Colisão e renúncia a direitos fundamentais nas relações entre particulares

AutorJairo Néia Lima
CargoMestrando em Ciência Jurídica pela FUNDINOPI - Jacarezinho, foi monitor das disciplinas de Direito Constitucional e Direito Processual Civil, participou do grupo de estudos graduação-mestrado sobre a Eficácia dos direitos humanos no Brasil na mesma instituição.
Páginas2-15

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Introdução

Os direitos fundamentais foram concebidos inicialmente como direitos em face do Estado ofensor, ocorre que o desenvolvimento histórico demonstrou que não é somente o Estado o único agente violador das garantias mínimas dos homens, mas também os próprios cidadãos em suas relações particulares, tal fenômeno é conhecido como eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, é a aplicação de tais direitos nas relações traçadas entre atores privados.

O presente trabalho parte do pressuposto de que os direitos fundamentais se aplicam na órbita particular, para tanto, fundamenta-se no processo histórico percorrido pelo direito civil, em especial seu processo de descodificação2; na posição assumida pela Constituição Federal de 1988 em relação ao ordenamento jurídico, onde suas normas erigem-se como centro valorativo irradiador de efeitos sob as demais normas infra-constitucionais e na dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, pois são concebidos como uma ordem de valores a orientar não só as ações do Estado, mas também a vida da sociedade.

Algumas teorias se formaram em torno dessa problemática, dentre as principais destacam-se: teoria da eficácia direta e indireta, teoria da state action, teoria dos imperativos de tutela e outras. O trabalho que ora se apresenta filia-se à teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, para essa concepção os direitos fundamentais se aplicam às relações privadas independentemente de qualquer interferência ou medida concretizadora por parte dos poderes estatais. Essa também é a posição defendida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n° 201.819 de 2006.

A eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas exige a investigação a respeito das possíveis colisões existentes nesta esfera, principalmente quando estão em jogo o direito à autonomia da vontade e outro direito fundamental.

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1 Autonomia privada

A aplicação irrestrita dos direitos fundamentais nas relações particulares implicaria uma indesejada homogeneização da sociedade, pois aniquilaria a individualidade e a pluralidade. Partindo-se deste raciocínio, a teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais no âmbito privado não se fundamenta no absolutismo destas garantias constitucionais, reconhece, para tanto, que certos direitos não são oponíveis aos particulares, mas somente ao Estado, como o direito de nacionalidade, e quando oponíveis, a solução se dará através da ponderação dos interesses em conflito.

Neste mesmo sentido, são as palavras de Canotilho:

Isto não significa uma absolutização da eficácia irradiante dos direitos fundamentais com a correspondente capitulação dos princípios da ordem jurídica civil. Significa apenas que as soluções diferenciadas (Hesse) a encontrar não podem hoje desprezar o valor dos direitos, liberdades e garantias como elementos de eficácia conformadora imediata do direito privado. (2003, p. 1.294)

Virgílio Afonso da Silva, quando cita Bydlinski, afirma:

Bydlinksi chega à conclusão de que Nipperdey, principal defensor do modelo de aplicabilidade direta, e Dürig, principal defensor do modelo de efeitos indireto, concordam no ponto mais importante: ainda que os direitos fundamentais produzam efeitos nas relações privadas e, nesse sentido, vinculem os indivíduos nessas relações, é certo que esses efeitos não podem ser absolutos, senão a autonomia privada desaparecia por completo. (2005a, p. 143)

Portanto, para a efetividade da teoria da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre sujeitos privados faz-se necessário analisar a ocorrência das colisões e os critérios para aferição da prevalência entre os direitos em conflito bem como o fenômeno da renúncia aos direitos fundamentais nos tratos privados.

No âmbito das relações jurídicas, o indivíduo revela sua capacidade de escolha, de fazer opções, de expressar seu arbítrio. Essa manifestação de liberdade é que irá determinar a sua atuação no ambiente comunitário. É na fase do Estado Liberal que a autonomia privada erige-se como princípio de todo o direito privado, já que a fonte principal do direito nesse período estava centrada na liberdade individual.

Pietro Perlingieri apresenta uma definição de autonomia privada:

Pode-se entender por “autonomia privada”, em geral, o poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos. (2002, p. 17)

Teresa Negreiros aponta;

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A ideia de autonomia da vontade – expressão jurídica do liberalismo econômico e político – ocupa lugar central na dogmática civilista, definindo-se como o poder conferido ao indivíduo de produzir efeitos jurídicos sem intervenção de agentes externos, muito especialmente do Estado. (2001, 361)

Nota-se que ambos os conceitos fundam-se num poder de autodeterminação individual, consequência do direito de liberdade, tão perseguido nas revoluções liberais. No seu percurso histórico, o Estado veio a assumir posições mais protecionistas e intervencionistas no espaço antes reservado apenas à autonomia privada, relativizando e atribuindo uma função social aos preceitos do direito privado.

A Constituição da República brasileira não dispôs expressamente em seu texto referência direta à autonomia privada, porém isso não quer dizer que ela não tenha fundamento constitucional, pois nos termos do artigo 5°, § 2° da Constituição Federal, os direitos fundamentais podem estar implícitos no seu texto ou até mesmo em tratados internacionais.

Com o intento de creditar à autonomia privada o status de direito fundamental, Steinmetz aduz:

Na República Federativa do Brasil é possível fundamentar a tutela constitucional da autonomia privada com diferentes argumentos. A afirmação dessa tutela resulta de um argumento de tipo indutivo cujas premissas são o direito geral de liberdade (CF, art. 5°, caput), o princípio da livre iniciativa (CF, art. 1°, IV, e art. 170, caput), o direito ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão (CF, art. 5°, XIII), o direito de propriedade (CF, art. 5°, caput e inciso XXII), o direito de herança (CF, art. 5°, XXX), o direito de convenção ou de acordo coletivo (CF, art. 7°, XXVI), o princípio da proteção da família, do casamento e da união estável (CF, art. 226, caput, e §§ 1°-4°); e cuja conclusão é o poder geral de autodeterminação e autovinculação das pessoas, tutelado pela CF. Se todos esses princípios e direitos constitucionais mencionados têm um conteúdo básico atributivo de direito de autodeterminação e de autovinculação da pessoa, então a autonomia privada – que é um poder geral de autodeterminação e de autovinculação – também é constitucionalmente protegida (tutelada). (2007, p. 27-28)

Na busca do mesmo objetivo, são as palavras de Andrietta Kretz:

[...] entendendo-se o princípio da autonomia da vontade como uma manifestação ou exercício do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, da livre iniciativa ou do direito fundamental da liberdade, estar-se-á diante de um verdadeiro direito fundamental e não somente diante de um princípio do Direito Privado. Assim, se numa relação contratual, a vontade das partes, operacionalizada através do princípio da autonomia da vontade, vier a lesar um direito fundamental de uma das partes contratantes, não se estará simplesmente perante uma colisão entre um princípio do Direito Privado e um Direito Fundamental, mas, sim, diante de uma colisão de direitos fundamentais ou de um conflito de direitos fundamentais. (2005, p. 112-113)

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Partindo de premissas distintas, porém não contraditórias, de um lado a proteção à autodeterminação e de outro, como expressão da dignidade humana, Steinmetz e Kretz chegam à conclusão de que a autonomia da vontade é um direito fundamental implícito no ordenamento jurídico brasileiro merecedor de proteção, André Rufino do Vale também concorda com esse raciocínio (2004, p. 157). Alexy ainda afirma: “a própria autonomia privada, não só sua limitação, é objeto de garantias jusfundamentais e, portanto, de efeitos em terceiros”3 (2002, p. 522, tradução nossa).

Cumpre observar ainda que os direitos fundamentais (incluída aí a autonomia privada) se expressam, na grande maioria dos casos, em forma de princípios, nos termos da classificação das normas proposta por Robert Alexy (2002). Reis e Fischer complementam: “os Direitos Fundamentais situam-se na categorização de princípios e como tal devem ser tratados. [...] a natureza principial dos Direitos Fundamentais torna a solução de colisões mediante a aplicação do método da ponderação.” (2006, p. 1.650). Concordam com a natureza principiológica das normas de direitos fundamentais Virgílio Afonso da Silva (2005a, p. 147) e Ingo Sarlet (2004, p. 576).

Os conflitos privados, portanto, que envolvam um direito fundamental de um lado e a autonomia privada de outro são conflitos de direitos fundamentais e em última instância, colisão de princípios.

2 Colisão de direitos fundamentais nas relações privadas

Deve-se observar que a vinculação dos particulares aos direitos4fundamentais não se dá da mesma forma quando no outro polo da relação encontra-se o Estadoofensor, pois nas relações travadas sob o manto do direito privado as duas partes em conflito são titulares de direitos fundamentais, diferentemente do que ocorre na relação estabelecida entre o Estado e o cidadão. “O fato de que os particulares são também titulares de direitos fundamentais, desfrutando de uma autonomia privada constitucionalmente protegida, impõe uma série de adaptações e especificidades na incidência dos direitos humanos no campo privado” (SARMENTO, 2006a, p. 270).

A fixação de limites para a...

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