Os combatentes nos conflitos armados internacionais e suas proteções

AutorGustavo Sénéchal de Goffredo
CargoProfessor de Direito Internacional Público na PUC-Rio. Doutor em Direito Internacional pela UERJ e Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-Rio.
Páginas174-212

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Introdução

É somente com a criação da ONU que o uso da força fica proibido na ordem internacional, conforme determina o artigo 2º, alínea 4 da Carta. O mesmo documento admite exceções, expressas na competência do Conselho de Segurança diante de ameaça ou ruptura da paz ou atos de agressão (artigo 42) e no exercício do direito à legitima defesa, autorizado pelo artigo 51.

Entretanto, a interdição do uso da força não inibiu a ocorrência de inúmeros conflitos armados, não só por sua admissão nas guerras de descolonização, através de inúmeras resoluções da Assembléia Geral, mas também pela paralisia do Conselho de Segurança durante a Guerra Fria.

A situação não é diferente com o fim da Guerra Fria. Após a ação do Conselho de Segurança na Guerra Iraque-Kuwait verifica-se um recrudescimento dos conflitos armados, internacionais ou não internacionais e a inibição daquele órgão diante de tais situações.

Neste sentido, um dos ramos do direito Internacional cuja importância de estudo, divulgação e, principalmente, de aplicação se torna cada vez fundamental é o Direito Internacional Humanitário (DIH).

O objetivo do presente trabalho é analisar alguns aspectos do DIH, no que diz respeito à identificação do combatente, especificamente, o legítimo, assinalando os meios de proteção que lhes são garantidos pelo direito diante de conflitos armados.

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1. A identificação convencional do combatente

A limitação ou a interdição do uso da força é conseqüência de uma longa evolução normativa no Direito Internacional. Nesse sentido, merecem ser lembrados os esforços das Conferências da Haia de 1899 e 1907, para estabelecer as bases para a solução pacífica das controvérsias e, ao mesmo tempo, disciplinar a guerra entre os Estados.

Ao contrário do que pode parecer, os objetivos das Conferências não são antagônicos, pois, naquele período, o recurso à guerra constituía uma decisão soberana e lícita dos Estados. Assim, a construção de mecanismos de solução pacífica de controvérsias buscava evitar o uso da força na ordem internacional e, se falidos tais esforços, o recurso à guerra merecia ter limites quanto aos métodos e meios de condução dos combates.

Nessa linha de raciocínio, SALCEDO1 afirma que pudiera parecer paradójico que unas Conferencias denominadas de la paz se ocuparan tan ampliamente de la regulación de guerra pero es que, como se ha dicho autorizadamente, aunque surgidas de un deseo de paz, las Conferencias de la Haya de 1899 y 1907 obedecieron a una de las lecciones de la historia: para eliminar la guerra es preciso comenzar por darle normas, por regulamentarla, a fin de contribuir a la consolidación jurídica de la idea civilizadora de que en la guerra son lícitos los médios que conduzcan a la derrota del adversário siempre que tales médios no se opongan a prohibiciones establecidas por normas jurídicas internacionales.

O Regulamento Concernente às Leis e Usos da Guerra terrestre, anexo à Convenção para o mesmo fim adotada em 1899, é o primeiro documento que identifica a figura do combatente ao circunscrever a sua aplicação não somente aos exércitos, mas também às milícias e aos corpos de voluntários, sob condição de serem liderados por pessoa responsável pelos subordinados, exibirem distintivo fixo e visível, portarem armas e obedecerem às leis e usos da guerra. Estende, ainda, o Regulamento a condição de beligerante à população de um território não ocupado que, sem conseguir organizar-se, pega em armas para combater as tropas invasoras. A mesma identificação de combatente é repetida no Regulamento de 1907.

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A Convenção Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra, de 1929, reporta-se ao conceito de combatente do Regulamento da Haia de 1907 e estende a sua proteção aos membros das forças armadas capturados no decurso de operações de guerra marítima e aérea, atendendo à nova realidade dos conflitos armados.

A Convenção de Genebra de 12 de agosto de 1949, Relativa ao Tratamento dos Prisioneiros de Guerra (III Convenção)2 identifica, no artigo 4 A, alíneas 1, 2, 3 e 6, identifica os combatentes por ela amparados, ao caírem em poder da força inimiga:

1) membros das forças armadas de uma Parte em conflito, assim como os membros das milícias e dos corpos de voluntários pertencentes a essas forças armadas;

2) membros de outras milícias ou de outros corpos de voluntários, incluindo os dos movimentos de resistência organizados, pertencentes a uma Parte em conflito, que operem fora ou no interior de seu próprio território, mesmo quando ocupado, desde que essas milícias ou corpos de voluntários, incluindo os movimentos de resistências organizados, satisfaçam as seguintes condições:

  1. sejam comandados por uma pessoa responsável por seus subordinados;

  2. possuam um sinal distintivo fixo e reconhecível à distância;

  3. tragam armas à vista;

  4. respeitem, em suas operações, as leis e costumes da guerra;

3) membros das forças armadas regulares a serviço de um Governo ou de uma autoridade que não seja reconhecida pela Potência detentora;

(...)

6) a população de um território não-ocupado que, à aproximação do inimigo, pegar espontaneamente em armas para combater as tropas invasoras, sem ter tempo de organizar-se em forças armadas regulares, desde que traga à vista e respeite as leis e costumes da guerra.

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Por sua vez, o Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, Relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais (Protocolo I), de 1977, expressa, no artigo 43 que

As forças armadas de uma Parte em conflito se compõem de todas as forças, as unidades e os grupos armados e organizados, colocados sob um comando responsável pela conduta de seus subordinados diante dessa Parte, mesmo que essa Parte seja representada por um governo ou uma autoridade não reconhecida pela Parte adversa. Essas forças armadas devem ser submetidas a um regime de disciplina interna que assegure particularmente o respeito às regras do direito internacional aplicável nos conflitos armados.

Diante das inúmeras peculiaridades das pessoas envolvidas nos conflitos armados e seguindo com alterações a sistematização de Funes3, podem-se identificar as seguintes categorias de combatentes:

1) combatentes legítimos, que podem ser regulares, excepcionais e anômalos; e

2) combatentes ilegítimos, integrados pelos espiões, mercenários, franco-atiradores, sabotadores e terroristas. Para os propósitos deste trabalho, interessa analisar as tipificações dos combatentes em conflitos armados internacionais e as formas de proteção que lhes são garantidas pelo Direito Internacional Humanitário.

1. 1 Combatentes legítimos

Combates legítimos são os que, ao cumprirem os requisitos legais, individuais e coletivos, têm “direito de participar diretamente das hostilidades”, nos termos do artigo 43, 2, do Protocolo I, de 1977.

Segundo as Convenções de Genebra de 1949 (artigo 13, das Convenções I e II e artigo 4º, da Convenção III), os membros das forças armadas gozam da óbvia presunção de que são combatentes legítimos. Em relação às milícias, membros de corpos de voluntários e os integrantes dos movimentos de resistência organizados, os textos genebrinos impõem exigências coletivas que são a submissão a um comando responsável e o respeito às leis e costumes da guerra, e individuais, quePage 178compreendem o uso de sinal fixo e reconhecível à distância e portar armas à vista.

Mencione-se, ainda, que o Protocolo I acrescentou à lista dos combatentes legítimos, os guerrilheiros, cuja ação bélica permite, implícita e provisoriamente, a falta de distinção em relação à população civil.

1.1. 1 Combatentes regulares

Os combatentes regulares são os membros das forças armadas das Partes em conflito ou os a eles assimilados que participam dos combates de forma tradicional.

(A) Os membros das forças armadas, incluídos os membros das milícias e corpos de voluntários a elas integrados, excluídos o pessoal sanitário e religioso

A composição das forças armadas compreende contingentes terrestres, marítimos e aéreos. A forma de recrutamento de seus integrantes é da competência exclusiva do Estado.

A restrição relativa a critério de idade de recrutamento foi estabelecida pelo artigo 77, 2 do Protocolo I, ao expressar que

As Partes em conflito tomarão todas as medidas possíveis na prática para que as crianças de menos de 15 anos não participem diretamente das hostilidades, abstendo-se em particular de as recrutar para as suas forças armadas. Quando incorporarem pessoas de mais de 15 anos e menos de dezoito, as Partes em conflito se empenharão em dar prioridade aos mais velhos.

O parágrafo 3 do mesmo artigo contempla a excepcionalidade de um menor de 15 anos participar das hostilidades, garantindo-lhe os direitos estabelecidos pelo mesmo dispositivo, independentemente de ser qualificado como prisioneiro de guerra.

Na mesma linha de proteção está a Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada em 20 de novembro de 1989, pela Assembléia Geral das Nações Unidas, que acompanha a mesma faixa etária do texto genebrino.

Embora o seu artigo 1 defina como criança “todo ser humano menor de 18 anos”, o artigo 38, 3 determina que

Os Estados Partes abster-se-ão de recrutar pessoas que não tenham completado quinze anos de idade para servir em suas forças...

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