Combate ao trabalho infantil nos planos global, regional e local

AutorFlávia Piovesan/Gabriela de Luca
CargoProfessora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/Advogada atuante na área de Direitos Humanos com bacharelado na PUC/SP e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário ? CEPEDISA da Faculdade de Saúde Pública da USP
Páginas13-34

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“As crianças abandonadas nas ruas, as crianças tragadas pela delinquência, o trabalho infantil, a prostituição infantil forçada, o tráfico de crianças para venda de órgãos, as crianças involucradas em conflitos armados, as crianças refugiadas, deslocadas e apátridas, são aspectos do quotidiano da tragédia contemporânea de um mundo aparentemente sem futuro (...) Todo meio social deve, assim, estar atento à condição humana. O meio social que se descuida de suas crianças não tem futuro (...).”

TRINDADE, A. A. Cançado. Opinião Consultiva n. 17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a respeito da Condição Jurídica e Direitos Humanos da Criança, p. 2 e 51

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1. Introdução

Como o trabalho infantil é enfrentado pela ordem normativa internacional? Qual é o alcance dos parâmetros protetivos mínimos adotados pela ONU e pela OIT visando à erradicação do trabalho infantil? Qual tem sido a resposta dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, nos âmbitos europeu, interamericano e africano, no combate ao trabalho infantil? Como tem se desenvolvido a jurisprudência regional sobre o tema? À luz dos parâmetros internacionais e regionais, como compreender a normatividade interna voltada ao combate ao trabalho infantil?

São estas as questões centrais que inspiram este estudo, que tem como maior objetivo enfocar a normatividade internacional e interna concernente ao combate do trabalho infantil. Ao simbolizar uma grave violação aos direitos humanos, o trabalho infantil nega o direito fundamental à infância, em afronta ao direito da criança e a ser criança, na qualidade de sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento, a merecer absoluta prioridade e primazia. Do direito da criança de não ser submetida ao trabalho decorrem, consequentemente, deveres dos Estados em prevenir, coibir e erradicar o trabalho infantil.

A prática do trabalho infantil é reflexo da desigualdade social e a perpetua, em um perverso ciclo vicioso, ao impedir que crianças alcancem pleno desenvolvimento físico, mental e social, além de predestiná-las a tornarem-se adultos com reduzida qualificação e precário grau de inserção no mercado de trabalho.

De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o trabalho é prejudicial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes nas seguintes condições: (I) aquele realizado em tempo integral, em idade muito jovem; (II) o de longas jornadas;
(III) o que conduza a situações de estresse físico, social ou psicológico; (IV) o que seja prejudicial ao pleno desenvolvimento psicossocial; (V) o exercido nas ruas em condições de risco para a saúde e a integridade física e moral das crianças; (VI) aquele incompatível com a frequência à escola; (VII) o que exija responsabilidades excessivas para a idade;
(VIII) o que comprometa e ameace a dignidade e a autoestima da criança, em particular quando relacionado com trabalho forçado e com exploração sexual; e (IX) trabalhos sub-remunerados.2A atual definição de trabalho infantil utilizada pela Unicef estabelece critérios específicos para diferentes faixas etárias:

(I) na faixa etária de 5 a 11 anos de idade, toda atividade empregatícia que ultrapasse 1 hora ou o trabalho doméstico que ultrapasse 28 horas por semana;

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(II) na faixa etária de 12 a 14 anos de idade, toda atividade empregatícia que ultrapasse 14 horas ou o trabalho doméstico que ultrapasse 28 horas por semana;

(III) na faixa etária de 15 a 17 anos de idade, toda atividade empregatícia ou doméstica que ultrapasse 43 horas por semana.3O relatório Progress for Children 2009 da UNICEF4 indica que, durante os últimos dez anos, houve significativo aumento de informações estatísticas sobre o trabalho infantil no mundo. Porém, o maior desafio ainda é tornar essas informações consistentes e comparáveis, pois são utilizados diferentes critérios e definições para documentar dados sobre trabalho infantil.

Nesse contexto, a 18ª Conferência Internacional de Estatísticas do Trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 20085 adotou a Resolução II, que estabeleceu uma nova definição de trabalho infantil. A definição inclui tanto atividades econômicas, como atividades domésticas (inclusive atividades domésticas não remuneradas). Nos termos da Resolução, “trabalho infantil” refere-se: (I) às piores formas de trabalho infantil, incluindo trabalho escravo, prostituição e pornografia, atividades ilícitas e atividades que apresentam riscos à saúde, segurança ou integridade moral, conforme a Convenção n. 182 da OIT; (II) todas as atividades empregatícias realizadas por menores de 15 anos de idade, conforme a Convenção n. 138 da OIT; e (III) atividades domésticas, incluindo afazeres domésticos realizados por longo período de horas, em ambiente insalubre, em localizações perigosas, ou com uso de equipamentos perigosos ou pesados.6De acordo com o último relatório da UNICEF, “Progress for Children 2009”,7estima-se em 150 milhões o número de crianças entre 5 e 14 anos de idade envolvidas em trabalho infantil. Os locais mais comuns para o trabalho infantil são pedreiras, plantações de café e de cana-de-açúcar, mineradoras, mercados de rua e residências — sendo que o trabalho doméstico é realizado especialmente por meninas.

Os dados indicam que o trabalho infantil é mais presente na região da África Subsaariana, que concentra mais de um terço do trabalho infantil do mundo, mas também prevalece em alguns países da Ásia. Os menores índices são encontrados nos países do

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Centro e Leste Europeu e países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), que concentram apenas 6% do trabalho infantil do mundo.

O relatório revela que 11% do trabalho infantil mundial ocorrem na região da América Latina e do Caribe. Contudo, destaca que alguns países apresentaram grande redução nos índices de trabalho infantil ao longo dos últimos anos, mencionando particularmente o Brasil e o México.

Em contrapartida, um estudo do Departamento de Trabalho dos Estados Unidos divulgado em setembro de 20098 aponta o Brasil como o terceiro país, ao lado de Bangladesh, com maior número de setores com produtos feitos a partir de trabalho infantil. Segundo o documento americano, a exploração existe em 11 setores da economia brasileira (como o de calçados, algodão e tabaco), sendo que em dois deles (gado e carvão) o trabalho infantil é cumulado com trabalho forçado. Países como a China, a Argentina e o México estão em posições ligeiramente melhores que o Brasil, enquanto piores classificações só foram atingidas pela Índia, com 19 setores envolvidos no trabalho infantil, e por Burma, com 14.

Transita-se, assim, ao estudo da normatividade internacional adotada no âmbito da ONU e da OIT a respeito do combate e da erradicação do trabalho infantil.

2. Normatividade internacional
2.1. Instrumentos da Organização das Nações Unidas (ONU)

Um dos primeiros instrumentos internacionais a reconhecer que as crianças devem ser objeto de medidas especiais de proteção foi a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança, adotada pela Liga das Nações em 1924. A declaração não enuncia direitos, mas invoca princípios que os Estados devem adotar para garantir o pleno desenvolvimento das crianças.9 Elaborada a partir de proposta preliminar da organização Save the Children, a Declaração de Genebra dos Direitos da Criança articulou cinco princípios básicos, destacando que a criança deve ter acesso aos meios necessários para seu desenvolvimento material e espiritual; à ajuda em situação de fome, doença, incapacidade, orfandade ou delinquência; à prioridade no alívio em situações de risco; à proteção contra a exploração; e a uma formação orientada para a vida em sociedade.10

Já a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, reconheceu que à criança devem ser assegurados direitos específicos. O item 2 do art. XXV da Declaração Universal consagra que “a maternidade

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e a infância têm direito a cuidados e assistência especial. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social”.

Em 1959, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a “Declaração dos Direitos da Criança”, que se tornou referência para a atuação nacional e internacional em prol da criança.11 A Declaração é integrada por dez princípios, merecendo menção o direito da criança à proteção especial para seu desenvolvimento físico, mental e social; à nacionalidade e a um nome; à utilização dos benefícios relativos à seguridade social; à educação e à proteção contra todas as formas de abandono, crueldade e exploração. O 9º princípio da Declaração refere-se especificamente ao direito da criança de ser protegida contra a exploração no trabalho: “Não se deverá permitir que a criança trabalhe antes de uma idade mínima adequada; em caso algum será permitido que a criança dedique-se, ou a ela se imponha, qualquer ocupação ou emprego que possa prejudicar sua saúde ou sua educação, ou impedir seu desenvolvimento físico, mental ou moral”. Esta Declaração enfatizou a necessidade de se conferir especial proteção aos direitos da criança, não mais restritos à proteção genérica no marco do amplo espectro de instrumentos internacionais de direitos humanos.

A proteção especial aos direitos da criança passou a ser incorporada pelos diversos instrumentos internacionais da ONU, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966, que, em seu art. 24.1, estabelece que “toda criança terá direito, sem...

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