A colonização das utopias e outras consequências da assimilação acrítica dos principais discursos ocidentais sobre democracia e direitos humanos

AutorPaulo Renato Vitória
Páginas198-236
Rev. direitos fundam. democ., v. 23, n. 2, p. 198-236, mai./ago. 2018.
DOI: 10.25192/issn.1982-0496.rdfd.v23i21298
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
A COLONIZAÇÃO DAS UTOPIAS
E outras consequências da assimilação acrítica dos principais discursos
ocidentais sobre democracia e direitos humanos
THE COLONIZATION OF UTOPIAS
And other consequences of the uncritical assimilation of western main discourses on
democracy and human rights
Paulo Renato Vitória
Doutor em Desarollo y Ciudadanía: Derechos Humanos, Educación, Igualdad e
Intervención Social pela Universidad Pablo de Olavide de Sevilha. Mestre em Filosofia
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Resumo
Este ensaio descreve, através de uma revisão bibliográfica, algumas
das mais importantes consequências de uma apropriação acrítica dos
discursos, práticas e instituições dominantes sobre democracia e
direitos humanos por movimentos e indivíduos que, de posições
subalternas, lutam por um mundo mais justo. Assumo que tais
perspectivas hegemônicas construídas desde a
modernidade/colonialidade ocidental capitalista, racista e patriarcal,
no âmbito de um paradigma individualista, patrimonialista e
universalista/abstrato servem para legitimar, naturalizar e justificar
diversos discursos e práticas sociais que contribuem para aumentar
as desigualdades sociais e perpetuar diferentes relações de
dominação, exploração e opressão entre os seres humanos,
individual e/ou coletivamente. Além disso, defendo que tais discursos
e práticas representam um risco à própria possibilidade de preservar
a humanidade como espécie, ao legitimar a apropriação e a
acumulação dos recursos naturais. Ademais, servem para condenar
inexoravelmente todas as formas de resistência armada contra o
sistema dominante, colonizando os horizontes utópicos de indivíduos
e grupos em luta, além de criminalizar e estigmatizar suas demandas
e práticas. Nesse sentido, o artigo reivindica a necessária
ressignificação desses importantes conceitos desde outras
gramáticas pluriversais, críticas e decoloniais, coerentes com um
mundo onde caibam muitos mundos, em que o acesso a bens
materiais e imateriais que todos nós precisamos viver, incluindo o
poder político, seja distribuído de maneira mais igualitária e
democrática.
Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 23, n. 2, p. 198-236, mai./ago., de 2018
PAULO RENATO VITÓRIA
199
Palavras-chave: Democracia. Direitos humanos. Ressignificação.
Decolonialidade
Abstract
This essay describes, through a literature review, some of the most
important consequences of an uncritical appropriation of dominant
discourses, practices, and institutions on democracy and human rights
by movements and individuals who, from subaltern positions, strive for
a fairer world. I assume that such hegemonic perspectives
constructed from the capitalist, racist and patriarchal Western
modernity/coloniality within an individualist, patrimonialist and
universalist/abstract paradigm serve to legitimize, naturalize, and
justify several social discourses and practices that contributes to
increase social inequalities and to perpetuate different relations of
domination, exploitation and oppression between human beings,
individually and/or collectively. Moreover, I argue that such discourses
and practices represent a risk to the very possibility of preserving
humanity as a species, by legitimizing the appropriation, accumulation
and mercantilization of natural resources. In addition, they serve to
condemn inexorably all forms of armed resistance against the
dominant system, colonizing the utopian horizons of struggling
individuals and groups, criminalizing and stigmatizing their demands
and practices. In this sense, the article claims the necessary re-
signification of these important concepts from other pluriversal, critical
and decolonial grammars, coherent to a world where many worlds fit,
in which access to tangible and intangible goods that we all need to
live, including political power, can be more equitably and
democratically distributed.
Keywords: Democracy. Human Rights. Re-signification. Decoloniality
INTRODUÇÃO
As ideias de democracia e direitos humanos estão entre os grandes paradoxos
do mundo contemporâneo. Se, por um lado, servem como bandeiras para alentar
diferentes processos de luta por um mundo mais justo, inclusivo, participativo e
solidário, convocando e mobilizando indivíduos e grupos marginalizados, por outro,
estes mesmos discursos servem para justificar ideologicamente diferentes formas de
dominação, exploração e exclusão entre seres humanos, a concentração de poder
político e econômico e a apropriação (e exploração) irresponsável do meio ambiente.
Para exemplificar: em nome das ideias de democracia e direitos humanos,
diversos bens necessários à vida de todos os seres humanos como a terra, a água,
as sementes, a informação, a tecnologia, a educação, a medicina, a cultura, os meios
de comunicação (e um longo etecetera) foram transformados em mercadorias,
Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 23, n. 2, p. 198-236, mai./ago., de 2018
A COLONIZAÇÃO DAS UTOPIAS E OUTRAS CONSEQUÊNCIAS...
200
passíveis de apropriação, acumulação e especulação privada e orientadas à satisfação
de interesses particulares. Dita apropriação, por mais que implique na privação do
acesso da imensa maioria da humanidade a tais recursos e condene bilhões de
seres humanos a uma vida miserável , é considerada um direito humano individual e
é perfeitamente compatível com as concepções de democracia e direitos humanos que
se fizeram hegemônicas mundialmente ao longo dos últimos séculos.
Por outra parte, simultaneamente e em nome dos mesmos significantes,
milhares de indivíduos e grupos se organizam para enfrentar precisamente a
mercantilização da vida, as exclusões e as crescentes (e brutais) desigualdades
sociais existentes. Há uma evidente disputa em torno dos significados, mesmo que a
mesma não seja abordada com muita frequência pelas narrativas predominantes. Para
Marcos Roitman (2011, p. 9, tradução minha), “dar um significado à palavra
democracia é parte de uma guerra teórica por controlar o mundo”. Podemos ampliar a
sentença, acrescentando o conceito de direitos humanos também como parte dessa
mesma disputa pelos sentidos e, consequentemente, pelo poder.
Conforme denunciam inúmeros autores identificados com perspectivas teóricas
críticas, a democracia liberal e os direitos humanos realmente existentes são produtos
culturais (HERRERA FLORES, 2009) das sociedades burguesas ocidentais, que
podem ser caracterizados pelo seu cunho individualista (HINKELAMMERT, 2003),
patrimonialista (GALLARDO, 2000), universalista-abstrato (HERRERA FLORES, 2007),
procedimental (ROITMAN, 2011), despolitizado (AZCUY, 1997), expansivo/globalizador
(CORONIL, 2005), colonialista (PÉREZ ALMEIDA, 2011) e pós-violatório (SÁNCHEZ
RUBIO, 2007). Conforme explica Raimon Panikkar (2004, apud GÁNDARA
CARBALLIDO, 2013, tradução minha):
Se pressupõe uma natureza humana universal, cognoscível através da razão
como instrumento também universal do conhecimento. Esta natureza é, em
essência, diferente do restante da realidade... Se estabelece a dignidade
humana como um absoluto frente à sociedade, com o qual se estabelece uma
separação entre indivíduo e sociedade e a autonomia (inclusive oposição) da
humanidade frente ao cosmos... Se postula como ordem política necessária a
ordem social democrática: a sociedade como soma de indivíduos livres e
formalmente iguais, organizados em função de objetivos pactuados desde o
exercício de vontades individuais soberanas.
Ocorre que nem todos os seres humanos se identificam com esse tipo de
racionalidade individualista, que o Ocidente pretende apresentar ao mundo como
“universal” e necessária, sobretudo porque se trata de uma racionalidade abstrata que
concretamente serve para acentuar as exclusões, as desigualdades e as relações

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT