Comentários à ADPF nº 101: O caso dos pneus remoldados

AutorPedro Augusto de Almeida Mosqueira
CargoBacharelando em Direito pela Universidade Federal Fluminense, cursando atualmente o 5º período
Páginas108-121

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I Introdução

O debate em torno do meio ambiente é uma das grandes questões do século XXI. Após milênios de devastação da natureza, o homem finalmente percebe que os recursos naturais não são inesgotáveis e que uma atitude irresponsável em relação ao meio ambiente pode resultar em danos relevantes para a vida humana.

Julgada em 2009, a ADPF nº 101 2 foi o primeiro grande caso brasileiro relacionado a normas de direito ambiental no comércio exterior. Diante da grande repercussão na impressa desta argüição e do envolvimento de grandes interesses econômicos e ambientais, foi convocada pelo STF uma audiência pública com representantes dos dois lados divergentes 3 .

Como talvez possa ser deduzido, o debate jurídico nesta questão ateve-se ao conflito entre o direito ao meio ambiente e a atividade econômica, principalmente quando estaPage 109é influenciada por interesses estrangeiros. Em um mundo cada vez mais globalizado, esta provavelmente não será a última vez que veremos um grande caso sobre este conflito.

II O histórico do caso

De acordo com exordial, em 14 de Maio de 1991 o Departamento de Comércio Exterior editou norma legal no Brasil proibindo a importação de bens de consumo usados, entre os quais os pneus usados. Esta norma, editada por portaria, teve sua constitucionalidade reconhecida pelo STF com base no art. 237 da Constituição Federal, que expressamente submeteu ao Ministério da Fazenda, órgão à época que detinha a atribuição legal acerca da matéria, ―A fiscalização e controle do comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais (...)‖.

Posteriormente, em 12 de dezembro de 1996, o CONAMA, com base nos princípios adotados na Convenção da Basiléia sobre o Controle de Movimentos Transfronteiriços de Resíduos Perigosos, editou a Resolução nº23, por intermédio da qual fez constar expressamente, em seu art. 4º, a vedação já existente de importação de pneus usados, em reforço à ampla proibição constante da Portaria DECEX, porém naquele caso a proibição sendo fundamentada em questões ambientais e não de interesses fazendários nacionais.

Insatisfeito com a proibição, o Uruguai, país membro do Mercosul, moveu ação contra o Brasil no Tribunal Arbitral ad hoc do bloco, em que se reconheceu o direito de países do Mercosul de exportar para o Brasil pneus remoldados (espécie de pneu usado). Visando dar cumprimento ao laudo arbitral proferido em favor do Uruguai, o Brasil se viu obrigado a editar a Portaria SECEX nº 02, de 08 de Março de 2002, admitindo a importação de pneus remoldados de países oriundos do Mercosul. O CONAMA fez o mesmo, editando a Resolução nº 301/02.

Também, a fim de ajustar a legislação administrativa punitiva aos termos do laudo arbitral, o Decreto nº 4592, de 11 de fevereiro de 2003, alterou o Decreto nº 3179/99, harmonizando a legislação administrativa com a decisão do Mercosul.

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Apesar da expressa proibição à importação de pneus usados, com exceção daqueles provenientes de países do Mercosul, a proteção da saúde pública vinha sendo ameaçada por uma série de decisões judiciais que vinham autorizando a importação de pneus usados provenientes de países não integrantes do Mercosul. Essas decisões se baseavam principalmente nos seguintes argumentos:

  1. ofensa ao regime constitucional de livre iniciativa e da liberdade de comércio (art. 170, IV, parágrafo único, da CF/88);

  2. ofensa ao princípio da isonomia (art. 5º, caput, da CF/88), uma vez que o Poder Público estaria autorizando a importação de pneus remoldados provenientes de países não integrantes do Mercosul.

III Da ponderação de princípios

Diante do conflito entre o direito fundamental à saúde da coletividade e a um meio ambiente e o direito à livre iniciativa e liberdade de comércio, temos um ―claro confronto entre um interesse público consubstanciado em uma meta coletiva (saúde e meio ambiente equilibrado) e um interesse público que se realiza mediante a garantia de um direito fundamental (livre iniciativa).‖ 4

Para adequar a norma jurídica da melhor forma possível ao caso concreto, devemos, então, usarmos a técnica da ponderação de princípios.

Ao propor uma ponderação entre dois direitos, devemos primeiramente ter em mente que o âmbito de proteção de certo direito não é cristalino, imutável. Sua definição depende de uma interpretação sistemática, abrangente de outros direitos e disposições constitucionais 5 . Como Canotilho explica, para a definição do âmbito de proteção da norma constitucional garantidora de direitos, devemos ter em vista:

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  1. a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa proteção (âmbito de proteção da norma);

  2. a verificação das possíveis restrições contempladas, expressamente, na Constituição (expressa restrição constitucional) e identificação das reservas legais de índole restritiva.

Vemos, desde já, que para melhor solução de uma controvérsia devemos nos preocupar com duas situações distintas: o direito e a restrição. Se direito e restrição são duas categorias que se deixam distinguir lógica e juridicamente, então existe, a princípio, um direito não limitado, que, com a imposição de restrições, converte-se num direito limitado (eingeschränktes Recht). É preciso não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas. Esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial do direito fundamental quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas. 6

Adotando a chamada teoria relativa (relative Theorie), entendem que o núcleo essencial há de ser definido para cada caso, tendo em vista o objetivo perseguido pela norma de caráter restritivo. O núcleo essencial seria aferido mediante a utilização de um processo de ponderação entre meios e fins, com base no princípio da proporcionalidade. O núcleo essencial seria aquele mínimo insuscetível de restrição ou redução com base nesse processo de ponderação. Segundo essa concepção, a proteção do núcleo essencial teria significado marcadamente declaratório. 7

Ao analisar o direito a livre iniciativa e liberdade de comércio, devemos ter em mente que a Constituição foi muito clara ao restringir sua ação, na medida em que ela fere a saúde pública e o meio ambiente. Explica Barroso:

“A próxima etapa da ponderação é a apuração dos pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupoPage 112de normas que deve preponderar no caso. Em seguida, será preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada.” 8

“A ponderação, como estabelecido acima, socorre-se do princípio da razoabilidade-proporcionalidade para promover a máxima concordância prática entre os direitos em conflito. Idealmente, o intérprete deverá fazer concessões recíprocas entre os valores e interesses em disputa, preservando o máximo possível de cada um deles. Situações haverá, no entanto, em que será impossível a compatibilização. Nesses casos, o intérprete precisará fazer escolhas, determinando, in concreto, o princípio ou direito que irá prevalecer.” 9

Para efetiva atribuição de pesos ao conflito entre as duas normas fundamentais em questão, devemos nos ater, então, às conseqüências de sua utilização. Não enfrentamos dificuldades ao analisar a adequação e necessidade da medida tomada pelo Estado brasileiro, porém é difícil apreciação a proporcionalidade em sentido...

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