Comentários Sobre o HC 124.306/STF, Aborto no Primeiro Trimestre, e Acerca da ADI 8851, Aborto de Feto Microcefálico

AutorLeonardo Alves de Oliveira
CargoEspecialista em Direito Administrativo e em Direito Constitucional. Assessor de Gabinete da 1a. Vara Especializada da Família e Sucessões (Rondonópolis/MT)
Páginas20-24

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1. Introdução

Os últimos dias do ano de 2016 foram marcados por eventos de grande impacto no cenário pátrio. Na madrugada do dia 29 de novembro de 2016 ocorreu o maior desastre mundial aéreo envolvendo atletas da equipe brasileira Associação Chapecoense de Futebol, vitimando 71 pessoas, entre elas jogadores, membros da comissão técnica e jornalistas, além da tripulação da aeronave. Poucos dias depois, em sessão plenária que também se arrastou até a madrugada, no dia 30 de novembro de 2016, a Câmara dos Deputados editou doze emendas ao projeto de lei original 4.850/161, intitulada de Lei Anti-corrupção, entre as quais há dispositivos bastante questionáveis, quiçá contrariando a nomenclatura do próprio projeto normativo. Além desses dois fatos, também no mesmo período (29.11.2016) ocorreu o julgamento do HC 124.306/STF, que causou grande comoção nacional, sobretudo por conta da repercussão midiática criada em torno do caso, noticiando-se literalmente2,3 como sendo a autorização por parte do Supremo Tribunal Federal para realização de aborto até o terceiro mês de gestação.

2. Desenvolvimento e análise do tema
2. 1 HC 124 306: breve escorço do caso paradigmático

O caso concreto em testilha se trata de um habeas corpus, com pedido de tutela de urgência, manejado em face de acórdão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que não concedeu o writ no remédio constitucional 290.341/RJ.

Extrai-se que os impetrantes mantinham clínica de aborto e fo-ram presos em fiagrante, em 14 de março de 2013, devido à suposta prática dos crimes descritos nos arts. 126 e 288 (aborto e formação de quadrilha, respectivamente), ambos da lei substantiva penal. Na data de 21 de março de 2013, o Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de Caxias/RJ concedeu a liberdade provisória aos pacientes. Contudo, a toda evidência, em 25 de fevereiro de 2014, a 4ª Câmara Criminal do TJ/RJ proveu recurso em sentido estrito interposto pelo parquet do Estado do Rio de Janeiro para decretar a prisão preventiva dos pacientes, com fundamento na garantia da ordem pública e na necessidade de assegurar a aplicação da lei penal, pressupostos do art. 312 do Código de Processo Penal. Assim, em seguida, os impetrantes se valeram de HC no STJ, que não foi conhecido pela corte da cidadania, que concluiu não ser ilegal o encarceramento na hipótese em apreço4.

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Irresignados, os supostos auto-res da prática delituosa muniram-se de novo habeas corpus, como narrado acima, impetrado junto ao Supremo Tribunal Federal, sob o número 124.306, no qual alegam que não estão presentes os requisitos necessários para a decretação de prisão preventiva, além de sustentar que são primários, com bons antecedentes e têm trabalho e resi-dência fixa, aduzindo que a custó-dia cautelar é desproporcional, já que eventual condenação poderá ser cumprida em regime aberto, sendo que sequer houve qualquer tentativa de fuga dos pacientes du-rante o fiagrante.

O relator da ação, ministro Marco Aurélio, em 8 de dezembro de 2014, deu guarida à medida de urgência postulada em benefício dos acusados. O Ministério Público, por sua vez, opinou pelo não conhecimento do pedido e pela denegação da ordem, cassando-se a liminar deferida em favor dos réus. Ao final, no julgamento, a 1ª Tur-ma da corte suprema, por maioria de votos, concedeu a ordem, de ofício, nos termos do voto do ministro Luís Roberto Barroso, presidente e redator para o acórdão, em 29 de novembro de 20165.

2. 2 HC 124 306: fundamentos da decisão

O voto do ministro Luís Roberto Barroso, seguido pela maioria de seus pares da 1ª Turma do STF, definiu o desfecho do caso em co-mento e sacramentou a concessão da liberdade aos acusados da prática dos crimes de aborto e associação criminosa. Tal deliberação levou em consideração diversos temas, jurídicos e sociais, e até mesmo normas de direito comparado, tudo extraído das fundamentações insertas no aludido voto6.

De proêmio, entendeu-se que a ordem de prisão preventiva não indicou elementos pormenorizados que evidenciassem a real necessidade da segregação cautelar ou mesmo o risco efetivo de reiteração delitiva pelos impetrantes, estando ausentes os pressupostos do art. 312 do CPP, que fixa os pa-râmetros para a prisão preventiva.

Pontuou-se, ainda, que a decisão impugnada, de lavra do Superior Tribunal de Justiça, se limitou a argumentar abstratamente a gravidade do crime em si, assim como a assegurar a aplicação da lei penal; contudo, conforme asseverou o referido ministro, não havia substrato suficiente para verificar intenção de fuga dos réus, tampouco risco ao processo ou à instrução criminal, que tem transcorrido normalmente.

No entanto, é certo que o ponto nevrálgico do decisum sob análise se refere à inconstitucionalidade da criminalização da interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. No julgamento do Habeas Corpus 124.306, o órgão fracionário da corte máxima pátria dispôs que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação é desproporcional com os valores constitucionais, ponderando, inclusive, que se trataria de uma violação aos direitos fundamentais da própria mulher/genitora.

Nesse sentido, sustentou a decisão suprarreferida que a criminalização do aborto inicialmente fere a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana, entendendo-se autonomia como um espaço legítimo de intimidade/ privacidade presente no âmago de qualquer pessoa segundo o qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos, não cabendo ao Estado e à sociedade interferir.

Em especial, quando se trata de uma mulher, um aspecto nodal de sua autonomia é a faculdade de controlar o próprio corpo e de tomar as próprias decisões a ele relacionadas, inclusive...

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