Os mecanismos coletivos de proteção dos direitos humanos: os sistemas de proteção universal e o interamericano

Autor1.Karine de Souza Silva - 2.Ricardo Nunes Viel
Cargo1.Doutora em Direito/UFSC. Professora do Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí - 2.Bacharel em Direito / UNIVALI. Advogado.
Páginas201- 231

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Considerações iniciais

A assinatura da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1948 representa um importante passo no sentido da proteção dos direitos fundamentais. Esse foi o primeiro documento criado com o objetivo de assegurar a qualquer ser humano, esteja onde estiver e sob qualquer condição, determinados direitos que, por serem considerados básicos, deveriam ser garantidos.

O ano de 1948, portanto, sinalizou o início do chamado processo de internacionalização dos direitos humanos, já que colocou a questão da proteção dos direitos humanos como tema de interesse global.

Antes dessa data, já haviam surgido algumas iniciativas que visavam assegurar internacionalmente alguns direitos aos seres humanos. Contudo, a preocupação se dava com minorias, ou grupos em especial: trabalhadores, refugiados, capturados e feridos nas guerras, estrangeiros, não tendo, assim, caráter universal.

A importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos é, justamente, sua universalidade. Pela primeira vez, cria-se um documento que tem como objetivo assegurar a qualquer ser humano, esteja onde estiver e sob qualquer condição, determinados direitos que, por serem considerados básicos, deveriam ser garantidos. A Declaração Universal deu início ao chamado processo de internacionalização dos direitos humanos que colocou a questão da proteção dos direitos humanos como de interesse global.

Diversos outros tratados internacionais que asseguravam direitos fundamentais surgiram nas décadas posteriores à Declaração Universal, representando, sem dúvida, uma maior proteção aos seres humanos. Apesar da grande importância desses documentos, a simples existência dos mesmos não era suficiente. Era necessária a criação de mecanismos que responsabilizassem os violadores dessas normas e impedissem que elas continuassem acontecendo.

O presente trabalho tem como objetivo estudar o funcionamento desses mecanismos de responsabilização das normas internacionais chamados sistemas dePage 203proteção dos direitos humanos, visando compreender sua estrutura e modo de atuação.

1 Os mecanismos de responsabilização dos estados por violações de direitos humanos

No Direito Internacional, existem dois mecanismos de responsabilização dos Estados por violações praticadas: o mecanismo unilateral e o coletivo ou institucional.

No primeiro deles, um Estado, ao sentir-se ofendido, por supostamente ter sido lesado por outro, em algum direito seu, exige reparação. É o próprio ofendido que analisa a suposta violação e requer a reparação, podendo aplicar sanções unilaterais ao Estado dito infrator se este não reparar o dano causado. Devido a sua visível parcialidade, a utilização deste mecanismo não é recomendável, ainda mais quando se trata da reparação de violações de direitos humanos3 .

Com intuito de evitar a seletividade e parcialidade do mecanismo unilateral foi criado o mecanismo coletivo ou institucional, no qual um órgão independente é quem analisa as possíveis violações e decide sobre a responsabilidade internacional dos Estados. A imparcialidade dos órgãos que julgam as violações faz desse mecanismo o mais adequado.

O presente artigo não analisará as modalidades unilaterais de responsabilização dos Estados, somente os mecanismos coletivos, em especial o sistema da ONU e o sistema interamericano.

1. 1 O sistema universal de proteção dos direitos humanos

É conhecido como sistema universal ou global de proteção dos direitos humanos o mecanismo existente no âmbito da Organização das Nações Unidas criado com o intuito de garantir, de maneira universal, o respeito às normas de proteção internacional da pessoa humana. Existem dois eixos através dos quais a proteção dos diretos humanos, dentro do sistema global, pode se efetivar: (i) áreaPage 204convencional - sob a atmosfera dos tratados elaborados no âmbito da ONU; (ii) área extraconvencional - originada das resoluções da Organização das Nações Unidas e seus órgãos, tendo como base a interpretação da Carta de São Francisco.

1. 2 O mecanismo convencional das Nações Unidas de proteção dos direitos humanos

O sistema convencional de proteção dos direitos humanos é aquele por meio do qual os Estados membros da ONU se comprometem internacionalmente, através de um tratado, a proteger determinados direitos fundamentais. Este esquema de salvaguarda pode ser desmembrado em três diferentes formas: (i) nãocontencioso; (ii) quase-judicial e (iii) judiciais.

1.2. 1 O mecanismo convencional não-contencioso

Através do mecanismo não-contencioso (semelhante aos bons ofícios e à conciliação), um Estado, espontaneamente (ao ratificar um tratado), obriga-se a respeitar e proteger os direitos humanos. Uma das modalidades de acompanhamento e controle da observância das obrigações é o sistema de envio de relatórios periódicos4 (principal mecanismo não-contencioso), pelo qual o Estado se compromete a prestar contas das ações por ele adotadas em relação à garantia dos direitos assegurados em determinado tratado.5

Essas informações contidas nos relatórios são analisadas por especialistas, ou Comitês criados pelos próprios tratados internacionais, que fazem recomendações ao país buscando uma melhor garantia dos direitos fundamentais. As informações prestadas pelos Estados, após analisadas, são remetidas a Assembléia Geral da ONU6 .

Embora vise à proteção dos direitos humanos, o sistema convencional não-contencioso apresenta algumas limitações. O fato de ser o Estado-parte, e somente ele, quem elabora os relatórios que são remetidos aos Comitês7 , faz com que, muitas vezes, as informações prestadas sejam pouco verossímeis. Outra dificuldade que também advém desse monopólio quanto ao relatório é a possibilidadePage 205de atraso na sua apresentação, fato que tem ocorrido freqüentemente em diversos âmbitos.

Algumas alternativas vêm sendo propostas a fim de superar esses obstáculos. Uma delas é - como atualmente ocorre no âmbito do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais - a aceitação de informes procedentes de organizações não-governamentais (ONG´s) sobre os relatórios apresentados pelos Estados.8 O papel desenvolvido por algumas ONG´s tem sido de extrema importância, uma vez que são, quase sempre, organismos imparciais e independentes que têm como único objetivo instar os Estados a adotarem medidas para garantirem o respeito aos direitos fundamentais.

Outro ponto débil nesse tipo de sistema é sua ineficácia frente a situações de emergência, ou seja, ocorrência iminente de violações de direitos humanos. A fim de sanar essa situação, alguns Comitês têm adotado a realização de visitas in loco, com intuito de investigar possíveis violações.9

Entretanto, vale ressaltar que o sistema de relatórios, ainda que apresente algumas debilidades, representa uma ferramenta de proteção dos direitos humanos, muitas vezes a única, pois há muitos Estados que não reconhecem outro tipo de mecanismo de proteção, sendo o não-contencioso (no qual está contido o sistema de relatórios) a única possibilidade de se analisar a situação dos direitos fundamentais no país. Há que se mencionar, como ponto positivo do sistema, o fato de os relatórios apresentados pelos Estados-partes para serem avaliados pelos Comitês, serem remetidos, posteriormente, à ONU. Sendo assim, pode a Assembléia Geral editar resoluções, condenando o país por violações de direitos humanos10 . Há, ainda, a possibilidade da Assembléia acionar o Conselho de Segurança das Nações Unidas, para que tome as providências possíveis.

Contudo, apesar de ser uma iniciativa importante em relação à proteção dos direitos humanos, o sistema de relatórios apresenta falhas e é pouco eficaz se não acompanhado de outros mecanismos mais efetivos de proteção da pessoa humana.11

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1.2. 2 O mecanismo convencional quase-judicial

Trata-se de mecanismo de responsabilização dos Estados por violações dos tratados de direitos humanos em que são partes. Funciona da seguinte forma: são instituídos, através de Convenções internacionais, comitês cujas atribuições são: analisar casos de possíveis violações de direitos humanos e emitir deliberações que obrigam os Estados-partes a repararem os danos causados. Contudo, por não se tratarem de sentenças - uma vez que os Comitês não são órgãos judiciais - o mecanismo é chamado de quase-judicial.

A manifestação dos Comitês, através das mencionadas deliberações, pode ocorre de duas maneiras: (i) através de petição de um Estado; (ii) através de petição de um particular.

Em relação à primeira possibilidade, pode um Estado acionar os comitês...

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