutura por intermédio de sua atuação direta, como gestão do próprio bem a ser compartilhado, agora, após a privatização, sua atuação é como agente regulador, na qualidade de ente titular do serviço a ser prestado, que tem entre suas competências a de regulamentar o modo de prestação e a utilização da infra-estrutura que lhe dá suporte.1

Neste novo contexto, qualquer estudo sobre o compartilhamento de infra-estrutura impõe analisar o enquadramento legislativo do problema, para que, no específico aspecto do preço, sejam identificados os poderes e limites da atuação do Estado-Regulador sobre a cessão dos postes pelas empresas de energia elétrica. Page 4

II - Aplicabilidade do art 73 da LGT

Hoje a legislação brasileira regula expressamente o tema do compartilhamento de infra-estrutura. Esta preocupação encontra-se na Lei Geral de Telecomunicações - LGT (Lei n.º 9.472, de 16 de julho de 1997). Confira-se seu art. 73:

"Art. 73. As prestadoras de serviços de telecomunicações de interesse coletivo terão direito à utilização de postes, dutos, condutos e servidões pertencentes ou controlados por prestadora de serviços de telecomunicações ou de outros serviços de interesse público, de forma não discriminatória e a preços e condições justos e razoáveis.

Parágrafo único. Caberá ao órgão regulador do cessionário dos meios a serem utilizados definir as condições para adequado atendimento do disposto no caput."

O dispositivo elimina a discussão em torno da existência ou não, em favor das empresas de telecomunicações, do direito ao uso da infra-estrutura construída para servir de base à prestação do serviço de energia elétrica. De fato, o art. 73 da LGT reconhece a existência de um direito subjetivo das prestadoras de "serviços de telecomunicações de interesse coletivo" ao uso compartilhado da infra-estrutura.2

A partir da edição da LGT não resta dúvidas de que as empresas de telecomunicações "de interesse coletivo" têm um direito subjetivo oponível aos detentores de infra-estruturas, sejam eles prestadores de serviços de telecomunicações ou de outros serviços de interesse público.3 Page 5

Com base no art. 73 da LGT é possível afirmar que as empresas de energia não podem negar, às empresas de telecomunicações de "interesse coletivo", o acesso à sua própria infra-estrutura. A fórmula concebida pela LGT impõe às empresas detentoras dos meios o dever de tratar as interessadas "de forma não discriminatória" e lhes dá direito de cobrar apenas "preços e condições justos e razoáveis". Quanto ao dever de "não discriminação", são vários os problemas que dele podem surgir. Mas o escopo específico deste estudo requer análise detalhada da imposição de compartilhamento a preços "justos e razoáveis", o que será feito em tópico próprio.

Antes, porém, tem relevância identificar como o serviço de TV a Cabo se insere no art. 73 da LGT, já que seus prestadores têm solicitado o uso compartilhado da infra-estrutura das empresas de energia.

Importante lembrar que o regime legal desse serviço precedeu a LGT, havendo sido disposto na Lei n.º 8.977, de 6 de janeiro de 1995. Mesmo os prestadores que receberam outorgas e entraram em operação antes da lei foram por ela atingidos, devendo adaptar-se a seus preceitos (vejam-se os seus arts. 42 e 43). O advento da LGT não revogou nem prejudicou a aplicação da Lei n.º 8.977/95, a qual foi expressamente mantida em vigor pelo art. 212 da LGT.

Quanto ao uso da infra-estrutura alheia, a Lei n.º 8.977/95 não contém dispositivo semelhante ao art. 73 da LGT.4 Diante da omissão da lei específica, as prestadoras do serviço de TV a Cabo são ou não beneficiadas pelo art. 73 da LGT?

Não há resposta direta na legislação, devendo-se buscá-la por meio de uma interpretação sistemática. O art. 73 da LGT beneficia declaradamente as prestadoras de serviços de telecomunicações "de interesse coletivo", conceito esse introduzido pela lei, em seu art. 62, e desenvolvido pela ANATEL em sua regulamentação (art. 69). Page 6

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