O combate à discriminação nas relações laborais, a convenção sobre direitos das pessoas com deficiência da ONU, de 2006, e do estatuto da pessoa com deficiência, Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015

AutorLutiana Nacur Lorentz
Páginas171-202

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Igualdade, Diferença e Trabalho, à Luz da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deiciência da ONU, de 2006 e do Estatuto da Pessoa com Deiciência, Lei n. 13.146, de 6 de julho de 2015

“Lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem. Lutar pela diferença sempre que a igualdade nos descaracterize.”

Boaventura de Sousa Santos

Lutiana Nacur Lorentz

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1. Histórico das fases de tratamento das pessoas com deficiência

Como escólio introdutório, este capítulo coletou alguns dados estatísticos não só em dimensão mundial, mas também nacional sobre a vida e o trabalho das pessoas com deiciência. Nessa linha, os dados das Nações Unidas67, de 2015, por intermédio de seu Centro Regional, demonstram que cerca de 10% (dez por cento) da população, ou seja, 650 milhões de pessoas vivem com alguma deiciência. Nos países onde a esperança de vida é superior a 70 anos, cada indivíduo viverá com uma deiciência em média oito anos, isto é 11,5% (onze e meio por cento) da sua existência; dessas pessoas, 80% vivem nos países em desenvolvimento, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Nos países-membros da Organização de Cooperação e de Desenvolvimen-to Econômico — OCDE, a proporção das pessoas com deiciência é

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nitidamente mais elevada nos grupos com menos instrução. Em média, 19% (dezenove por cento) das pessoas menos instruídas têm uma deiciência, em comparação com 11% (onze por cento) das mais instruídas. Na maioria dos países da OCDE, a incidência das deiciências é mais elevada entre as mulheres do que entre os homens. Segundo o Programa das Nações Unidas para Desenvolvimento68, no Brasil, também em 2009, a maior parte das pessoas com deiciência física, auditiva, visual e mental estava alijada do mercado de trabalho. Estudos mostram que há aproximadamente 6 milhões de pessoas com deiciência em idade economicamente ativa, dos quais um milhão deve estar no mercado de trabalho informal e apenas 158 mil legalmente empregadas, com garantias trabalhistas e benefícios. Des-sarte, das pessoas com deiciência, apenas um sexto tem trabalho, mas este é quase sempre informal, e do total dessas pessoas, apenas 2,6% têm emprego formal!

No Brasil, os dados do Ministério do Trabalho e Emprego69, coletados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) de 2009/2010, indicam que o trabalho formal (emprego) dessas pessoas é muito baixo no Brasil. De 2009/2010, pela Rais, do total de 41,2 milhões de vínculos ativos em 31 de dezembro, 288,6 mil foram declarados como pessoas com deiciência, representando o percentual píio de 0,7% (zero ponto sete por cento) do total de vínculos empregatícios! Esse resultado apresentou uma redução em relação ao ocorrido no ano anterior (323,2 mil vínculos). Do total de vínculos de trabalhadores com deiciência em 2009, verifica-se a predominância dos classificados com deiciência física (54,68%, ou 157,8 mil vínculos), seguido dos auditivos (22,74%, ou 65,6 mil vínculos), visuais (4,99%, ou 14,4 mil vínculos), mentais (4,55%, ou 13,1 mil vínculos) e dei-ciências múltiplas (1,21%, ou 3,5 mil vínculos). Na situação de empregados reabilitados, foram declarados 11,84%, ou 34,2 mil vínculos. Um dado importante de 2015 é que 292.614 pessoas com deiciência estão cadastradas no sítio do Ministério do Trabalho e Emprego, à espera de um emprego70.

Pela coleta de dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)71, ao comparar os dados do Censo de 1991 relativos à pessoa com

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deiciência com os do Censo 2000, chegou-se às conclusões de que, ape-sar de o Censo 1991 haver subenumerado a população com deiciência (1,14%), os números relativos permitem uma boa caracterização desse grupo populacional, como demonstram alguns dos resultados encontrados; as deiciências mentais no Brasil são em menor proporção que o percentual preconizado pela ONU; a maior parte das pessoas deicientes está na região Sudeste, como consequência da concentração populacional; os homens são mais acometidos que as mulheres em todos os tipos de deiciências; o grupo etário de 60 anos ou mais é o que apresenta a maior incidência de deiciências, predominando as sensoriais e as motoras; mais que a quarta parte das pessoas com deiciência é casada e tem, portanto, responsabilidades familiares; a maioria é não alfabetizada; ao contrário do que ocorre com o restante da população, entre as pessoas com deiciências, as mulheres frequentam menos a escola que os homens; poucos trabalham habitualmente durante o ano; seus rendimentos concentram-se entre 1/4 e 1 salário mínimo; um quinto deles pertence a famílias com até 1/4 de salário mínimo per capita, e quase a metade está em famílias com até meio salário mínimo per capita. Com relação ao trabalho habitual, corresponde a 13,4% das pessoas com deiciência, enquanto na população total ele representa 36,8%.

Outro dado alarmante do Ipea é sobre os rendimentos dessas pessoas, sendo que rendimentos aqui considerados são aqueles provenientes do trabalho, de aposentadorias ou pensões e de outras fontes, assim entendidos aluguéis, arrendamentos, doações, emprego de capital etc. Auferiram rendimentos 45% das pessoas consideradas. Dos que tiveram rendimentos, 63% se situam na faixa entre 1/4 e 1 salário mínimo.

Em conclusão, há um número grande de pessoas com deiciência (PCDs) subempregados e trabalhadores informais, bem como PCDs que não trabalham, em parte porque recebem o Benefício de Prestação Continuada72 (BPC), que tem um valor pequeno (salário mínimo) e com requisitos de quase miserabilidade familiar73 (não pode haver recebimento do BPC

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com renda per capita de mais de um quarto do salário mínimo). Além da incapacidade da pessoa com deiciência para o trabalho, também há um imenso número dessas pessoas completamente desempregadas e sem renda. Os dados sobre a vida e o trabalho das pessoas com deiciência no mundo e notadamente no Brasil são alarmantes.

Sobretudo na atual fase do capitalismo, em que os direitos dos traba-lhadores estão sendo “lexibilizados” (pomposo eufemismo que, na verdade, tenta encobrir sua real significação de corte, ou redução de direitos), autores como Delgado74, Baylos75 e Bihr76 preconizam a necessidade de repúdio ao Estado Neoliberal (ou Ultraliberal) e de defesa do trabalho humano através do fortalecimento do Direito e do Processo do Trabalho (ou, também, Estado de Bem-Estar Social77 no século XXI), sendo necessária, mais do que nunca, a intervenção Estatal, notadamente com o escopo de proteção dessa minoria discriminada e para implementar o requisito de patamar mínimo civilizatório exigido como condição prévia ao Estado Democrático de Direito. Porém, antes de enfrentar o tema na contemporaneidade, é preciso fazer seu levantamento histórico78.

Inventariar a história das pessoas com deiciência como grupo sujeito às mais diversas discriminações e estigmas (sobre o tema, ver Go?man79,

Croch80 e Viana81) passa, na visão deste trabalho, pela categorização em quatro fases distintas: primeiro, a fase da eugenia (ou da eliminação); segundo, a fase do assistencialismo (ou da piedade caridosa); terceiro, a fase da integração; e quarto, a fase atual da inclusão.

A primeira a fase, da eugenia (ou da eliminação), foi preponderante na Antiguidade Clássica; de forma menos acentuada, também incidiu na Ida-

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de Média e, na era moderna, retornou através da dogmática biologista, com ares de cientificidade autoproclamada usada pelo Nazifascismo. Platão82, em As leis, defendia claramente a eliminação das pessoas com deiciência. Também na Grécia havia a previsão legal de matar o ilho com dei- ciência, na Lei das Doze Tábuas, Tábua IV83, através de sua visão organicista do período greco-romano, com escopo de fortalecimento da casta dos guerreiros, até porque a pessoa com deiciência era vista como uma “maldição”. Essa fase foi retomada no período Nazifascista84, por Hitler e seus antecessores (dentre eles, o conde Arthur de Gobineau, que foi Ministro da França na corte de D. Pedro II), fundamentada em uma leitura completamente deturpada do darwinismo85. Nesse sentido, não deixa de ser divertido lembrar que as teorias raciais e eugênicas que condenavam à eugenia não só de negros, mas também de pessoas com deiciência, icaram desnudadas após a vitória de Joe Louis, boxeador negro americano, sobre o alemão Max Schmelling, e nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, com a vitória acachapante do negro Jesse Owens (para total embaraço de Hitler).

Da era cristã ao período medieval, inicia-se a segunda fase de trata-mento das pessoas com deiciência, o assistencialismo. Nessa fase, matar essas pessoas não era admissível, até porque matar era um pecado capital86, mas, noutro giro, esse grupo era segregado em hospitais, casas de saúde, longe dos olhos da cidadela. Recebia um tratamento de piedade caridosa cristã, no distanciamento, baseada em culpa e pecado, que impli-cava diminuição e dependência extrema da pessoa com deiciência para com os ditos “não deicientes”, quase sempre clérigos, ou religiosos. Essas

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pessoas passaram, na Idade Média87, a ser consideradas “lês enfants du bon Dieu” (“as crianças do bom Deus”), demonstrando que deixaram a qualidade de “quase coisa” que tinham na fase da eliminação e passaram a ser pessoas, mas...

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